Alguém sabia

Ouvi o telefone tocar e já olhei para o meu relógio de pulso.

Era uma hora da manhã.

Quem é que liga para outra pessoa numa hora desta?

Será que alguém morreu?

Algum parente foi parar no hospital vitima de um implacável ataque do coração?

Não sei.

Dirigi-me para o quarto e o telefone ainda tocava.

André colocou a mão para fora da cama e pegou o telefone.

— Alô! Sim, é ele. Pois não? O QUÊ?

Vi o homem dá um salto na cama.

Vi seus olhos se esbugalharem.

— Quem está falando? Quem está falando?

Repetiu mais três vezes e desligou o telefone.

Sua esposa, Keila, acordou.

— Quem era, querido?

Ele ficou andando de um lado para o outro.

Sentei-me na beirada da cama para melhor ouvir a conversa.

— Não sei, não sei. A pessoa não falou o nome.

— Por que está tão nervoso?

— A pessoa disse que sabia.

— Sabia o quê?

— A pessoa não disse, Keila. Só disse que sabia.

— E por que está tão nervoso?

— Ora, por quê!? Por quê!? Por acaso se esqueceu?

— Do quê, querido?

— Você sabe muito bem do que estou falando – e André lançou um olhar de segredo para a esposa – do quintal, lembra-se?

Keila empalideceu-se.

— A pessoa disse que sabia disso?

— Não. A pessoa só disse que sabia e ponto final. Desligou o telefone.

— Calma, André. Vai perder uma noite de sono por causa de um trote. Ninguém sabe de nada. Só você e eu. Além do mais, isso aconteceu há dez anos. Por favor, tenha santa paciência. Venha, volte a dormir, querido!

André foi até a janela. Puxou a cortina e olhou para o quintal lá embaixo. Ele voltou para a cama e deitou-se ao lado da esposa.

— Eu fiz aquilo por amor. Por você.

— Esqueça, querido. Durma, por favor.

Passado vinte minutos, quando André estava pegando no sono, o telefone tocou outra vez.

— Alô? Quem é você? O que você sabe? Vamos, responda!

Desligou o telefone.

— Era aquela pessoa de novo, querido?

— Era.

— Tire o fio do plug, não quero perder o meu sono por causa de trotes.

André levantou-se e foi até a parede perto do criado mudo. Tirou o fio do plug do telefone e, para minha surpresa, no mesmo instante, o telefone tocou e ficou tocando mesmo com André segurando a ponta do fio em sua mão.

— Só pode ser brincadeira – comentou Keila. E foi ela quem tirou o receptor do gancho.

Ela não disse nada, apenas escutou:

“Eu sei. Eu sei de tudo. Eu vi”.

— Querido, é a sua voz!

André pegou o telefone e colocou-o no ouvido.

Ouviu a própria voz dizer: “Eu sei! Eu sei de tudo”.

Abriu a janela e atirou o telefone para fora. Voltou-se para a esposa.

— Eu não deveria ter feito aquilo. Foi um erro.

— Não deveria, mas fez. Agora, esquece isso.

— É fácil para você, não é? Não teve que sujar as mãos.

— Do que está falando? Você queria o dinheiro dele tanto quanto eu.

— Eu só queria ficar com você. Lembra-se? Você não quis fugir comigo. Era só você que queria o dinheiro!

— Fugir com você? E do que viveríamos? Você não tinha onde cair morto. Vamos esquecer o que aconteceu. Nós dois saímos ganhando e você sabe disso. Temos tudo o que precisamos, temos carros, dinheiro e bens. Pra quê se preocupar?

— Alguém sabe o que fizemos.

— André, para com isso. Venha, vamos dormir.

Keila virou-se para o lado e voltou a dormir, mas vi que André ficou acordado a noite inteira. Que pensamentos tomaram o seu sono, não sei dizer. Só sei que de manhã ele havia envelhecido mais de vinte anos. Estava com uma aparência péssima e andava curvado como se carregasse um piano nas costas.

A mulher levava a vida normalmente – saía para fazer compras, passeava no shopping, ia ao salão de beleza; enquanto André definhava no sofá, talvez por saber que “alguém sabia”.

Não ousei perguntar o motivo daquele desânimo todo.

Passado mais alguns dias, ouvi André dizer para Keila que o melhor a fazer seria contar a verdade para a polícia. Só assim ele teria paz de espírito.

Percebi que Keila não gostou do que ouviu e depois ela veio dizer que era uma boa idéia, mas que antes eles deveriam aproveitar o resto de liberdade e dinheiro para fazer uma viagem às montanhas de Campos do Jordão.

Não viajei com o casal. Fiquei em casa.

Após cinco dias, eu estava na sala quando Keila entrou sozinha pela porta.

Ela exibia um semblante de alívio, um semblante leve.

Sorria como nunca a vi sorrindo.

E foi com essa mesma leveza que a vi se vestindo de preto. Colocou óculos escuros e pegou a chave do carro e saiu de casa e eu fui junto e cheguei até o velório municipal.

Entrei e vi o caixão lacrado. Aproximei-me de uma roda de amigos e ouvi alguém comentando algo sobre André ter escorregado nas pedras da cachoeira do Lageado e ter caído de uma altura de quase 50 metros.

Batuta Ribeiro
Enviado por Batuta Ribeiro em 06/12/2017
Reeditado em 06/12/2017
Código do texto: T6191723
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