But I'm a creep
Mas eu sou uma aberração
I'm a weirdo
Eu sou um esquisitão
What the hell am I doing here?
Que diabos estou fazendo aqui?
I don't belong here
Eu não pertenço a este lugar


Creep
- Radiohead










Miguel tremia de frio sentado num banco de madeira a beira da estrada à espera do próximo ônibus pra casa naquela noite. “Acho que vou congelar nessa merda!” Pensou irado. Mesmo com o pesado blusão e a grossa calça jeans o frio parecia furar os ossos e congelar a alma.

- Já faz um tempo que não sinto esse frio. - falou uma fina voz fina que vinha de seu lado direito. Ele gelou no banco. Pelo visto não tinha percebido a garota ali, e com o susto um calafrio percorreu instantaneamente sua espinha.

- Nossa, você me assustou! - disse ele num tom alto e meio sem jeito, expelindo vapor pela boca e narinas enquanto falava.

- Desculpe, todo mundo diz isso quando eu apareço. Já estou acostumada com isso, assim como esse frio todo.

Enquanto a moça falava Miguel percebeu certa palidez de sua pele e a cor sem vida de seus olhos. Tinha algo diferente neles, algo estranho. Mesmo debaixo da luz precária do velho poste do ponto de ônibus ele quase podia jurar que tinha um defunto ao seu lado.

- Tá esperando o ônibus pra casa? - ela perguntou num tom calmo e cadenciado.

- Sim, mais acho que está atrasado.

- Ou você está adiantado. - ela falou rápido como se já sabendo o que ele diria. Os olhos dela pareciam querer entrar nele.

- Mas sempre pego o ônibus nesse horário. - retrucou o rapaz um pouco desconfiado em resposta.

- …. - ela ficou em silêncio olhando o lugar ao redor.

Ele então não soube o que dizer e percebeu que sua companheira de banco simplesmente olhava para o nada ao redor. Ele fez o mesmo e deu uma olhada no ambiente em volta. Pra seu espanto não se podia ver muita coisa além de alguns metros em qualquer direção a partir do banco, pois uma espessa névoa cobria tudo além daquele ponto. Engoliu a seco na hora.

Não se lembrava da última vez que tinha feito tanto frio, e com certeza nunca havia nenhum tipo de nevoeiro naquele lugar. Ficou preocupado. Seus olhos procuram o relógio no pulso. Os ponteiros pareciam fazer algum esforço para o sentido horário, mais por algum motivo não giravam.

- Fala sério, agora não. - falou, batendo de leve algumas vezes no vidro do relógio com o indicador direito.

- Sabe o que é engraçado sobre o tempo? - a garota aparentemente tinha saído do estado de contemplação e olhava fixamente para o chão enquanto falava. Miguel pensou em responder, mas a voz dela tinha algo que o assustava, e que ele não sabia explicar. Sem esperar muito ela o olhou de lado e disse:

- O problema do tempo é que quando a gente pensa que tem, ele já acabou. - cada palavra dela parecia um lamento penoso. Mesmo assim ela deu um pequeno sorriso e se levantou do banco.

- Já passou da minha hora e acho que a sua também está chegando. Até mais. - ele ficou curioso e perguntou em seguida com certo receio:

- Hora de que? - a voz saiu tão desconfortável que a garganta reclamou com um pigarro.

- De nos vermos novamente. - concluiu tranquila enquanto caminhava pela estrada em direção a névoa.

Ele teve um mau pressentimento. Olhou para a garota que se distanciava e teve a impressão que havia algo no pescoço dela, algo parecido com uma ferida, onde algo escuro como sangue escorria, manchando lentamente sua blusa. Ela então começou a desaparecer, entrando aos poucos na parede de névoa, tal como um fantasma. Antes de sua silhueta sumir por completo no fantasmagórico nevoeiro ela falou:

- Seria bom você correr como se não houvesse amanhã, pois na sua condição talvez não tenha. - enquanto a garota falava Miguel percebeu seu rosto marcado, a cicatriz que tinha visto ficava maior a cada passo que se afastava e seu sangue parecia descer por toda blusa. Antes que ele pudesse dizer algo ela se virou para a névoa, sumindo como se tivesse evaporando em pleno ar. 

- Mais que merda foi essa... - falou sem entender nada do que acabou acontecer diante de seus olhos.

A neblina que antes parecia imóvel começou a retroceder, dando um pouco de noção do ambiente a sua volta. Ele conseguia ver mais da estrada, algumas casas e placas junto da via. O estranho era que agora ele parecia não reconhecer muito bem o lugar. O lugar em si parecia o mesmo, mais de algum jeito estranhamente diferente. Como se outra pessoa sem talento artístico tivesse visto o local de relance e desenhado tudo aquilo de cabeça. Tudo ali parecia uma versão mais estranha e torta de suas lembranças.

Ele se levantou e deu mais uma olhada. Ainda não estava onde deveria estar. E aquele ônibus que não chegava de jeito algum. Lembrava-se muito bem que aquela linha não se atrasava, ou estava enganado? Pensou um pouco, refletiu um tempo e concluiu que não se lembrava porque diabos estava esperando aquele ônibus. Não lembrava o número da linha, não se lembrava pra onde ia, e nem como havia chegado até ali. Essa conclusão toda o atordoou e fez seu mundo girar. Ficou confuso e se sentou novamente.

Sua mente o fez lembrar da estranha garota. O que ela quis dizer com aquilo tudo? Será que estava ficando louco? O que era aquele lugar? Quem era aquela garota? Seria tudo aquilo um sonho? Não entendia mais nada que estava acontecendo. Ele tentou pensar em alguma explicação racional, e logo percebeu que tudo é real demais para um simples sonho.

- Se fosse um sonho eu faria o quiser, não é assim que funciona? - perguntou pra si mesmo.

Um brilho em baixo do banco chamou sua atenção. Era um gargalo de garrafa quebrado ao lado de um dos pés sujos do velho banco. Ele teve uma ideia. Pegou um caco dos grandes e pensou consigo:

“Se eu estiver sonhando vou acordar por causa da dor… ou ficar com um belo corte, eu acho.” - pensou

encostou o vidro na palma de sua mão parando por um segundo. Sabia que não era a melhor ideia do mundo, mais tinha que ter uma alguma prova, e pelo jeito aquela era a única maneira. Ele então pressionou o vidro afiado contra a pele com olhos fechados.

- Porra!!!

A dor parecia bem real pra ele agora. O sangue escorreu da palma de sua mão chegando ao chão sujo em gotas rápidas. Ele sentiu a fisgada aguda de dor e apertou o braço com força. Mais sangue e dor fluíram da ferida aberta. Agora suas as duas mãos estavam cobertas de vermelho vivo, o que só o deixou mais nervoso.

Sem que ele perceber algo avançava lentamente em sua direção de dentro da névoa. Uma espécie buzina ou alarme abafado ecoou ao longe da estrada. Mesmo sem saber de onde vinha ficou esperançoso.

- Graças a Deus. - ele suspirou tentando acalmar a si mesmo.

Entre as brumas do nevoeiro surgiu um par de luzes amarelas do que ele imaginava ser os faróis de um ônibus. Porém eram pequenas demais para algum veículo de grande porte. Estranhou o movimento das luzes que pareciam piscar e mudar de cor. Antes o par de luzes parecia um tipo de lanternas fortes, mas agora eram dois faróis vermelhos penetrando e iluminando o grosso nevoeiro branco.

Ele tremeu ao perceber que as luzes se aproximam vagarosamente em seu caminho. A mão dolorida ainda vertia finos fios de sangue pelo asfalto, e a cada gota que caia ele sentia que a coisa que o espreitava avançava como se atraído pelo líquido. Seu coração quase saltou pela boca quando a luz poste do lado do banco explodiu, o cobrindo de pequenos fragmentos de vidro e mergulhando seu redor num breu assombroso. A explosão pareceu instigar a coisa a avançar mais na direção de Miguel. Ele se afastou devagar ainda olhando de frente os olhos da coisa, que começava a diminuir mais a distância entre eles.

“Correr como se não houvesse amanhã…” As palavras da estranha garota ecoavam em sua mente assustada.

Mesmo se afastando a coisa avançava mais e mais, cada vez mais perto dele como um predador cercando uma presa impotente. Sua respiração se tornou descompassada e o coração acelerava a cada passo, com o suor frio já descendo por parte do rosto. O terror cruzou sua espinha quando se sentiu banhado por aquelas lanternas diabólicas. De alguma maneira sentiu que estava de frente para aquilo oculto pela névoa, seja lá o que fosse. Seu cérebro entendeu que sua vida dependia sair dali o mais rápido possível.

Num ato de desespero ele deu as costas para a coisa e começou a correr pra dentro do nevoeiro com todas as suas forças. Seus passos cortavam a névoa com rapidez e desespero, indo cada vez mais rápido num ritmo impossível de se manter por muito tempo. Mesmo assim continuou se movendo, impulsionado pelo medo que o perseguia de perto. Ele avançou às cegas no branco leitoso do nevoeiro. O desejo de alcançar algum lugar seguro lhe dava alguma esperança temporária. Adentrou mais e mais o desconhecido, porém nem chegava a ver o chão com clareza total. Mesmo assim ainda achou algum fôlego para correr mais.

Sentindo ainda o par de olhos assombrados em perseguição ele forçou um pouco mais as pernas já cansadas a trabalhar. Então elas começaram a falhar. Seus olhos avistaram algo a sua frente, algo como uma clareira a poucos metros. Miguel então se esforçou mais um pouco atravessando a névoa até o local. Pra sua surpresa ele encontrou apenas um banco de madeira, um poste e parte da estrada. Parando por um momento apoiou os braços trêmulos sobre as pernas cansadas tentando respirar devagar na tentativa de manter algum fôlego. É inútil. As pernas queimam e o pulmão pesa como pedra.

Enquanto tentava algum descanso reparou que de alguma forma estava no mesmo cenário que estava antes, como se tivesse corrido em círculos. Tudo que tinha visto no ponto de ônibus antes está ali novamente. Mas antes que pudesse absorver aquilo um ruído animal cortou o ar com uma fúria monstruosa, quase selvagem, numa distância mínima dele. Não havendo o que fazer, ele apenas correu, avançando novamente através da fumaça do nevoeiro, acelerando com toda a força que ainda lhe restava, quase sentindo o bafo quente da criatura em seu encalço. Ao virar rapidamente sua cabeça ele viu o par de faróis vermelhos quase incandescentes numa perseguição implacável avançando com facilidade e sem trégua. Se ele tropeçasse ou mesmo parasse de correr não teria chance alguma. Tinha que achar um lugar seguro.

Mais uma vez a sua frente foi possível ver algo fora da névoa. Ele apertou os olhos cansados e viu uma estrada, o mesmo poste e o mesmo banco. De novo. Entendendo que aquilo era o mesmo lugar que já tinha passado novamente ele não parou. Miguel passou direto, vendo o mesmo ponto de ônibus mais uma vez ficar pra trás. Idêntico. Sua cabeça não entendia aquilo, na verdade não entendia nada do que estava acontecendo. De novo ele atravessou mais uma clareira idêntica, com o mesmo ponto de ônibus, duas três, quatro vezes. Ele arfava e o suor frio descia pelo rosto, o cobrindo junto com as primeiras lágrimas de desespero. Sentia o calor e o brilho dos olhos da besta chegando rápido. Ela rosnava com ferocidade a passos curtos demais para gerar alguma esperança ao assustado rapaz. Novamente ele passou pelo ponto não coberto pela neblina entrando novamente nela. Como um círculo infinito, aquilo não parecia ter fim. Um pesadelo sádico cíclico.

As pernas gemiam e gritavam de dor enquanto o ultimo fôlego parecia o deixar. Ele já não aguentava mais aquele ciclo agonizante e repetitivo. Vendo-se de novo no meio da mesma clareira suas forças se acabam ele vai ao chão, o corpo simplesmente desaba e ele cai. Seus joelhos batem com força e seu rosto vai direto na terra nua, seu torso rola na poeira do acostamento até parar próximo a uma das paredes do nevoeiro.

Percebendo que não teria mais tempo e forças para escapar da fera que ainda o perseguia, ele fez um último esforço, tentou colocar-se rapidamente em pé sobre um dos joelhos olhando na direção da fera e com olhos fechados gritou:

- Vem me pegar seu desgraçado, filho da puta!!! - a frase explodiu raivosa pela boca de Miguel coberta de saliva e sangue, vibrando alto nos quatro cantos da névoa claustrofóbica.

Com os olhos ainda fechados na direção da coisa ele esperou o fim. Que por algum motivo não veio. Seus olhos se abriram com hesitação para ver apenas a névoa fantasmagórica impassível a sua frente. Silêncio. Nada além de silêncio.

Um breve momento de esperança. Apenas isso. Pois de dentro do nevoeiro os olhos da besta acenderam, brilhando por um microsegundo na sua frente antes de avançar com toda sua fúria assassina sobre seu corpo. Um grito abafado tentou sair mais já era tarde. A dor o preencheu por completo, o cobrindo com um frio mórbido do outro mundo. Não havia mais esperança, não havia a mais chances, não havia mais vida. Um último pensamento passa por sua mente antes de desaparecer.

“Queria pelo menos dizer que a amava mais uma vez….”

Um baque na cama e Miguel acorda. A reação o quase faz cair e ele percebe na hora que estava apenas sonhando. Banhado de seu próprio suor e respirando ofegante agradece por aquilo ter sido apenas um pesadelo. Ao olhar para o teto ele começa a rir e até se sente bobo por cair numa armadilha de sua própria mente. A risada e o movimento do colchão parecem incomodar sua esposa, que dorme tranquila bem ao seu lado. Sonolenta, ela pergunta ainda de olhos fechados:

- Teve pesadelo amor?

- Sim. - respondeu Miguel com um pequeno e tímido sorriso.

Ela se mexe um pouco e se aconchega na cama tentando voltar a dormir, mais decide levantar para pegar um copo de água na cozinha. Miguel, agora sozinho, se vira na cama tenta pegar no sono novamente. Enquanto limpa o suor da testa percebe que a janela do quarto está aberta e que algo ou alguém o observa atrás das cortinas semitransparentes.

Não há tempo para uma reação. Antes de sequer piscar a sombra da besta de seu sonho está sobre ele. Uma mulher nua com feições mistas de humano e demônio o cobria com um grande par de asas negras sobre a cama. Ela o prende com uma mão só seu pescoço usando a força de dez homens contra o colchão macio. Seu corpo afunda e fica paralisado com tamanha fúria e força enquanto olha para aqueles malditos olhos vermelhos que também o fitam a queima roupa.

Cara a cara ele vê o sorriso sádico da boca do monstro se abrir para revelar grandes dentes brilhantes e afiados. O homem tenta lutar de alguma maneira tosca e desesperada, mais sem sucesso algum, pois não era páreo para a força bruta daquela coisa. O pânico o domina. Ela o pressiona com o peso de seu corpo, o imobilizando sem lhe dar chance alguma de fuga. Miguel ainda tenta lutar com os braços tentando afastar de algum modo a besta, mais tudo que consegue é sentir um frio viscoso ao tocar os braços fortes como pedra do demônio, que não se movia um centímetro se quer a todas as suas investidas.

Sem forças pra se salvar ou mesmo gritar por ajuda para de se debater se entregando já totalmente exausto. Com dificuldade faz o único movimento que pode em direção da janela aberta, onde vê a garota de pele pálida de seu pesadelo o observando passiva. Ela séria, olha pra ele naquela situação e diz:

- Eu disse para correr… agora nos vemos do outro lado.

E aquela foi a última frase que escutou antes de sentir os dentes da coisa se fecharem com força em seu pescoço e tudo ao redor sumir pra sempre.










 
Jeff Silva
Enviado por Jeff Silva em 20/12/2016
Reeditado em 05/02/2020
Código do texto: T5859122
Classificação de conteúdo: seguro
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