O CONVIDADO ESPECIAL – CLTS 01

A vida de Lucas não era das mais fáceis. Desde os dezesseis anos de idade trabalhava exaustivamente em uma grande oficina mecânica. Havia herdado o ofício do pai ainda muito jovem, dando prosseguimento a uma longa linhagem de trabalhadores braçais. Achava que existiam empregos melhores, mas estava satisfeito com seu salário e gostava de não precisar pensar muito durante as horas em que se empenhava para consertar algum veículo. Agora, aos vinte e seis anos de idade, era visto como um rapaz extrovertido e de boa aparência. Sua única dificuldade residia na timidez excessiva que sentia em relação às mulheres.

Buscando reverter este quadro, decidiu acompanhar os colegas de trabalho até uma grande calourada. Foram juntos a um bairro predominantemente universitário e escolheram o bar mais agitado da região. Não demorou muito para que Lucas se visse sozinho no balcão, bebendo com amargura um copo de cerveja enquanto seus amigos se lançavam na pista de dança e se esfregavam em jovens estudantes ao som da nauseante dupla sertaneja que se apresentava ao vivo. Estava prestes a ir embora quando percebeu que alguém o observava.

Ela estava sentada alguns bancos à esquerda de Lucas. Tinha pele clara e usava pouca maquiagem –uma sombra preta se esfumaçava no canto dos olhos e um batom de tom carmim lhe coloria os lábios volumosos. Os cabelos longos caiam em ondas até metade das costas e o vestido preto se moldava com perfeição ao redor do corpo esguio. A confiança de Lucas, já bastante fragilizada por problemas de autoestima, vacilou ainda mais e ele não pôde sustentar o olhar da moça. Precisou fazer o habitual jogo onde dissimulava despretensão e fingia desinteresse, observando-a discretamente antes de finalmente tentar a sorte.

Ficou surpreso quando a jovem aceitou o drink que ele oferecera. Se apresentaram um ao outro – ela se chamava Madalena, a propósito – e a partir de então tudo aconteceu numa progressão muito rápida. Conversaram longamente enquanto bebiam e depois, quando estavam mais familiarizados um com o outro, foram dançar no salão do bar. Se beijaram algumas vezes e a mente de Lucas ficou extasiada, incapaz de acreditar na veracidade daquele momento. A bebida e as luzes amareladas, associadas ao crescente interesse que sentia pela garota, causavam um estado de euforia meio confuso, mas extraordinário apesar disso. A timidez parecia ter sido varrida pelo álcool.

Quando Madalena o convidou para terminarem aquela dança em outro lugar, Lucas não precisou hesitar. Concordou quase imediatamente, acenando na direção de um de seus amigos para indicar que estava de saída. O outro rapaz lançou lhe um olhar de aprovação e sorriu. No caixa, Madalena não aceitou ter sua conta paga por Lucas, o que ele interpretou como sinal claro de independência. Já estava chamando um Uber quando a moça o interrompeu, dizendo que viera de carro. O orgulho do rapaz se afetou um pouco – ele trabalhava em uma oficina e ainda não tinha carro próprio, mas o embaraço logo foi substituído pela excitação do momento.

A jovem dirigia como se não tivesse ingerido uma única gota de álcool. As janelas abertas deixavam entrar o hálito quente do verão e, enquanto contemplava Madalena, Lucas percebeu um certo excesso de fios brancos em seu cabelo esvoaçante. Não deu muita importância àquilo porque havia conhecido garotas mais jovens e mais grisalhas. Simplesmente abstraiu-se da constatação e voltou a entoar com ela os versos dançantes de uma música que tocava no rádio. Não muito tempo depois, Madalena estacionou na frente de uma casa grande, de dois andares. Parecia uma residência antiga demais para uma mulher tão contemporânea quanto ela.

Lucas observou a fachada de concreto e viu camadas de tinta se desfazendo, dando lugar a grandes manchas de umidade. O clarão do luar mostrava que a maioria das janelas eram protegidas por barras de metal, algo que pareceu perfeitamente natural quando observadas às expressivas taxas de criminalidade e desaparecimentos que a cidade apresentava. Faltavam algumas telhas na varanda do segundo andar, ele notou, e as árvores que ornavam o jardim acentuavam o negrume que envolvia a propriedade.

Desceram juntos do carro e passaram pelo portão metálico. Depois de um momento, cruzaram o jardim e subiram três ou quatro degraus até a soleira da porta. Enquanto a moça revirava um molho de chaves, ele notou um par de olhos furtivos brilhando na escuridão do jardim. As folhas difundiam demais a luz da lua, e a pouca luminosidade permitia distinguir pouca coisa. Achou que se tratava de um gato se esgueirando por cima de algum muro.

O brilho daqueles olhos, antes a um metro do chão, começou a se mover para cima. Folhas secas estalaram e ecoaram em algum ponto além daquela escuridão densa. Um arrepio incomum percorreu a espinha de Lucas. Estava prestes a chamar a atenção de Madalena, pretendo mostrar-lhe o que seus olhos incrédulos enxergavam quando ouviu a moça girar a chave na fechadura. Olhou para trás e foi surpreendido por outro beijo apaixonado. A moça o tragou para dentro da casa e ele a acompanhou sem pestanejar, satisfeito por deixar o mundo e os gatos e a escuridão lá fora.

O casal ficou se beijando na sala por alguns minutos. Depois, Madalena acendeu as luzes e o deixou sozinho. Disse que precisava se trocar e que logo desceria para preparar-lhes alguma refeição. Ela tirou os saltos e antes de desaparecer escada acima Lucas pôde perceber que estava mancando um pouco. Associou aquilo ao cansaço, pois a moça estivera dançando a noite toda sobre sapatos desconfortáveis. Enquanto aguardava, notou a mobília antiquada e o cheiro velho que empesteava o ambiente. Pensou ter sentido aroma de incensos ou velas também, mas não deu muita importância àquilo.

Madalena reapareceu alguns instantes mais tarde, já sem maquiagem alguma e vestindo apenas uma camisola larga, semitransparente. Através da fina vestimenta o rapaz percebeu uma pele não muito firme. “É engraçado como o álcool muda a perspectiva das coisas”, ele pensou. “A maquiagem também, imagino. No bar ela parecia pelo menos uma dezena de anos mais jovem”. Apesar disso, acompanhou-a de bom grado até a cozinha, onde a moça preparou um saboroso caldo de carnes e ervas.

Enquanto comiam, o efeito do álcool pareceu se distanciar de Lucas. Agora, sob a luz fraca de uma cozinha um tanto desorganizada, ele notava ramos de ervas pendurados, além de grandes recipientes de vidro com raízes e coisas semelhantes. O cheiro de planta era forte lá dentro. Porque não tinha reparado nisso antes? “Acho que preciso parar de beber”, pensou consigo mesmo. Era como se estivesse saindo de um estado de entorpecimento. Tentava transparecer calma e naturalidade em sua voz, mas estava cada vez mais difícil manter a conversa com Madalena. Vez ou outra a moça lhe direcionava alguns sorrisos provocativos, mas os dentes dela sempre tiveram aquelas manchas escuras? Acreditava que não.

Quando ela se levantou para buscar água, Lucas notou que seu corpo não parecia mais tão esguio e sensual. Na verdade, já identificava gordura localizada e celulites, características que não lhe causariam incomodo algum, não fosse o fato de a pele dela se tornar cada vez mais frouxa. Era inacreditável. Surreal. A moça com quem dançara mais cedo não se parecia em absoluto com aquela mulher que agora se virava e sorria para ele de um modo desconcertante. Álcool e maquiagem poderiam fazer seus pequenos milagres, mas aquela transformação era impossível. E o pior, foi acontecendo de modo tão sutil e gradual que seus olhos só percebiam agora o absurdo da situação.

A própria voz de Madalena parecia envelhecida. Ela percebeu o olhar confuso do rapaz e perguntou se estava tudo bem. Seu tom de voz mascarava alguma coisa perversa. Era como se esperasse que Lucas perdesse o controle, como se esperasse que ele lhe perguntasse como poderia ter envelhecido tanto em tão pouco tempo. De repente, Lucas percebeu que estava em perigo. Seus instintos mais primitivos assumiram o controle e cada célula de seu corpo gritava em alerta. Sua pele foi tomada por um arrepio permanente e um tremor leve já era perceptível em suas mãos. Precisava sair dali o quanto antes, e para isso traçou o melhor plano que pôde.

Perguntou a velha onde ficava o banheiro. Tentou sorrir, fingindo não perceber qualquer mudança em sua aparência. Madalena, por sua vez, sorriu em resposta, o emaranhado de fios cada vez mais brancos balançando levemente enquanto indicava o corredor que ficava além da cozinha. Lucas saiu tranquilamente, e quando passou ao lado da anciã sentiu um cheiro antigo de terra mofada. Ao sair de seu campo de visão, começou a caminhar mais rapidamente. A casa parecia muito mais fria agora. Uma atmosfera pesada fluía de todos os cantos e paredes. Quando chegou a porta, o alívio já se manifestava no rosto do Rapaz. Ele então girou a maçaneta e percebeu que estava trancado na casa.

O medo e a tensão se misturavam ao desespero que Lucas experimentava. Ouviu uma cadeira se arrastando na cozinha e correu para a janela, afastando as finas cortinas brancas para dar de cara com as barras metálicas que tinha visto do lado de fora. A essa altura, o coração do rapaz estava quase saindo pela boca. Tinha aberto a janela devagar e tentava forçar as barras de ferro quando uma forma alta e tortuosa começou a caminhar na direção da casa, vinda do ponto onde antes brilharam os olhos do gato. Ao ver a criatura se movendo nas sombras, uma onda de calor intenso se apossou do corpo de Lucas. Era o medo liquefeito em sua forma mais pura. O terror manifestado.

Então o transformador do poste que ficava exatamente em frente a casa explodiu. O bairro inteiro mergulhou na escuridão e a residência caiu em trevas. Uma luminosidade fraca atravessou as cortinas e inundou a sala. O clarão de uma vela cintilou na escuridão, e a voz milenar de Madalena cortou o silêncio da madrugada. “Quero que você conheça alguém, Lucas. Meu convidado especial acaba de chegar”. Lucas ouviu passos vindos do jardim. O som era semelhante ao barulho de cascos de cavalo, mas pareciam vir de duas patas ao invés de quatro. Algo bateu vigorosamente na porta de entrada, e então a velha despontou da cozinha, a luz tremeluzente da vela crepitando pelos corredores.

Antes que pudesse ser visto, Lucas correu escada acima. Quando chegou ao segundo andar, abaixou-se e postou-se atrás do guarda corpo. Escondido, observou Madalena cruzar a sala. Estava completamente nua agora, os cabelos grisalhos lançando sombras pavorosas em todas as direções. Ela chegou até a entrada da casa e girou a maçaneta. A porta que estava trancada menos de um minuto antes se abriu como num passe de mágica, e então ele entrou. Precisou se abaixar para passar pelo marco da entrada. Lucas observou com horror crescente que a criatura devia ter pelo metro três metros de altura. Se contasse com os chifres tortuosos, talvez tivesse mais. Seu corpo magro se curvou outra vez e os lábios da velha tocaram a boca desforme da aberração.

Subitamente, o convidado de Madalena olhou nos olhos de Lucas. O rapaz, que julgou já ter atingido o estágio mais avançado do medo, mergulhou em um olhar mais velho que o próprio mundo. Viu a perversidade manifesta em um brilho avermelhado, severo. Uma expressão pétrea estava imortalizada no rosto daquele ser, e não restou dúvidas: Lucas estava encarando a essência do mal. E, pior ainda, viu que o mal o encarava de volta. Sabia que ele estava ali. Então o rapaz gritou e correu.

A casa continuava escura, mas uma estranha luminosidade parecia vibrar suavemente, como se as paredes emitissem uma luz fantasmagórica própria. Lucas percorreu o segundo andar, passando por cômodos e corredores sinistros. Em um dos quartos, viu montes de velas acesas e um círculo desenhado no chão. Resolveu ficar longe daquele espaço e entrou em outro quarto. Este estava mais escuro. Procurava um lugar para se esconder quando ouviu a abominação se aproximando. O som que suas patas de bode emitiam eram inconfundíveis.

Desesperado, acabou se enfiando debaixo da grande cama de casal e se arrastou até ficar de frente para a porta. Queria ver se alguém entraria no quarto. Sozinho no escuro, ouviu Madalena gargalhar em algum lugar fora da casa e então um batuque de tambor começou a tocar, formando uma música estranha, com elementos tribais. Nesse momento, as patas de bode surgiram no corredor. Lucas ouviu o estalar do corpo esquálido se dobrando para passar pela porta e um momento depois a criatura estava no quarto, rondando a cama onde o jovem estava escondido.

Ele fechou os olhos. Não queria reabri-los porque sentia que se o fizesse enfrentaria novamente aquele olhar imemorial. Então continuou deitado sobre um chão poeirento, sentindo o cheiro forte de enxofre se espalhar pelo quarto. Permaneceria assim se alguma coisa gelada não tivesse segurado sua panturrilha. Quando abriu os olhos, experimentou uma nova onda de horror: viu aquele ser tragando-o para a escuridão do quarto, os olhos frios sempre fixos nos dele.

Lucas lutou. Gritou e esperneou, chutou a face do mal sem esperanças de que aquilo fosse funcionar. Mas funcionou. Um momento depois estava mancando pelos corredores escuros da casa, a batata da perna gravemente arranhada. A casa perdera sua qualidade inanimada para ganhar contornos mais infernais. Ao som dos tambores, cada cômodo parecia abrigar algum tipo de presença maligna. Ouviu vozes, suspiros e sussurros. Olhou para trás uma única vez, e se arrependeu instantaneamente. O tortuoso demônio que o perseguia se aproximava numa velocidade descomunal. Achando que seu coração iria parar a qualquer momento, o rapaz desceu as escadas saltando vários degraus.

Lá embaixo, não tentou abrir a porta de entrada porque sabia que estaria trancada. Passou então pelos corredores e chegou a cozinha. O som do tamborilar estava mais alto ali dentro. Neste momento, viu seu celular na mesa e se sentiu meio estúpido. Poderia ter pego ele antes de tentar escapar da velha. Tarde demais, pensou. Entrou numa pequena lavanderia e encontrou outra porta aberta. A passagem dava para um quintal, localizado atrás da casa. Uma enorme fogueira brilhava lá fora. Parou angustiado e percebeu que as patas de bode também pararam. Quis se virar para saber se poderia voltar e encontrar outra rota, mas sentia o hálito de enxofre soprando a centímetros de sua nuca. Então ele caminhou lentamente até o quintal. Já sabia como as coisas terminariam.

Lá fora, Madalena esperava. Sua pele ancestral brilhava sob a luz das chamas. Horrorizado, mas não surpreso, Lucas percebeu que ela estava viva há mais gerações que qualquer outra pessoa. A velha secular o encarou, e quando seus olhos alcançaram os de Lucas, o jogo terminou. Ele caminhou num transe hipnótico até o círculo onde a Bruxa preparava seu ritual. Ouviu a porta bater atrás de si e um momento depois a criatura esquálida ressurgiu, vinda de trás de alguma árvore além da fogueira. Ele não pôde fechar os olhos desta vez.

*TEMA: BRUXAS