CABEÇA DE PONTE, parte 1
OS CONTOS DO APOCALIPSE, 2
Miguel Carqueija


Angélica chegara ao litoral. Estava apressada pois insistentes rumores colhidos no caminho davam conta de uma tentativa de desembarque no promontório situado nas proximidades. Um grupo não identificado tentara desembarcar clandestinamente mas havia sido repelido. Agora, dizia-se, dirigia-se para o norte, acompanhando o litoral. “Ninguém acredita”, pensou ela, “que as forças do Anticristo venham, sem ser em massa para um verdadeiro Dia D. Mas essas forças são diabólicas e tentam de tudo.”
O grito de Ariel fez com que olhasse para o alto. Muito acima das dunas praieiras outro falcão se aproximava. Ariel e a outra ave passaram a voar em círculos uma atrás da outra, reconhecendo-se. Angélica sorriu. Lá adiante vinha chegando a Irmã Eugênia, sua colega na irmandade das freiras guerreiras. As duas religiosas desmontaram e correram a se abraçar mas antes, de súbito, Eugênia jogou água benta sobre Angélica.
— Que está fazendo?
— Temos de tomar nossas precauções. Você poderia ser um demônio disfarçado.
— Bofé! Como assim, criatura? Eles não suportam o crucifixo!
— Em princípio... mas eu tomo a precaução por via das dúvidas.
— Você terá de jogar água benta em todas as pessoas que encontrar pela frente, e logo ficará sem água benta.
— Bom. Você veio aqui pelo mesmo motivo que eu?
— Em geral temos sempre o mesmo motivo. Sim, dizem que há um navio tentando aportar mas sem autorização.
— Isso é muito suspeito, mas esse pessoal estaria se arriscando muito se estivesse vindo só com um navio.
— Podem estar sendo escoltados por um submarino.
— E as autoridades locais?
— Puseram umas corvetas patrulhando por aí.
— Talvez não sejamos necessárias mas já que estamos aqui, podemos prosseguir para a região das dunas. As pessoas gostam de nos ver, isso levanta a moral...  Sentem-se mais seguras, mas somos tão poucas!
Cansadas de voar as aves vieram pousas nos ombros de suas respectivas donas. Angélica ajeitou uma mecha dos cabelos e sorriu: — Vamos montar. De qualquer forma não se avista nada daqui. Assim fizeram e Eugênia, mais alta, mais magra e mais velha que Angélica, observou: — Nossos falcões podem rapidamente abarcar uma área do mar bem maior que as corvetas...
— Isso é verdade. Mas corremos perigo. Os satanistas podem ter também seus auxiliares alados.
-- Morcegos, talvez?
— Sim, eles os utilizam muito...
— Morcegos não poderiam com os nossos falcões.
— Alguns, não. Mas se for um bando enorme...
— Temos de arriscar, Angélica. Nós próprias estamos dispostas a dar a nossa vida pela causa de Cristo.
— Está bem. Nossos falcões são criaturas safas. As duas freiras instruíram suas sentinelas a não se arriscarem demais e lá foram elas, agora em vôo silencioso. Angélica e Eugênia puderam-se a rezar o Rosário, de pé para não serem surpreendidas. Curiosamente foi o Dengoso (Angélica achava ridículo o nome do cavalo da amiga) quem deu o alarma, bufando. Elas avistaram a distância, mas bem perto da praia, uma ondulação suspeita. A noite caía rapidamente. Elas recorreram a suas lunetas penduradas em seus pescoços. Conseguiram avistar o periscópio.
— Devem ter mudado de plano — observou Angélica.
— Quem será tão importante que estejam se arriscando assim?
— É o que iremos ver. Olha, nossos falcões voltaram!
Realmente eles vinham chegando rapidamente mas transportavam alguma coisa. Logo dois corpos negros se desprenderam e caíram vertiginosamente na gré.
— Morcegos! Nossas suposições estavam corretas!
Os dois quirópteros estavam bem mortos mas os dois falcões, ao pousarem nos ombros das respectivas donas, vieram com alguns ferimentos. — Isto foi uma boa escaramuça — observou Eugênia. — Só um bando dessas criaturas daria trabalho às nossas aves.
E as duas aves de rapina, excitadas, davam a entender com seus pios que o inimigo estava se aproximando.
— Temos de pensar rápido — disse Angélica. — Recuamos, damos o alarme, chamamos reforços... ou encaramos o que vem por aí?
— Não temos tempo de esperar reforços. Vamos mandar um comunicado ao convento e outro à autoridade local, mas ficaremos por aqui. Além disso “eles” devem ter visto os nossos falcões. Já sabem que freiras de Santa Joana D’Arc estão na área.
Elas trataram de enviar mensagens com seus comunicadores. Entretanto havia um pensamento que partilhavam mas hesitavam em expressar. Por fim Eugênia observou:
— E aí, Irmã Angélica... sairemos vivas?
— Peçamos proteção ao Céu... e não pensemos nisso. Vivamos ou morramos... seja tudo para a glória de Deus.
(continua)
(26 de maio – 11 de julho de 2017)
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 15/08/2017
Reeditado em 15/08/2017
Código do texto: T6084920
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