O Nascimento do Inferno

A Polícia de Larital se encontra ensandecida para descobrir o que aconteceu naquela noite de 31 de outubro. Ao todo, oito corpos foram encontrados amarrados e carbonizados em volta do pelourinho da antiga Fazenda São Cristóvão, patrimônio da cidade e símbolo do poder escravocrata que dominou a cidade nos séculos XVIII e XIX. Além disso, oito jovens – adolescentes ou jovens adultas – foram encontradas ao redor da pira de fogo, amarradas e seminuas.

Aquele crime mudou os rumos de Larital. Toda a pequena cidade ficou estarrecida, ficando amedrontada com o crime bárbaro que ocorreu naquele 31 de outubro. Muitas pessoas narravam a hipótese de o crime ter ocorrido por ocasião do tal Saci – monstro de pele negra, uma única perna, que utiliza gorro e bermuda de cores vermelha e que, segundo a mitologia da cidade, era um ex-escravo que foi morto por ter tentado fugir do poder de seu dono -, mas a Polícia logicamente não acreditou na história, imaginando que quem cometeu tamanha atrocidade era de carne e osso. Entretanto, em todos os jornais do país, o crime ficou conhecido como “Carnificina do Saci”.

O tempo passou. As jovens moças retomavam – ou tentaram retomar - suas vidas após os acontecimentos e a Carnificina do Saci foi se tornando história em Larital e nas vidas das pessoas que vivenciaram aquele 31 de outubro... ou, pelo menos, era assim que era para ser.

Larissa foi uma das oito vítimas do “Saci”, tendo sido encontrada amarrada próxima a outras sete mulheres no entorno do pelourinho da Fazenda São Cristovão e da pira com corpos carbonizados. Ouvida pela Polícia, contou o que se lembra: de estar em casa com o namorado, Alexandre e seus pais, Maria e João; de, repentinamente, ouvir um barulho e ver um rapaz jovem, de pele escura, com uma única perna, usando gorro e bermuda vermelhos, aparecer dentro do seu quarto, quando seu namorado havia ido tomar banho; que, este lhe acertou com algo que lhe fez desmaiar e, quando acordou, estava amarrada e sem forças no local onde foi encontrada.

A moça lembra ainda de ter visto um pequeno ser idêntico ao que lhe atacou andando, literalmente, por dentro da sua barriga, mas acreditou que seria melhor esconder essa parte da Polícia – ou acabaria se sentindo uma louca desvairada. Compareceu ao Hospital da cidade para exames, que não constataram sangramento na área vaginal, o que lhe fez descartar a hipótese de estupro.

O tempo passou e aquela violência acabou ficando na história de Larissa. A moça continuou seus estudos na faculdade da cidade vizinha e terminou mais um período. Em pouco tempo, o final do ano chegou e já era véspera de Natal.

Na véspera de Natal, estavam reunidos na residência de Larissa ela e o namorado, seus pais e outros familiares. Comemoravam a vida e o nascimento de Cristo com bastante comida, risadas e bons papos. Repentinamente, em determinado momento, eis que Larissa sente uma forte cólica, seguido de sangramento vaginal. Os seus pais correm com a moça para o hospital, onde foi constatado que a mesma havia sofrido uma tentativa de aborto espontâneo.

- Aborto espontâneo?! – perguntou a mãe, incrédula. De igual forma, todos estavam incrédulos no local.

- Sim. – respondeu o médico.

- E por que você não nos contou, Larissa? – perguntou a mãe, nervosa, para a filha, deitada no leito do hospital

- Eu nem sabia que eu estava grávida. – disse Larissa, receosa com o comportamento da mãe

- E por que não tomaram o cuidado necessário? – perguntou o pai, virando-se para o genro

- Mas nós tomamos. Sempre usamos camisinha. – disse o genro, ao lado da namorada, igualmente acuado

- Bom... – disse o médico. – O mais importante é que vocês correram a tempo de salvar a criança. Agora é ter acompanhamento para que o neném desenvolva corretamente.

- E quanto tempo estimado é a gravidez dela? – perguntou a mãe

- Aparentemente de quase dois meses, embora o feito ainda esteja bastante pequeno. – respondeu o médico

A resposta dele intrigou a mãe – e certamente até mesmo o médico havia ficado intrigado com a situação.

- Entendi. Bom, agora que sabemos da gravidez de Larissa, faremos de tudo para acompanhar o pré-natal do neném.

O médico sorriu.

Tão logo passou o Revéillon, Alexandre assumiu o neném, vindo a residir junto de Larissa na casa dos sogros – ficando, assim, mais perto da namorada grávida e auxiliando os sogros no que fosse necessário.

Mais alguns meses se passaram e a barriga de Larissa se encontrava praticamente do mesmo tamanho, ainda que ela estivesse com quase cinco meses de gravidez – segundo os cálculos do médico. Estranhando a situação, Maria levou Larissa ao médico.

- Realmente, é bastante estranho. – disse o médico, após a mãe relatar a ele o ocorrido

- Não consigo entender, doutor. – disse a mãe – A criança aparentemente não cresce, mesmo ela já tendo quase 5 meses de gravidez.

- Além disso, doutor, eu sinto bastante cólica. É como se ele não parasse de andar dentro de mim. – completou Larissa

- Fora que ela se sente muito mais fraca. – continuou a mãe

- Entendi. – disse o médico. Coçou a barba rasa que ocupava o queixo e pensou durante alguns segundos. De fato, não era uma situação cotidiana. – Você tem se alimentado direito?

- Sim. – respondeu a filha

- Até mais do que o normal. – respondeu a mãe

- Entendi. – voltou a dizer o médico. Virou-se para a mãe. – Eu preciso ter um papo em particular com sua filha, se a senhora não se importar.

- Claro, claro. – disse a mãe, levantando-se e se retirando do interior do consultório – Quando precisar novamente de mim, me avisa.

- Pode deixar. – respondeu o médico. Assim que a mãe se retirou do interior do consultório, o médico começou suas perguntas:

- Você ou seu namorado usam ou já usaram algum tipo de droga, lícita ou ilícita?

- Não, não. – respondeu Larissa, surpresa. – Ele ainda bebia socialmente, mas parou depois que eu fiquei grávida porque deixamos de sair com os amigos.

- O Alexandre foi seu primeiro parceiro sexual?

- Sim, sim. – as perguntas do médico acabavam por constrangê-la.

- E você o dele?

Ela parou durante alguns segundos, tentando se lembrar de algo.

- Sim. Nunca conversamos sobre isso, mas... – corou. O médico respirou fundo, encostou suas costas na poltrona e voltou a falar:

- Entendi. – pausou durante alguns segundos. – E vocês têm como hábito o uso do preservativo, até mesmo depois da gravidez?

- Sim, sempre usamos. Camisinha e anticoncepcional... mesmo depois da minha gravidez. Só não tomo anticoncepcional mais.

- Estranho... – deixou soltar o médico, pensativo

Larissa parou de falar durante alguns segundos, ficando completamente pensativa. Ao final, perguntou:

- O senhor falou que estou com quanto tempo de gravidez mesmo?

- Pelos meus cálculos, 17 semanas.

A garota voltou a ficar emudecida.

- Mas não sabemos por que precisamos que você faça outra ultrassonografia.

Larissa continuou emudecida, envolta nos próprios pensamentos.

- Aconteceu alguma coisa?

Ela apenas meneou negativamente a cabeça.

- Bom... então vamos marcar a sua ultrassonografia? – perguntou o médico

Dessa vez, Larissa meneou positivamente a cabeça.

- Certo. – disse o médico. Olhou na sua agenda. – Vamos marcar para a próxima quarta-feira, certo?

Pouco mais de meia hora depois, Larissa chegou junto da mãe no interior de sua residência. Estava abatida e cabisbaixa, não tendo pronunciado nenhuma palavra desde que saiu do consultório.

- Oi. E aí? – perguntou um apreensivo Alexandre

Larissa ficou emudecida. A mãe dela viu a mudez da filha e respondeu o genro do lugar da jovem:

- O médico marcou ultrassonografia para a próxima quarta.

- Entendi. – disse Alexandre, preocupado com o silêncio da namorada

A mãe se retirou do local e Alexandre já iria sair junto dela, levando Larissa consigo, mas esta o puxou, interrompendo seus passos.

- Podemos conversar um pouquinho?

- Claro, claro.

Os dois se sentaram no sofá da sala onde se encontravam.

- O que aconteceu?

- Lembra-se de quando fui atacada e acordei no interior da floresta, junto daquelas outras sete garotas?

- Sim, lembro. Não tem como esquecer. Vim correndo assim que fiquei sabendo. Não tem como esquecer.

- Lembra-se então de que você estava fora da cidade por causa do seu emprego, não é?

- Sim, sim. Lembro. Mas o que isso tem a ver?

- Então... o médico me falou que estou de 17 semanas. E que é muito difícil camisinha falhar, ainda mais usando anticoncepcional.

- Sim. Sempre nos questionamos disso.

- Mas, o que mais me estranha é que 17 semanas dá exatamente na semana do dia 31...

- O que você quer dizer com isso? – perguntou Alexandre, amedrontado com a resposta que Larissa daria

- Talvez eu tenha sido realmente estuprada...

Larissa telefonou para Letícia, outra jovem encontrada nos arredores da Fazenda São Cristóvão naquele fatídico 31 de outubro.

- Oi, falo com Letícia?

- Sim, quem deseja falar com ela? – perguntou a pessoa do outro lado da linha, com voz que aparenta idade semelhante à sua

- Meu nome é Larissa. Fui encontrada também nos arredores da Fazenda São Cristóvão no dia 31 de outubro.

O outro lado da linha se emudeceu.

- Letícia?

- Não quero falar sobre isso.

- Eu precisava conversar com alguém... está me acontecendo algumas coisas estranhas e eu...

- Você também está grávida? – perguntou a garota, cortando a fala da outra

A pergunta inesperada de Letícia fez Larissa se incomodar e se silenciar. Letícia entendeu o silêncio como um “sim”.

- Foi o que eu imaginei.

- Mas como... você...? – a pergunta da garota deixou Larissa desestabilizada

- Eu também estou grávida. – disse Letícia, ríspida do outro lado do telefone. – E de um ser, ou qualquer coisa do tipo, que habita meu útero.

- Ser?!

- Você ainda não fez ultrassonografia?

- N...Não!

- Acho melhor, então, fazer.

A semana foi angustiante para Larissa. Esperar a outra quarta-feira para realizar a ultrassonografia foi um martírio para ela. A frase de Letícia, “Estou grávida de um ser...”, a fez passar noites e noites em claro.

Enquanto isso, as rotineiras cólicas aumentaram de frequência e intensidade. Vômitos também começaram a fazer parte de sua rotina, além da fraqueza habitual e dores de cabeça súbitas e insuportáveis.

Na quarta-feira, Larissa nem conseguiu dormir. Rolou de um lado para cama da noite, acompanhando os movimentos bruscos do filho que trazia no ventre. Sua mente igualmente fervilhava, tentando entender o que estava acontecendo. Mas, tinha certeza de uma coisa: o filho não era de Alexandre, era do mesmo filho de Letícia – ou seja, sabia que algo a mais aconteceu com ela e com Letícia naquele 31 de outubro.

Lembrou-se de que havia mais seis garotas no local onde foram achadas naquele dia. Lembrou-se de que iria entrar em contato com elas depois da ultrassonografia.

Era pouco mais de oito horas da manhã e Larissa já se encontrava com Alexandre e sua mãe na fila para aguardar o exame, marcado para nove. Havia outras mulheres, de diferentes idades e um homem aguardando a espera. Uma delas, de seus quarenta e poucos anos, sentada de frente ao trio, ao lado de uma jovem e grávida garota, perguntou à mãe de Larissa, rispidamente:

- Ela também engravidou cedo?

- Sim. – respondeu a mãe, secamente

- Essas meninas de hoje em dia não tem juízo. – reclamou a senhora – Minha neta tá aí – continuou, apontando para a jovem grávida ao seu lado -, grávida aos 15 anos. Piranha da mais pura. A sua também é?

Larissa ficou chocada e queria abaixar a cabeça. Não imaginou que seria tachada como “piranha” na fila do hospital. Maria engoliu fundo para não perder a compostura e perguntou, fingindo surpresa:

- Neta?! – continuou, seca - A senhora aparenta ter seus quarenta e poucos anos. Deve ter herdado de família a piranhice.

Larissa arregalou os olhos, tamanha a surpresa da resposta da mãe. A senhora fechou a cara, irritada e saiu do local.

- É cada uma. Uma puta falando da outra... – reclamou a mãe, mais para si mesma

Larissa e Alexandre riram.

- Então...

Cerca de vinte e poucos minutos depois, Larissa foi chamada para entrar na sala de ultrassonografia. Foi acompanhada da mãe e do namorado. Entraram e fizeram os procedimentos de praxe. Um homem de seus sessenta e poucos anos fez algumas perguntas do estado de saúde de Larissa antes de iniciar o ultrassom.

- Está certo. Vamos lá...

Alguns segundos depois, uma imagem se formou na tela da máquina de ultrassonografia. As sobrancelhas de Alexandre, Maria e do senhor arquearam, tamanha a surpresa.

- O que aconteceu?

- Acho melhor você ver isso. – disse o senhor.

Larissa se levantou, afobada e virou-se contra a tela. Assustou-se. Havia um ser humanoide minúsculo completamente formado – com exceção de uma perna que faltava -, de pouco mais de meio palmo de altura, em pé, carregando algo que parecia um gorro natalino na cabeça.

- Que Diabos é... isso?! – perguntou uma estupefata Larissa. Repentinamente, lembrou-se da fala de Letícia na semana anterior. “Estou grávida de um ser...”. “Um ser... um ser...”, tal parte da fala de Letícia ecoava constantemente em sua cabeça.

- Ainda não sabemos. – disse o senhor – mas é algo muito estranho.

Enquanto isso, a mente de Larissa fervilhava. Sua mente passou a ir e a voltar no tempo constantemente, indo o mais remoto que conseguia, até se lembrar dos fatos que antecederam seu desmaio em sua casa no dia 31 de outubro e sua consequente descoberta no meio da mata naquele dia.

- O que poderá ser? – perguntou a mãe.

- Saci! – respondeu Larissa, absorta em seus pensamentos

A mãe de Larissa não acreditava na ideia da filha que acreditava que estaria gerando o filho de um Saci. “Sacis são lendas!”, disse. “A gente viu como que é lenda...”. Pensando em se tratar de transtorno mental motivado pela situação vivenciada no dia 31 de outubro – e acreditando se tratar de um estupro –, Maria levou a filha ao psicólogo, não sem antes passar na Polícia e entregar uma cópia da ultrassonografia.

O delegado do caso analisou a ultrassonografia durante alguns segundos. Depois, disse:

- Parece que aconteceram com todas.

- Oi? – perguntou Maria, surpresa. Larissa também se encontrava surpresa.

O delegado levantou-se, foi até uma escrivaninha e pegou um inquérito, de quatro volumes, todos com capa azul clara e sem fita vermelha no canto superior esquerdo - como tantos outros tinham. Colocou-o sobre a mesa e abriu já no último volume, que possuía menos da metade de folhas dos outros três volumes. Mostrou algumas ultrassonografias juntadas nos autos, que mostravam gravidezes parecidas com a de Larissa.

- São das outras moças encontradas naquele dia. Quem quer que seja, estupraram todas vocês. – disse o delegado

- Mas não houve marca de lesão de estupro. – respondeu Larissa.

- Isso que me é mais estranho. Mas... não há outra hipótese.

- Mas se foi estupro eu posso tirar a criança, não posso? – perguntou Larissa, esperançosa

- Sim, pode. Mas como iremos provar que foi estupro?

- Mas você acabou de dizer que alguém nos estuprou.

- Sim. O problema é a Justiça aceitar esse argumento para permitir que você tire essa criança...

Larissa respirou fundo. “Maldita burocracia brasileira...”.

- OK. Se souber de mais alguma informação, nos fale.

Todavia, a ideia de tirar a criança parecia interessante. A seu ver, ninguém iria ficar sabendo, já que ela já sofreu uma tentativa de aborto espontâneo e sabiam do sofrimento que estava passando. Quando todos foram dormir, naquela noite, Larissa entrou no banheiro e ligou para uma velha amiga de infância.

- Natália? – perguntou Larissa, falando baixo

- Oi, Larissa, tudo bem? Por que está falando baixo?

- É porque as outras pessoas aqui em casa estão dormindo.

- Ah, sim, entendi. Aqui também. Mas... te falar... fiquei sabendo que engravidou. Parabéns!

- Então, era sobre isso que eu queria falar contigo. Você conseguiu abortar aquela vez na sétima vez. Como que você fez?

- Oi, oi, oi... como assim, abortar?! - Natália parecia surpresa do outro lado da linha.

- Eu preciso abortar, Natália. O neném está me fazendo muito mal! – disse, desesperada

- Não, Larissa, isso é errado. Todo mundo sabe que você engravidou. Se amanhã ou depois descobrem que você perdeu a criança, você pode até ir presa.

- Estou pouco me ligando para a prisão. Eu preciso tirar essa criança do meu ventre.

- Larissa, não faz isso. Coitado do Alexandre. Ele deve estar vislumbrado por ser pai.

- Ele não é o pai. Eu fui estuprada. Só que a maldita Justiça é devagar demais para me deixar abortar.

Natália ficou em absoluto silêncio.

- Nossa, desculpa... eu não sabia...

- É por isso que eu preciso abortar. Não quero gerar filho de filho da puta nenhum.

Natália ficou novamente em silêncio.

- Eu tenho alguns chás que servem como abortivos aqui em casa. Passa aqui amanhã pela manhã que eu deixo para você.

- Está certo.

Larissa desligou o telefone em seguida e deixou descer pela parede, tamanho o alívio. Sentou-se no chão do banheiro, ao lado da banheira e deixou escapar um sorriso sincero. Iria, finalmente, ficar livre daquele ser bestial que devorava seu útero.

- Finalmente... – disse, para si mesma.

Alguns segundos depois, levantou-se do chão. Caminhou até a pia e lavou seu rosto. Pegou, em seguida, a toalha para secá-lo. Repentinamente, escutou um barulho oriundo do interior do banheiro, na região da banheira. Virou-se rapidamente para o lado. Reparou haver um rapaz jovem, com uma única perna, de pele escura, usando gorro e bermuda vermelhos frontalmente ao banheiro. Seu semblante estava fechado e parecia furioso. Ao seu lado, jazia dependurado um pedaço de madeira que carregava com a mão esquerda.

Larissa sobressaltou-se.

- Puta que pariu! – exclamou

Jogou a toalha no chão e saiu correndo, em direção à porta do banheiro. Abriu e postou o corpo para fora do banheiro. Entretanto, o rapaz foi mais rápido e logo apareceu atrás de si, desferindo um violento golpe com o pedaço de madeira na parte anterior de sua cabeça. Com o impacto, Larissa perdeu a consciência e desmaiou.

“Larissa! Larissa! Larissa!”. O que parecia ser um chamado distante, ecoando em sua mente, pouco a pouco foi se transformando em algo real. Larissa acordou aos poucos, abrindo os olhos. Visualizou sua mãe e seu irmão ao lado dela.

- O que aconteceu? – perguntou Larissa

- Isso é o que a gente quer saber. – disse a mãe – Encontramos você caída no chão do banheiro e trouxemos para o hospital.

- Você tinha um galo na cabeça. – disse Alexandre

Naquele instante, Larissa percebeu que, de fato, se encontrava com um pungente dor na parte anterior da cabeça. Lembrou-se do encontro estranho que teve com o tal rapaz negro. Arregalou os olhos.

- O que aconteceu?

Larissa ficou em silêncio.

- Não me recordo. – preferiu mentir a respeito da aparição do rapaz negro. Em seguida, lembrou-se de já ter visto aquele rapaz anteriormente: pouco antes de desmaiar no dia 31 de outubro e acordar no matagal junto das outras sete garotas.

- O que aconteceu? Onde estamos? – perguntou Larissa, olhando ao redor e percebendo se encontrar no quarto do hospital. Ao lado de Alexandre e Maria, estava um homem vestido de jaleco branco.

- Estamos no hospital. – respondeu o médico – Você está de observação durante algumas horas para verificar se houve algum trauma na sua cabeça ou no seu bebê.

- Bebê... – pensou Larissa. Em seguida, lembrou-se de algo.

- Doutor, que horas vou ser liberada? Marquei de me encontrar com uma amiga agora de manhã.

- Que amiga? – perguntou a mãe, desconfiada

- Lembra da Natália, uma amiga minha de infância? Encontrei com ela ontem e fiquei de passar na casa dela.

- Se todos os resultados derem negativo para riscos, você receberá alta no começo da tarde.

- Está certo.

De fato, não houve tramas em Larissa e nem no bebê e esta recebeu alta do hospital no começo da tarde. Os médicos não perguntaram à garota o que viram no seu ventre, enquanto toda a equipe médica estava chocada quando viram aquele pequeno ser já formado dentro de seu ventre.

Larissa foi levada para casa pela mãe e pelo pai, enquanto Alexandre havia se despedido de ambas para ir trabalhar. Poucos minutos depois, a garota ligou para Natália, para informar do seu atraso. Todavia, quem atendeu foi uma mulher mais velha, que estava em estado de choro.

- Oi, Larissa, o que você quer?

- Oi, dona Célia, tudo bem? – estranhou o choro da mãe de Natália e do fato de esta ter atendido ao celular. – A Natália está?

- Você não ficou sabendo do que aconteceu? – perguntou, aos prantos

O coração de Larissa apertou no peito.

- A Natália foi assassinada durante a madrugada.

Larissa congelou. De tão paralisada, deixou soltar o celular no chão, que caiu em um só impacto.

Do outro lado da linha, dona Célia chamava por Larissa.

- Larissa... Larissa... Larissa...

- Foi ele. Só pode ter sido ele.

Largou o celular no chão e saiu correndo em direção ao seu computador, localizado no seu quarto. Abriu o Google e procurou por “Saci”. Passou a ler sua história.

Descobriu que o Saci é um mito de um ex-escravo da região de Larital, que foi morto na região após uma tentativa fracassada de fuga. Assim, o ex-escravo, de nome Saci, voltou do reino dos mortos para jurar vingança contra todas aquelas pessoas que auxiliaram para ceifar suas vidas. Assim, todo ano, na data de sua morte – 31 de outubro – o Saci aparece para causar confusão, fazer traquinagem ou se vingar, até se sentir satisfeito e ir embora. Larissa descobriu, ainda, que o Saci também possui algumas regras a qual sempre segue: nunca ataca crianças do sexo feminino ou mulheres virgens, por acreditar que são as únicas pessoas puras, por ainda não ter tido contato com homens; sempre ataca furiosamente pessoas que comem carne de porco, pois foi o prato forçado a fazer para seu dono na noite de sua fuga; nunca entra em uma casa que não seja por janela ou porta aberta; não atravessa cursos d´água.

Larissa jogou na internet sobre gravidez de Saci, algum relato, algo do tipo... leu alguns relatos de historiadores de mitologia que explicavam que, pela lenda, o Saci engravida moças impuras para espalhar Sacis mundo afora.

“Isso é tipo o quê? Apocalipse Saci?”, se perguntou, fazendo alusão ao famoso apocalipse zumbi.

Ainda mais ficaram perguntas. Que estava grávida do Saci e que era para povoar a Terra era algo fácil de presumir. Assim como o fato de, ao querer abortar seu filho, o monstro lhe atacou e matou Natália, que a ajudou. Mas para ela tanto fazia. Iria abortar o filho daquele monstro e seria naquela noite. Só era necessário cuidado extremado, pois o monstro poderia matar quem quer que possa gerar perigo para seu filho.

A garota, todavia, lembrou-se de algo que leu: o monstro não pode entrar em residências que não seja por janelas ou portas abertas. Lembrou-se do dia anterior e recordou de ter visto a janela do banheiro aberto enquanto conversava pelo telefone com Natália.

Naquela noite, a garota jurou dar prosseguimento no plano de aborto do filho do Saci. Porém, para se certificar de que tudo daria certo, após todos dormirem, a garota olhou atentamente se todas as janelas haviam sido fechadas. Não haviam, mas fechou as que se encontravam abertas.

- Pronto. – disse, para si mesma. – Agora sim.

Primeiramente, precisava conversar sobre suas descobertas com as demais garotas que foram estupradas pelo Saci. Certamente, segundo Larissa, elas gostariam de saber o que estavam acontecendo com elas. A garota fez um grupo no aplicativo Whatsapp chamado “Vítimas do ataque de 31 de outubro” e adicionou todas as garotas – mesmo que não conhecessem a maioria e tivessem pegado seus números nos contatos da Polícia Civil.

Ao terminar de adicionar a todas, escreveu no grupo:

“Olá, pessoal,

Meu nome é Larissa e sou uma das oito meninas que foram encontradas desacordadas no dia 31 de outubro do ano passado. Queria conversar com vocês sobre o que descobri na data de hoje.”

Entretanto, a situação surpreendeu Larissa. Duas garotas simplesmente saíram do grupo tão logo visualizaram, além de Letícia. Uma respondeu: “Para de falar sobre isso. Não quero saber.”, e igualmente saiu do grupo. Outra respondeu, como se a resposta fosse feita pela mãe: “Isso tudo está causando muita tristeza a nós. Minha filha se matou por causa disso”. E outra respondeu, igualmente como se a resposta fosse feita pela mãe: “Minha filha está no hospital psiquiátrico por causa disso tudo. Deixe-nos a sós com nossa dor”.

Larissa percebeu, ao final, que se encontrava sozinha. Respirou fundo.

- Já vi que serei eu e Deus. – disse

Caminhou até a cozinha e pegou dentro da geladeira uma porção de um chá que havia feito mais cedo.

- Espero que a internet esteja certa que essa merda também seja abortiva. Ou, pelo menos, que não me mate. – disse, ao colocar em um copo. Colocou-o à sua frente e respirou fundo. – Espero que não piore as cólicas.

Em seguida, sobressaltou-se, deixando o copo cair no chão e espirrar chá em todos os locais, incluindo o seu pé. À sua frente, parado na porta, estava o Saci, olhando-a fixamente, junto de um pedaço de pau.

Larissa paralisou; o medo invadiu o seu corpo. O monstro continuava ali, parado, à sua frente. Repentinamente, eis que toma coragem suficiente para reagir. Gritou:

- Socorro. Socorro. – o seu grito logo ecoou aos quatro cantos

O Saci virou-se para trás e percebeu que Alexandre estava saindo do interior de um dos cômodos, apressado e afoito.

- O que aconteceu? O que aconteceu?

O Saci olhou furioso para Larissa e depois desapareceu em um estranho e repentino redemoinho que surgiu à sua volta, que jogou folhas de jornal que estavam na mesa da cozinha para todos os lugares.

- O que aconteceu? O que foi agora? – perguntou um preocupado e assustado Alexandre, à frente de Larissa

Esta, chorando, o abraçou.

- Fiquei com tanto medo.

Larissa acabou não contando para Alexandre, por medo de ele a julgar como louca. Esta não perguntou se ele chegou a ver o Saci ou apenas o redemoinho, que tanto lhe indagou o que era. Acabaram por adormecer, embora Larissa sempre se questionasse como o Saci entrou na residência se ela mesma se certificou de fechar todas as portas e janelas. A uma resposta plausível fazia subir um gélido arrepio em sua espinha, que a congelava: ele estava dentro da casa o tempo todo!

Os dias se passaram e Larissa pensava uma forma melhor de fugir do Saci. As dores abdominais se intensificaram e os vômitos eram frequentes. Além disso, começou a ter espasmos, que começaram raros e esparsos ao longo do dia e depois se tornaram comuns. A saúde de Larissa definhava dia a dia.

- O que... está... acontecendo comigo? – se perguntava, deitada na cama.

Larissa começou a perceber vultos e situações estranhas dentro de sua casa. Coisas caíam sem explicação e ela acordava com barulhos dentro da residência. Além disso, tinha a sensação de estar sempre sendo vigiada.

A garota quase não conseguia levantar da cama, devido à fraqueza. Passava a maior parte dos dias deitada e as visitas médicas tornaram-se mais frequentes. A barriga não crescia e os espasmos e vômitos tornaram-se tão frequentes que o quarto cheirava a azedo.

Em um determinado dia, o médico a visitou na residência.

- Você está melhor? – perguntou.

Esta balançou a cabeça negativamente. Não tinha forças para falar.

- Entendo. Levaremos você ao hospital. Lá você será mais bem tratada que aqui.

Esta concordou com a cabeça. No final da tarde, a equipe do SAMU levou Larissa para o hospital. Lá, recebeu medicação, soro e oxigênio. Uma equipe médica ficou para acompanhá-la, pelo menos, nas próximas 72 horas.

Poucos minutos depois, já no cair da noite, o médico a visitou. Larissa estava parcialmente sedada e ouvia e enxergava o médico como se o mesmo estivesse demasiadamente longe.

- Faremos alguns exames em você essa noite, mas a equipe médica está achando que o melhor a se fazer é retirar essa criança. Temos autorização legal para fazermos isso em caso de risco à saúde da mãe. Ao que tudo indica, por algum motivo essa criança está acabando com a sua saúde, então o melhor realmente será tirá-la.

Ao ouvir a palavra “abortar”, o coração de Larissa acelerou abruptamente dentro do peito. Tentou se mexer de todas as formas para evitar tal situação, mas não tinha forças sequer para mexer, quiçá impedir. O médico, em seguida, saiu do quarto onde Larissa estava e esta continuava tentando se mexer.

“Ai, meu Deus. Ai, meu Deus. Ai, meu Deus”, dizia para si mesma. Continuava tentando se debater, porém pouco a pouco foi perdendo a consciência até desmaiar de vez.

Era pouco mais de duas da madrugada quando Larissa acordou de inopino. Teve a sensação de ter ouvido um grito seco na escuridão de sons e isto a fez acordar. Suava frio e estava ofegante.

- O que... aconteceu? – se perguntou.

Repentinamente, mais um grito. Este grito indicava que o primeiro não foi parte do sonho, mas que estava acontecendo na vida real.

- O que...?

Virou-se para o lado. A porta do quarto estava entreaberta. Podia ver parte de um corredor, na qual se encontrava levemente escuro. Ao fundo, frontalmente a uma sala, pôde ver com clareza o Saci fincando uma faca no peito de um homem adulto com jaleco branco que se encontrava no chão. Ao lado deste, parecia haver outro ou outros corpos, além de bastante sangue.

Larissa sobressaltou-se na mesma hora.

“Ai, meu Deus. Ai, meu Deus. Ai, meu Deus. Esse monstro continua aqui...”, pensou, desesperada. “O que eu faço? O que eu faço?”

A garota tentava se soltar da onde se encontrava. Todavia, não era fácil tão situação, eis que se encontrava demasiadamente fraca, além de ter um soro cravado na veia e aparelhos ligados pelo corpo. Teria que retirá-los de qualquer forma, pois precisava fugir dali.

De repente, para sua surpresa, enquanto retirava alguns aparelhos ligados no tórax, ouviu a porta se abrir lentamente. Naquele instante, seu sangue congelou. Cobriu-se o mais rápido possível com o cobertor.

Ouviu a porta se fechar. Queria olhar, mas percebeu, pelo cobertor, que havia um vulto próximo da cama. Sabia que era o Saci, porém queria que o mesmo saía dali sem mexer consigo. Entretanto, alguns segundos depois, o cobertor é abruptamente puxado para cima, relevando Larissa sob ele.

De fato, era o Saci que se encontrava ali. Estava com o semblante fechado e a olhava furioso. A garota engoliu em seco.

- Você vem comigo! – disse Saci, com uma voz demoníaca ao fundo

Em seguida, Larissa perdeu a consciência.

A garota acordou pouco a pouco. Sua cabeça pesava e girava. Percebeu se encontrar dentro de um quarto, diferente do hospital. Quando o local foi se tornando forma, percebeu estar dentro do próprio quarto.

Tentou argumentar algo, entretanto, saiu somente gemidos. Alexandre estava sentado na escrivaninha do quarto, mexendo no computador e, ao ouvir os gemidos e os mexidos de Larissa na cama, virou-se para ela depressa.

- Você está bem?

- O que aconteceu?

- Você foi achada na floresta ontem à noite.

Repentinamente, veio à sua mente, como em um flashback, o que fitou de madrugada – a morte dos médicos e a aparição do Saci.

- O que aconteceu dentro do hospital? – perguntou Alexandre – Parece que invadiram o hospital para te sequestrar. E, para isso, saiu matando a equipe médica inteira. A Polícia está enlouquecida. Tem policial em cada esquina da cidade.

“Quem fez isso não vai aparecer”, pensou Larissa, para si mesma.

- Eu não me recordo. Lembro-me apenas de ter visto alguém assassinando os médicos e depois dizendo que iria me levar.

- Quem?! – perguntou Alexandre, surpreso

“O pai da criança”, pensou, novamente para si mesma.

- Que estranho.

- Você disse que eu estava na floresta, não foi?

- Isso.

- E onde eu fui achada?

- Próximo à Fazenda São Cristóvão, por quê?

Larissa arregalou os olhos.

“Mas por que ele me levou para lá?”

- E apareci com algum machucado?

- Não, nenhum.

- E por que não fui para o hospital?

- Ele está fechado depois das mortes.

Larissa se silenciou.

- A Polícia provavelmente vai querer te ouvir amanhã para saber informações a respeito dos acontecimentos de ontem.

De fato, a Polícia Civil compareceu à residência de Larissa para conversar com ela. Ela escondeu da Polícia toda a história do Saci, com medo de represália por parte dele. Pouco a pouco, a garota foi entendendo que o Saci estava protegendo o seu filho dentro da barriga e que ele faria de tudo para evitar que a mesma perdesse. Também entendeu que, de alguma forma, o Saci lhe deu energia, pois não estava mais tão fraquejada quanto antes.

Mais alguns dias se passaram. Larital estava apavorada com a quantidade de crimes que ocorriam. De uma forma ou de outra, a pequena cidade culpava Larissa das atrocidades, mas tinha medo de mexer com ela e haver retaliação, como aconteceu com todas que ousaram mexer com seu filho.

Larissa, após os fatos, pensou que o melhor seria não mexer com o filho do Saci e deixá-lo nascer normalmente. Temia retaliação por parte do monstro. Achou melhor não subestimar sua ira.

Como Larissa estava mais forte, em uma noite qualquer seus pais a largaram rapidamente em casa para irem ao supermercado realizar compras, enquanto Alexandre estava no quarto. Larissa estava sozinha em casa, com o coração apertado como sempre, pois sabia que o Saci estava em algum lugar à espreita – ela sabia e sentia sua presença. Ademais, tinham ocorrido barulhos estranhos minutos antes de seus pais saírem de casa e ela sabia que era obra dele.

Encontrava-se sentada no sofá da sala assistindo televisão e comendo pipoca. Sua barriga continuava do mesmo tamanho, mas não se importava mais – e aparentemente nem Alexandre, nem seus pais. Repentinamente, eis que uma pungente dor surge no interior de seu ventre. Era uma dor lacerante, muito mais intensa que as anteriores experimentadas.

Larissa soltou a pipoca e a deixou cair e se espalhar pelo chão. Passou a rolar sobre o sofá e a se contorcer e gritar de dor. Percebeu algo mexendo no interior de sua barriga. Postou-se a vê-la. Assustou-se. O pequeno monstrinho que carregava no seu ventre estava de pé e mexia!

A dor se intensificou de tamanho. A pele do seu ventre esticava, enquanto o monstrinho forçava do outro lado. Larissa tentava segurar com as mãos em um último ato desesperado – até porque a dor estava insuportável.

Larissa sentiu uma intensa dor, como se a pele de seu ventre estivesse rasgando. Sangue começou a escorrer do local. “Socorro!”, gritava, para a casa vazia.

A garota cuspiu sangue, que passou a sair de sua boca. Começou a perder consciência, enquanto sua pele era literalmente rasgada ao meio pelo pequenino monstrinho. Este saiu do interior de sua barriga, revelando-se ser uma miniatura de Saci com meio palmo de altura. A visão de Larissa passou a ficar embaçada e viu turvo o pequeno monstro sair de seu ventre, antes de desmaiar e perder a consciência.

Larissa foi encontrada morta com o ventre aberto por sua mãe cerca de vinte ou vinte e cinco minutos depois. O seu bebê havia desaparecido. A Polícia foi chamada e tentou encontrar os responsáveis, mas não obteve êxito. Dias depois, nova surpresa para a Polícia Civil: as seis moças que foram encontradas no interior da Fazenda São Cristóvão desacordadas no dia 31 de outubro e que ainda sobreviviam morreram de igual forma, repentinamente, com o ventre aberto. E pior: de dentro para fora. O caso da morte das sete garotas foi juntado no inquérito que investigava as mortes ocorridas no dia 31 de outubro do ano anterior e somaram mais mistério ao caso.

O que Larital não poderia esperar era que o próximo dia 31 de outubro seria muito pior do que anterior... e se aproximava!