O Demônio Familiar VIII

Holtz colocou o arame farpado na mão dele. Ainda havia sangue no metal e a agente poderia jurar que um pedaço do osso da vítima estava preso nos coágulos que o enfeitavam morbidamente. O homem de sobretudo segurou o arame pelas pontas e colocou diante dos olhos. Cheirou e fechou os olhos, erguendo a cabeça e parando por alguns segundos, como se o tempo não existisse. Sorriu para si mesmo e depois a expressão se fechou totalmente.

A agente do FBI deu um passo para trás, incerta sobre o que sentir diante da cena, afinal agora o homem estava passando a língua sobre o coágulo. Ele espremeu de leve os lábios e a língua se movimentou sob a bochecha, como quem experimenta a fundo o sabor de uma receita nova.

- Vocês têm razão – disse.

Holtz quase perguntou quem eram “vocês”. A boca se abriu, mas as palavras travaram dentro dela quando a confusão mental que a tomara nas últimas semanas se transformou em puro medo e avisou para não perguntar sobre o que não queria saber. As forças conflituosas dentro dela já estavam em uma guerra ferrenha e não precisavam de mais um oponente.

- Onde está a criança?

Calou-se diante da pergunta, mas o semblante fechado do homem se transformou em uma ansiedade apertada e as veias em suas têmporas pulsaram como se vermes corressem debaixo de sua pele.

- Responda-me, Jessica.

- O que quer com a criança?

- Eu preciso dela.

- Para quê?

- Você só vai saber quando estiver plenamente comprometida com a missão.

Havia algo de ruim naquilo, mas a agente não conseguiu evitar. Ela queria aquela perversidade dentro dela de um modo tão insano. As cenas terríveis surgiram como um soco em meio às lembranças e à razão, dissolvendo os pensamentos e os usando para afogar a consciência. De repente, ela queria responder á pergunta e participar a missão, afinal aquilo se tornara parte dela. Era uma responsabilidade nova que a dominava.

- Está na casa da tia.

- Você vai deixar a tia me convidar para entrar. Vai tratar disso.

As lembranças dos momentos posteriores ao encontro desapareceram. Nem sabia onde ocorrera, a não ser que era num beco escuro e as trevas se adensavam sobre os dois. Quando deu por si, abraçava o marido e chorava naquela noite fria. Não respondeu a nenhuma pergunta. Apenas pediu para que a deixasse chorar. Assim ela continuou por horas, até ele, o esposo, dormir em meio aos cobertores. Passou a mão sobre seu peito e subitamente sentiu um asco diante da pessoa que costumava amar. Uma ânsia de vômito quase a fez acorda-lo desagradavelmente. Levantou-se e o deixou, como se livrasse de um verme que estivera a forçando a uma vida desnecessária.

Foi até a janela do quarto e observou as luzes acesas da cidade, pensando na criança que estava para se encontrar com seu mais novo parceiro de conspirações. Seria na noite seguinte e Holtz precisa se decidir logo sobre qual atitude tomar.

Lembranças súbitas das últimas palavras do homem obscuro a fizeram tremer:

- Você precisa se comprometer logo e talvez essa seja a hora. Ouço isso todos os dias e a sede aumenta dentro de mim. Você sente essa sede pelas trevas?

Ela tinha vergonha de saber que sentia. Uma vergonha que a perturbava por dentro, como se o arame ensangüentado que entregara agora estivesse envolta da alma, torturando-a com arranhões metálicos e dando-lhe uma vontade de gritar imensa, enquanto a parte mais profunda dela sentia um prazer masoquista naquela sensação.