PESADELO

PESADELO
Miguel Carqueija



O Doutor Gumercindo Macieira Dantas chegara cansado e sem disposição sequer para assistir o Rambo que colocara em seu aparelho de vídeo. Só queria dormir. Tomou um banho cuidadoso, eliminando os vestígios de sangue nas unhas, esquentou um lanche rápido e consumiu-o entre bocejos. Uma fatia de empadão de galinha com café bem forte e algumas bolachas com queijo pareceram-lhe suficientes. A cama o esperava.
Aproximou-se da cama, quase cambaleando. Puxa, como aquela chimpanzé dera trabalho! Sim, às vezes cansava muito. E a luz faltar justamente na hora dos elétrodos... isso é que dava ser pesquisador no Brasil.
Não se conseguia nem receber animais saudáveis. A chimpanzé morrera depressa demais, em consequência da dor e dos choques elétricos. Dantas precisava que ela aguentasse mais uma semana, para complementar as suas observações. Agora teria de começar a briga para conseguir outro exemplar.
Gumercindo bocejou longamente, já na cama. As pálpebras pesavam como chumbo. Ainda têm uns idiotas que rezam antes de dormir, pensou ele. E adormeceu completamente.
Em pouco já roncava.

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As luzes se acenderam de súbito.
— Que é isso?
Dantas já não estava em seu quarto. Estava numa estranha sala, cheia de luzes semelhantes às dos estúdios de televisão, direcionadas sobre ele, ofuscando-o. E ele próprio estava sentado numa cadeira de lenha e couro, preso com correias aos braços, às pernas e às costas de mesma. Remexeu-se, tentando se libertar. E então observou, horrorizado, os demais presentes.
Ali estavam diversos chimpanzés, todos com batas brancas, vários cachorros, gatos, porquinhos da Índia, ratos brancos e coelhos. Os chimpánzés portavam diversos objetos médico-cirúrgicos, moviam-se e confabulavam pelo aposento; os demais animais, agrupados em círculo ao redor da cadeira, fitavam-no com olhos de acusação.
— Que faço aqui? Quem me prendeu? Socorro!
Um dos símios olhou bem para Dantas e falou:
— Hoje, humano, é o dia do seu julgamento. Nós, a quem você torturou e matou, o temos finalmente em nossas mãos.
Incrédulo, Dantas percebeu que se tratava da fêmea que fôra aparufasa a uma cruz de aço, tivera o ventre aberto e o filhote eletrocutado no útero e recebera ainda uma séire de torturas dantescas antes de morrer, e da qual ele se recordara quando estava para adormecer.
— Só que não lhe injetaremos curare — prosseguiu a chimpanzé, segurando um escalpelo. — Queremos que se debata e muito.
— Hein?
Um cachorro branco, que tivera suas patas serradas em vida (agora elas lá estavam de volta, inteiras), começou a latir para ele, furiosamente.
— Calma, Rex! — disse um chimpanzé macho, a quem Dantas extraíra os olhos — Hoje ele será castigado.
Aproximou-se de Dantas, empunhando um alicate.
— Vamos começar pelos dentes. Naturalmente não lhe daremos anestesia, pois você nunca nos deu. Amor com amor se paga.
— Como vocês podem falar? O que querem de mim?
Se aquilo era um pesadelo como é que ele não conseguia acordar, por mais que se agitasse? Debateu-se, gritou, esgoelou: em vão.
Fizeram-no abrir a boca. O alicate pinçou um dente canino e puxou com força.
Dantas urrou de dor.
— Grita, carrasco! — disseram em uníssono as vozes dos antropoides.
Arrancaram-lhe dente após dente. O sangue jorrava de sua boca. A fêmea aproximou-se então com o escalpelo:
— Chega de gritos. Perturbam a nossa concentração. Temos de fazer observações cuidadosas.
Aproximou o escalpelo da boca do médico.
— Não, a língua não!!! — gritou Dantas, louco de dor e terror.
— Vemos primeiro abrir a barriga e puxar os intestinos para fora, como ele fez comigo — disse outro macaco. — Deixe-o gritar mais um pouco, Chica.
— Mas ele não deixou você gritar, Boris. Lembra-se de cono ele mutilou suas cordas vocais?
— Isso é verdade. Mas assim mesmo... como é bom ouvi-lo gritar!
— Monstros! — berrou dantas, em desespêro. — Como podem torturar assim um ser humano?
Boris encarou-o.
— Ah, é? Então como você pôde torturar tantos animais, sabendo que nem utilidade existe nisso... que a sua Medicina não precisa de torturas? Estrebucha, desgraçado! Que isso ainda é pouco...
A faca penetrou no ventre de Gumercindo. Incrédulo, perplexo, ele assistiu o seu intestino ser desenrolado para fora como a estopa que um mágico puxasse da cartola.
Dantas pôs-se a gritar como um possesso, como se nada mais lhe restasse fazer na vida.
Chica adiantou-se.
— Pois bem, Dantas: vou amputar sua língua, e depois estaremos prontos para experimentar o LD.50 em você.
Pela mente atormentada d eDantas passou a imagem do LD-50: a “Dose Letal 50%”, isto é, a administração, por todos os meios possíveis (bucal, nasal, anal, dérmico, intravenoso, subcutâneo e ocular) de remédios, pesticidas e cosméticos... para testar sua toxidade.
Algo que normalemente se faz com animais.
— Não! Não, pelo amor de Deus! Não me façam essa infâmia!
— Falou em Deus, doutor? Para que esse fingimento? Desde a faculdade você perdeu a fé em Deus. Você não acredita n’Ele!
E aproximou o escalpêlo da boca de Dantas. Este prosseguia:
— Não! Não! Nããão.....

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— Acorde, homem!
— Para que tanto espetáculo?
— Puxa, deve estar maluco!
Gumercindo abriu os olhos, em sobressalto. Quase pulou da cama, porém foi contido. Lá estavam vários vizinhos seus, alguns de pijama.
O Afonsino resumiu tudo:
— Quase chamamos a polícia. Você estava gritando tanto que parecia possuído por mil diabos. Que foi que houve, homem? Encheu a cara ou o que?
Rostos, rostos. Todos aborrecidos, incomodados pelo sono perturbado.
Uma mulher observou:
— Foi preciso arrombar a sua porta. Nunca vi um pesadelo tão forte! O senhor deve andar muito nervoso...
— Puxa, desculpem-me... foi de fato horrível...
— Mas afinal, homem, que foi que você sonhou de tão horrível? No fim você gritava: “Não me façam essa infâmia!”
Dantas ia responder ao Afonsino mas um pensamento cruzou sua mente: dizer o que? Que no sonho estava sendo torturado pelos animais que normalmente ele torturava? Coisa que ninguém sabia em detalhes fora do laboratório?
— Eu... eu... sonhei que estava nas mãos de assaltantes. Desses que fazem crueldades. Foi terrível, mas felizmente foi só um sonho!
Não se atreveu a dizer: “Graças a Deus, foi só um sonho!”
No dia seguinte, para espanto geral, o Dr. Dantas pediu demissão no hospital e, torturado pelos remorsos, abandonou a Medicina.
Meses depois, com as economias que tinha, abriu uma sorveteria.

(27/9 a 20/10/1988)


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