O Demônio Familiar IX

- Vocês querem comer alguma coisa? – perguntou a senhorita Kenson com aqueles olhos claros e açucarados de velhinha bondosa. Ela não era nem tão velha quanto aparentava, mas passava essa imagem ao andar com roupas fora de moda e sempre aparecer oferecendo comida, como quem quer fazer amizade conquistando pela boca.

Holtz olhou para o prato de quitutes estendido. Havia alguns doces gostosos que ela adorava; brigadeiro entre eles. Lambuzava-se com eles sempre, desde criança. Pensou em estender a mão para pegar um, mas Ford estava ao lado, com aquele olhar sisudo de quem assumia a liderança mais uma vez e não queria nada fora do protocolo.

- Não, obrigado, senhorita Kenson – rejeitou o agente sem mudar a expressão diante da face carente da mulher. – Nós vamos circular pela casa para tentar encontrar brechas. Imaginamos que o garoto possa ser vítima de perseguição.

- O meu sobrinho? Coitado! Alguém o perseguindo? Já foi um trauma perder meu irmão daquela maneira. Ele tratava tão bem o coitadinho! Agora quem vai poder educá-lo?

- Caso a senhorita não se sinta capaz, o Estado pode indicar um guardião ou responsável pelo garoto até abrirmos uma possibilidade de adoção.

A mulher arregalou os olhos para Ford. Holtz tossiu estarrecida, mesmo sabendo que a delicadeza estava na lista das características banidas da personalidade de Ford. Ela suspeitava que diariamente ele escrevia uma lista delas e as vinha banindo desde a adolescência, cortando uma a uma até que restasse apenas um arremedo de gente ou um homem biônico.

- Eu posso educá-lo e tratá-lo muito bem como o pai dele tratou. Essa semana eu o levarei para uma festa de aniversário.

- Ninguém duvida que a senhora poderá educá-lo. Não foi isso que o agente Ford quis dizer.

- Senhorita – corrigiu Kenson.

- Vamos fazer uma vistoria, Holtz – disse Ford, interrompendo. – Senhorita Kenson, os outros agentes estarão no jardim e no quintal. Eles não incomodarão a senhorita. Só vamos pedir para que avise sobre qualquer visita.

Jessica Holtz seguiu o companheiro pensando em seu primeiro nome. Depois de tanto tempo, eles deveriam se tratar pelo primeiro nome, mas o máximo de proximidade que conseguiram foi um dia tomarem um café juntos, quando ela finalmente conheceu o filho do parceiro. O menino era quase tão sério quanto o pai, mas mais amigável, quando o olhar paterno não o punha afastado de quem o rodeava.

Começaram a ronda pela casa. Tinha dois andares, apesar de ser pequena. Havia pinturas de gatos e flores por toda parte, todas com assinatura da senhorita Kenson. A velha não deveria ter muito para fazer além de pintar, tricotar e pensar. Os móveis estavam todos lustrados e brilhantes, perfeitamente dispostos, de um modo que deveria haver marca de sua posição. Eram claramente antigos, mas tão bem cuidados que pareciam obras primas.

- Não estamos aqui para nos relacionar, Holtz – disse Ford, quando haviam alcançado o segundo andar. Olhou por uma janela e verificou se estava trancada.

- Não custa nada ser educado, mesmo assim – disse ela, quase entre os dentes.

O parceiro a encarou com o cenho franzido e meneou de leve a cabeça em uma atitude nítida de desprezo. Aquilo torceu toda a vontade e consciência da agente. O que restava do torpor que a impedia de tomar as decisões se rompeu e aquele calor obsceno tomou conta dela de novo, agora acompanhado pelo desprezo pelo companheiro. Nem notou quando a mão foi para a arma, pois os olhos estavam ocupados demais imaginando a nuca de Ford explodindo e o sangue tocando os lábios enquanto a bala seguia rumo pela boca dele, enchendo o ar de minúsculas gotas vermelhas até alcançar a parede.

O cheiro de sangue tomou as narinas de Jessica. Ela passou a língua pelos lábios, faminta por vingança e pela sensação de matar. Não conhecia aquela vontade. Sabia no máximo o que era odiar alguém, como as garotinhas mimadas do colegial, a quem sempre quis humilhar e bater até que o rostinho bonito se transformasse numa imagem de dor pintada a sangue e fúria.

- Nossa! Que arma bonita! Deixa eu ver? – disse alguém, surgindo das escadas.

Era o menino. Ele a observava com olhos azuis brilhantes com o mesmo tom pedinte da tia, só que com uma satisfação interior que não era possível encontrar na mulher. Aquilo torceu a raiva de Holtz e foi uma parte desconhecida dela que a fez parar e guardar a pistola.

- Não pode, não – disse.

Ford estava os olhando e aprovou a atitude. Holtz quis cuspir no parceiro e chutar o garoto escada abaixo. Mas aquela parte desconhecida a disse para não fazer isso.

- Desculpa – falou o garoto, encolhendo-se. O brilho desapareceu dos olhos e agora havia um ódio que deixou Holtz contente. “Não se aproxime desse ódio”, avisou aquela parte que ela não conhecia. “Procure pelo brilho!”

Ela respirou fundo e estendeu a mão para a criança. Não entendeu o motivo, mas sorriu. Aquele toque a fez sentir uma onda de calor e excitou as partes menos sugestivas de sua mente e eriçou os cabelos da nuca.

- Vamos, Holtz.

- Vá você. Você não precisa de mim para isso. Vou levá-lo lá para baixo e verificar mais uma vez a cozinha.

Suas mãos suavam enquanto descia a escada com ele. O garoto se agarrou a ela.

- Você não está com raiva de mim?- perguntou.

A voz desconhecida dentro da mente dela, aquela estranha que avisava o que não queria saber, mandou que respondesse delicadamente. Holtz ignorou tanto a criança quanto a intrusão na mente. Ela preferia se concentrar em outra coisa. Quando o menino insistiu puxando-lhe a mão, riu de volta como se fosse o lobo preparando a armadilha para o Chapeuzinho Vermelho.

- Quer uma pizza? – perguntou.