Memória

Eu sempre duvidei dessas histórias de paranormalidade. Achava, com razão, que se tratava de balela utilizada por charlatões para extrair dinheiro de ignorantes. Afinal, até na minha pequena cidade existia um monte de adivinhos, cartomantes e tarólogos que esperavam que alguma vítima fosse até eles para lhes surrupiar seu dinheiro. Muitos dos problemas que levavam as pessoas a consultar esses mestres do oculto podiam ser sanados de forma eficiente ao tomar uma boa dose de bom senso, higiene e idas regulares ao médico.

Esse meu preconceito foi em parte quebrado há oito anos, quando me mudei pra cá. Eu e minha família, que consistia, além de mim em meu pai, minha mãe e minha irmã mais nova, ocupamos uma casa na periferia, pequena e confortável. No quintal, tinha um pé de manga que tornava as tardes quentes em tardes suportáveis. Eu gostava de passar as tardes ali, aonde depois de chegar da escola ia me deitar embaixo, enquanto aproveitava a brisa matutina. A escola em que eu estudava era pública, num complexo onde funcionavam mais outras duas escolas.

Quanto às amizades, não tinha nenhuma. Ou melhor, uma. Um senhor de idade que morava a uns cem metros de minha casa. Também saía poucas vezes, de manhã ia ao mercadinho, à tarde, aproveitava o sol do ocaso para fazer sua caminhada. Seu nome era Lázaro, rapidamente ganhou sua amizade, talvez por falta de gente da minha idade na rua, que só tinhas nossas casas. Jogávamos dominó e por vezes eu o ajudava a cuidar do seu jardim. Guardava em seu rosto uma espécie de tristeza que não pude constatar logo de início. Ele até tinha ido lá em casa para tomar um cafezinho, convidado pela minha mãe.

Dificilmente eu saía para outro lugar além da escola. Minha rotina era pode parecer terrivelmente tediosa para você. Acordava, ia para a escola, voltava, dormia durante a tarde, jantava, dormia, acordava novamente. Um ciclo sem fim de monotonia quase palpável.

Então eu a vi.

Parecia ter saído daqueles livros de fantasia onde as mocinhas tem pele pálida, compleição frágil e olhos com cores que parecem ter sido retiradas da natureza. Pois bem, fiel a esse retrato era ela. Ela estava andando pelo terreno baldio situado atrás de casa. Parecia uma visão de um anjo, entorpecida pela minha mente que despertara do sono, mas não totalmente ativa. Quando pisquei, ela tinha sumido. Fiquei naquele estado de quase sono por mais alguns minutos, quando de fato acordei, pensei que aquela visão tinha sido uma alucinação causada pelo sono, uma espécie de sonho vívido.

Passei dias com aquela imagem na minha cabeça, lembrando-me dela quase a todo instante. Por um tempo, quis me esquecer daquela visão, mas depois quis experimentá-la novamente, como uma droga absurdamente viciante.

E então, ao acordar de meu sono vespertino a vi novamente. Chamei-a. Dessa vez, não sumiu no ar. Virou-se ao me escutar. Quando fui ao seu encontro, notei que realmente eu não havia sonhado naquele outro dia. Parecia mais pálida que da outra vez. Quando conversamos, perguntei se morava nas redondezas, já que eu mesmo morava lá há vários meses e nunca tinha isto ela por ali, exceto naquele dia. Ela então simplesmente apontou para a casa do seu Lázaro, lá longe. Ela só podia ser alguma neta dele, pois ele nunca havia falado que tinha uma filha. Mas ela mesma falou desmentiu essa hipótese. Era mesmo uma filha.

Depois disso nossa conversa simplesmente morreu, e eu fui pra casa. Quando lá cheguei, estava o seu Lázaro tomando café, relaxado no sofá surrado. Quando eu perguntei sobre a moça que disse ser sua filha, me espantei com sua reação. Arregalou os olhos, que se umedeceram de lágrima quase que instantaneamente. Quase engasgou com o café e respondeu num fio de voz:

– Filha?!? Minha única filha morreu há mais de vinte anos!

Francisco Tavares
Enviado por Francisco Tavares em 26/07/2017
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