ALÉM
 
16 de Novembro de 1899

   Quando pensamos no inominável mistério além do que podemos entender, questionamos a verdade, indagamos então nossa própria sanidade mental. Será mesmo que conseguimos compreender as coisas que se formam no espectro manto através de nosso mundo, no linear dos espaços. Diz os ossos do homem que não vive mais, uma poesia, lírica romântica, sobre os jazeres dos enigmas das diversas existências secretas que nos envolvem. Digo-lhes, que certa vez, no âmbito de meu passado, encontrei nas veredas mais insanas de uma velha cidade do sul do Brasil, um garoto, filho de Mary e Paulo. O garoto chamava-se Manuel. Uma peste criatura caótica, que divertia-se brincando nos montes e nas florestas, sobre as lajes das casas e no subterrâneos, penetrando as minas mais execráveis e demasiada tenebrosas, fazia-o sem medo, pois, dizia que alguém, ao qual se referira como amigo, estava sempre ao seu lado.
   Por vezes, tentaram entende-lo. Contudo, nunca conseguiram. Sempre que estava em perigo, Manuel gritava, chamando seu amigo, e então, uma chuva de ventos se formara nas nuvens, descendo até a cidade, num assombro terrível. Por mais de um vez, pensaram tratar-se de uma entidade maligna que havia se apossado do garoto, mas aquilo, não ansiava o mal, contudo, nem o bem, somente o menino. Passei talvez uma noite o observando, seguindo-o entre os becos escuros e fedidos da cidade, penetrando na escuridão e na vastidão do pequeno povoado. As ruas se estendiam esguias, por vezes fechadas e estreitas, cheiravam a mofo e podridão, por uma certa área no centro brotava uma árvore de sulcos negros e muco espesso, como piche. A árvore tinha o nome de Amaldiçoada, e era para lá que o garoto ia, para dentro do velho carvalho, passando por debaixo de uma pequena abertura transversal na madeira oca. As mucosas se expandiam, pulsando, como crisalidas de seres fantásticos que pareciam nascer da árvore entre seus poros infernais. Ninguém se atrevera a se aproximar da árvore. A amaldiçoada, era conhecida pelos habitantes da cidade, como a árvore mais velha vista, diziam ter nascido no berço do mundo, antes de qualquer vida florescer.
   A árvore emanava um cheiro podre de enxofre que se dispersava no ar, enquanto, videiras e ervas daninhas se erguiam ao seu entorno, por vezes trepando-se e enraizando-se no solo, evadindo-se para cada vez mais perto das casas. Quando me aproximei temeroso e hesitante, arquejei meus olhos sobre as copas e vislumbrei o decadente limbo de galhos secos retorcidos, ossos velhos e descanados. Não vi folha alguma árvore, nem fruto, nem pássaros ou minhocas, vida alguma habitava aquilo. A luz oscilava ao redor da árvore, dividindo-se entre os galhos, como se a absorvesse. Meus passos pesados, seguiram a trilha que o garoto deixara, manchada de pesadelos e um desgosto incomparável. Talvez não quisesse continuar se me perguntasse, mas o que seria de mim se não averiguasse de perto, talvez aquela insolente obstinação pelo desconhecido me fizesse esquecer do pânico insuportável que me conduzira desde que conhecera o garoto.
   Então… quando menos esperava, sem estar preparado psicologicamente, ouvi algo sussurrando de dentro da pequena fenda na árvore, um som infernal, marcado de horror, um rouco senil, demasiado grave, por vezes como um assubiu fino que se entrelaçava ao vento estridente. Recuei. Pensei por um momento que algo tocara meu rosto, mãos flácidas, melosas e tão lívidas como qualquer outra. Porém, aquela sensação, logo deu espaço para um silêncio aterrador.
   Enquanto penetrava na árvore, e embora não soubesse ao mínimo o que poderia encontrar lá dentro, não recuei novamente, permaneci firme e continuei. Uma memória longínqua colapsou-se me minha mente de repente, algo que não me lembrara desde o presente momento. “O dia em que nasci”. Sair da placenta da minha mãe foi difícil, lembrei-me do tempo que estava em seu interior, numa bolsa esponjosa, nadando em seu ventre, incorporando sua humanidade. Contudo, logo repudiei aquele pensamento.
   O escuro tomava forma dentro daquela arvore. As entranhas pérfidas se deduziam em pares de raízes grossas, cobertas de uma camada de um líquido viscoso, do qual não conseguia identificar. Quando ascendi a lanterna a minha frente, percebi que alguém estava sentado ao lado de uma sepultura, amorfa, sem registros. A lapide se revelara numa pilha de escombros e crânios de animais, na sua maior parte pássaros e ratos. A figura intermitente que jazia ao lado da sepultura tremia, como se estivesse com frio. Me aproximei pensando ser Manuel, o garoto, mas logo descobriria algo indescritivelmente horrendo, o apogeu da loucura havia me acometido. Arrastando-me sobre o sepulcro, pelos juncos e planícies estranhas de formas espantosamente deformadas, que pediam como plantas carnívoras. Somei a mão em sua direção dizendo; “Não tema garoto, estou aqui…” Então uma voz nostálgica me assolou; “Por favor saia, não aguentara o destino, o súbito fardo das eras, a fagulha indivisível que nos trairá... corra... fuja...” Ressoou, em voz fraca e tênue, com certo grau de frieza e insalubridade, transmitindo-me um sentimento indiferente de tristeza.
   “Já não há tempo… eu me lembro… isso já aconteceu”
   A silhueta esquelética levantou o rosto e pela primeira vez na minha vida, gritei de medo. Então, o chão sobre o sepulcro ruiu e cai na escuridão daquela cova. Perdi minha lanterna na queda. Cego, não sabia onde estava. Tentei escalar de volta, mas as paredes eram lisas e pegajosas. Portanto, tateei tudo que podia, tentando me locomover, chegar a algum lugar. Um cheiro de fumaça surgiu no escuro e em seguida, mesmo podendo ser fruto de meus delírios, tenho certeza ter ouvido uma risada, vinda do fundo do escuro, ecoando devagar e escoando pelas rochas.
  “Quem está aí” Gritei. Daí em diante, a risada, intensificou-se, o tom transgênico e macabro, impossibilitava discernir se era de um homem ou de uma mulher, mas, conforme andava, ela se intensificava, tornando-se tão forte quanto uma gargalhada aguda, como se debochassem de mim e do meu estado atual. Após metros percorrendo aquele caminho escuro e indubitável, percebi que outras coisas rastejavam ao meu redor, coisas que não podia ver, coisas estranhas das quais toquei e percebi que eram envoltas por grandes carapaças, sendo que algumas tinham uma textura gelatinosa, como se tocasse em uma anêmona-do-mar.
   “Por aqui!” Ouvi. Desta vez, a voz era baixa e fina, como a de uma criança, e entre a desordenada canção assustadora de risos e gargalhadas daquela tumba pecaminosa e febril, decidi segui-la. Fora minha primeira ação, lúcido. Pois, havia perdido minha razão desde que me vi sentado ao lado daquele sepulcro, penando, como um fantasma. Seguindo a voz da criança, logo me afastei dos risos, e das criaturas estranhas e por fim, cheguei até um buraco. Uma luz putrefaça escuro-ígneo, como o de labaredas dançava pela passagem, iluminando a entrada. Meus olhos demoraram para se apropriar da luz, meio nauseado e ofegante, tremia, como se não conseguisse aguentar mais nada.
   “Venha senhor… por aqui, estamos lhe esperando” A sombra do garoto se formava entre a luz das chamas que emanavam do buraco. Senti um calor irrepreensível, mas suportável, quis permanecer onde estava, porém, era melhor que observar aquelas coisas sem forma que vagueavam pelo escuro.
   Entrei no buraco, e então um manto de cipós e videiras cheias de espinhos se inclinou e fechou a passagem, emaranhando-se. Um dos espinhos raspou em meu braço. Lembro-me de sentir uma das piores dores que já havia sentido, uma excruciante ferida aberta, um pequeno arranhão. As videiras deviam ser venenosas, poderia morrer pensei, mas a dor logo passou e deixou em meu braço um sulco podre escorrendo pus e um líquido áspero verde, como um bolor que crescia na ferida. Durante o tempo que me distraí com a ferida, não notei uma enorme fogueira arquejando-se atrás de mim.
   Uma sombra. A sombra do garoto, sibilava entre as chamas e as labaredas incontroláveis da fogueira que tinha três vezes o seu tamanho. Algo estava atrás dele, uma sombra maior, com certo aspecto humano, mas com seis braços retangulares e flexíveis, uma estrutura envergada e uma cabeça cheia de tentáculos, com dois chifres dobrados, como os de um bode. Ouvi a coisa ululando para o garoto, dizendo-lhe coisas ininteligíveis, das quais ressoavam uma língua grotesca e demoníaca. O garoto saiu das chamas. “Venha, Zihechyl Argoth quer conhece-lo senhor... ele quer conhece-lo...”
   A coisa começou a emitir um zunido fino e seus olhos surgiram, como dois medalhões de citrino, formando anéis de luz amarelado. “Ele quer que você se aproxime... pode ir... nada de ruim vai acontecer” Disse o garoto, puxando meu braço. Manuel não sujeitara expressão nenhuma de medo, pelo contrário, de certa forma estava demasiado empolgado, como se ansiasse aquilo. Aproximei-me do fogo. O calor intenso me impedia de continuar, isso porque se entrasse ali, queimaria vivo. Uma lombriga, isso mesmo, uma maldita lombriga pensei, lombriga gigante só podia ser. Não posso compreender onde estou, mas tento admitir que estou lucido e tudo é verdade, mesmo parecendo, talvez, uma alucinação, fruto de meus incansáveis pensamentos ludibriantes, fruto de minha imaginação terrena, sem horizontes.
   Muito pouco me recordo do que ouve naquele lugar, pois, quando o garoto me empurrou para dentro do fogo, perdi total consciência da razão. Contudo, noto que este mundo ao qual estou agora, é sem dúvida, uma pálida miragem de minha existência. Vejo seres estranhos invadindo os campos, descendo dos vales, silhuetas deformadas, alguns, gigantes, com várias cabeças e braços, medindo alturas inalcançáveis, dos quais nem conseguia enxergar, como Hecatônquiros e serpentes aladas que se desprendiam das nuvens como raios. Vi o garoto voltando a árvore, tentei segui-lo, mas não acho mais o caminho. O caminho está fechado, não consigo retornar. Espero que esta carta, escrita às pressas num trapo velho, sirva a alguma alma solitária de conforto, pois, saberá que não está sozinha. Eu estive aqui..., mas, agora... “Ele me encontrou...”
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 16/12/2017
Reeditado em 16/12/2017
Código do texto: T6200340
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