Arquivo-Morto - PARTE 1

"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você."

Friedrich Nietzsche - Para Além do Bem e do Mal.

1

Ela estava nervosa, e arrumava sua mala apressadamente. Soluçava enquanto enchia suas roupas numa pequena mala vermelha, a mesma mala vermelha daquela viagem, quando nos conhecemos. Eu tentava pensar em algo para dizer, mas não me ocorriam palavras. Respirei fundo enquanto buscava inspiração, lembrei do primeiro toque, quando esbarramos no aeroporto, ela, indo para a Espanha; eu, voltando para o Brasil. Lembrei da primeira troca de olhares, das conversas intermináveis, daquela atração irresistível, do arrepio ao toque, do primeiro beijo...e agora a via se preparando para partir, a mulher da minha vida. De súbito, do nada, palavras surgiram do meu desespero.

"Amor, nós vamos superar, juntos, vamos superar, é só uma fase, só precisamos um do outro".

Ela me olhava desconfiada, soluçava.

"Só precisamos um do outro, eu te amo, é a maior certeza que tenho na vida, e com você posso suportar tudo, mas não posso viver sem você, nunca".

Ela escutava atentamente, parecia mais calma, mas ainda hesitava.

"Pensei muito a respeito, há outras alternativas, segunda começo a procurar emprego, nem se for no chão-de-fábrica, faço de tudo para continuarmos juntos, vamos sair mais fortes disso tudo".

Ela já não soluçava, e me escutava seriamente. Ela também me amava, eu sabia, podia sentir isso na maneira como me olhava.

"Quando sai para pensar, entendi minha vida, minha vida é que você é tudo pra mim, minha vida sem você não tem sentido. Você é tudo, tudo, não vivo sem você".

Ela continuava me olhando fixamente, via as lágrimas secar de seus olhos, ela sentia o mesmo, nós nos amavámos, éramos feitos um para o outro, íamos superar essas dificuldades passageiras, nosso amor nos protegia, seríamos mais fortes.

"Passei no supermercado na volta, comprei aquela garrafa de vinho chileno que costumávamos beber. Lembra?De quando começamos a namorar?". Disse, mostrando a garrafa de Carmenére. Sua expressão mudou, recuperou a compostura, a feição chorosa sumiu de seu rosto, os lábios já pareciam esboçar um sorriso, e eu já sentia seu coração batendo em outro ritmo, lançando aquela vibração atraente em minha direção, meu coração vibrava na mesma sintonia, era inevitável, logo ela se lançaria a meus braços, me beijaria a boca, e voltaríamos a ser felizes como antes.

"Mas você é um bosta mesmo", disse ela, colocando as últimas peças de roupa na maleta vermelha "Enfia essa garrafa no seu rabo".

"Vai se foder, sua piranha sem coração", respondi, desesperado. E foi dali pra baixo, a cagada estava feita, e não tinha mais volta. Ela saiu pela porta para nunca mais voltar, e eu fiquei, bebendo o Carmenére sozinho. Segunda eu ia procurar emprego, de peão mesmo, o aluguel estava vencido, não havia comida na geladeira, e gastei meus últimos 20 reais na garrafa de vinho chileno. Puta merda!

2

A fila para o trabalho era imensa, um trabalho de merda, por um salário de merda, e isso se eu tivesse sorte. Pessoas de todas as idades aguardavam com os documentos na mão. Um sujeito baixo e careca segurava uma pastinha verde, "meu diploma do Fisk", dizia, "fiz até o nível 4". Um imbecil. Em meio àquela multidão de desesperados, eu tentava entender o que fazia ali. Eu era pra ser alguém de outro nível, de alta renda, viagens ao exterior, "American Dream". Mas minha empresa foi pro saco com a crise, e agora eu era só mais um fudido.

Os cargos disponíveis eram para uma terceirizada que prestava serviços para empresas multinacionais. Com a precarização do trabalho dos últimos anos, empresas tinham sido transferidas da China, e nós ocuparíamos empregos que os chineses não queriam. Era só o que me faltava. Com a abertura dos portões, uma onda humana adentrou os pátios da fábrica, onde postos de entrevista estavam montados por todo um enorme pavilhão. Primeiro havia uma filtragem, um sujeito gordo com camisa branca e crachá recebia os pedidos de aplicação, anotava nome, gênero e idade, e nos mandava aguardar. Não tinha água naquela merda de lugar, nem lugar para sentar. Aguardei em pé por mais quatro horas, até que enfim chamaram meu nome.

"Você aplicou para o cargo na linha de montagem?"

"É o que diz aí, não é?"

"Sou eu quem faço as perguntas. Entende as atribuições do cargo?"

"Ficar em pé, numa linha de montagem, separando parafusos, por um salário de merda". Eu não tinha mais saco para aquilo. A entrevistadora, uma mulher muito pálida e magra, que certamente não pensava muito melhor do seu próprio emprego, me olhava de canto. Ela também me achava um bosta.

"O senhor demonstra ter sérios problemas em sua vida, aguarde um minuto" Ela saiu com meus documentos na mão, vi como ela apontava para mim enquanto conversava com um sujeito com pinta de segurança. Era isso, agora ia ser enxovalhado, nem aquele emprego merda eu ia conseguir. Mas dessa vez ia cair atirando, ia enfrentar o segurança, dois, três se fosse o caso, paciência tinha limite, eu era faixa verde de aikido. Pensei melhor, eu parecia o imbecil do Fisk falando, com certeza ia levar uma surra dos seguranças, melhor não, eu ia era enfiar o rabinho entre as pernas e voltar pra casa, tomar o resto do Carmenére. Eu era um bosta mesmo. A entrevistadora voltou.

"Você tem o perfil ideal para outra vaga, não essa".

"Que vaga?"

"É uma vaga melhor, com mais atribuições, seu perfil encaixa perfeitamente. É no administrativo, fica no galpão do fundo, lá no arquivo-morto".

"Arquivo morto?"

3

Cheguei no galpão indicado pela entrevistadora pálida e magra que me achava um bosta. Era um prédio velho, de paredes amarelas e desbotadas, que contrastava com a construção recente do restante do complexo. Uma escada me levava até o último dos sete andares, onde eu deveria ser entrevistado. Não havia mais ninguém. Só eu encaixava no perfil?Que perfil era esse?No meio da sala havia uma mesinha de madeira e duas cadeiras. Me sentei numa delas e fiquei esperando. Menos de quinze minutos, uma porta lateral se abre, e dela surge um sujeito alto, de terno e gravata, óculos, uns sessenta anos de idade, aparência de um burocrata de escritório.

"Você é o candidato?"

"Sou". Ele me media pelos olhos, deveria estar imaginando quem teria sido o desgraçado que enviou esse bosta para a entrevista. Sentou-se na cadeira em minha frente, me olhando com desconfiança, Sentia que a qualquer momento ele ia me enxotar dali, indignado. Retirou um caderninho de anotações e um lápis do bolso. Continuou me encarando intensamente.

"Você sabe o que é uma Darf?"

"Sei". Menti.

"Sabe o que é que é um cupom fiscal?"

"Sei". Menti de novo.

"Sabe o que é uma Declaração Cadastral?"

"Claro que sei". Menti mais uma vez. Ele ficou quieto, me olhando com as sobrancelhas erguidas, parecia impressionado com meus conhecimentos. Quem é o bosta agora?

"O senhor está mentindo, mas o cargo é seu. O senhor começa amanhã, fiscal do arquivo morto".

Antonio Netto Jr
Enviado por Antonio Netto Jr em 19/04/2017
Reeditado em 19/04/2017
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