Abraço de Natal
 
Surpreenderam-se ao despertar, os dois ao mesmo tempo, pouco antes das sete. Haviam deitado tarde, só depois de concluir os preparativos para a noite feliz de Natal que vinham planejando, há dias, nos mínimos detalhes.

– Esquisito acordarmos tão cedo, Greg, depois de termos ido dormir tão tarde.

– Mais estranho ainda, Kitty, foi o sonho que nos despertou de madrugada. Está lembrada?

Pouco antes das quatro da manhã haviam despertado juntos, os dois com o mesmo sonho. Acenderam a luz sobressaltados, tentativa de espantá-lo, não por ser assustador, mas por ser bizarro.

No sonho, uma espiral de luz que ia do chão ao teto do quarto espalhava um perfume de lavanda pela casa. Fora a intensidade do cheiro que os despertara.

Primeiro ficaram perplexos com a coincidência do sonho, depois riram admirados de que a conexão entre eles atingisse-lhes até o inconsciente quando estavam desacordados. Embora evitassem comentar, ambos ainda não haviam se acostumado com a falta de luminosidade da casa nem com o cheiro áspero que suas escuras paredes de madeira exalavam.

– Claro que lembro, Greg. Luzes coloridas, cheiro de lavanda. Anjos nos visitaram. Bons presságios.

Os filhos, as noras e os netos estavam vindo para o Natal. Haviam tomado um voo até o aeroporto mais próximo. De manhãzinha haviam enviado mensagem  dizendo que estavam a caminho em um único carro, uma van, devidamente equipada para enfrentar a neve que cobria as estradas que separavam o aeroporto daquele fim de mundo para onde haviam se mudado.

– Já não era para os meninos terem chegado, Greg?

– Sim, se não tivesse nevado a noite toda, Kitty. As estradas devem estar bem complicadas.

Ainda não estavam arrependidos da mudança para Garden Rose, mas temiam que em breve pudessem ficar. Haviam escolhido o local pela beleza da paisagem, as montanhas nevadas ao fundo, um lindo espelho d’água ao lado. Por se tratar de uma vila muito pequena, haviam imaginado um convívio comunitário capaz de preencher a nova fase da vida que iniciavam.

Já fazia quatro meses, entretanto, que estavam morando lá e até então não haviam estabelecido qualquer vínculo de amizade, exceto com a menina Clarence, de sete anos, dona de dois gatos – King e Lord – filha do vizinho do lado.

 
 
Por volta das dez, ainda sem sinal dos filhos, Kitty avistou Clarence pela janela. Aproveitava para brincar em seu trenó com os gatos depois que a nevasca cessara. Como havia comprado um presente de Natal para a menina, resolveu convidá-la para um chocolate.

– Clarence, quando cansar de brincar, venha aqui. Vovó Kitty tem uma coisa pra te dar – falou em bom tom pela porta entreaberta.

Não demorou, Clarence, acompanhada por King e Lord, bateu a sua porta. Kitty serviu-lhe chocolate na mesa da cozinha e entregou-lhe o presente. A menina ficou olhando constrangida o embrulho pousado na mesa ao seu lado.

– Vamos, minha filha, abra!

– A minha mãe diz que o Natal é uma festa profana e que dar ou aceitar presentes é pecado.

Kitty, desconcertada, tomou o presente de volta.

– Esquece o presente então, minha filha. Toma seu chocolate. Mais tarde eu quero que você venha aqui conhecer os meus netos. Tenho uma netinha quase da sua idade.

A menina terminava o último pedaço da torta que Kitty havia servido para acompanhar o chocolate quando Greg bradou da sala.

– Kitty, os rapazes chegaram!

Vinham a pé caminhando, as botas afundando na neve fofa que cobria o caminho da estrada até a casa. Os dois filhos vinham à frente, cada um com os netos menores no colo. As mulheres estavam logo atrás, de mãos dadas com os maiores. Todos traziam um sorriso no rosto, como se a longa viagem, o frio e o esforço para se deslocar na neve recente não os afetasse. Atrás deles uma névoa branca dava à cena uma sutil aparência de irrealidade.

– Filhos, que bom que vocês conseguiram chegar. Fiquei apreensivo por causa da nevasca – disse-lhes Greg assim que cruzaram a soleira da porta.

– Graças a Deus deu tudo certo, pai. – falou Frank, o mais velho – Passamos por alguns acidentes, carros parados, mas a sorte estava do nosso lado.

– E cadê o carro? – perguntou o pai.

– Deixamos próximo da cidade, perto de uma oficina. Vai precisar de uns reparos antes de voltarmos. O dono da oficina nos deixou aqui em frente, na estrada.

– Venham cá meus queridos, me deem todos um abraço bem apertado – Kitty dirigiu-se aos filhos, netos e noras, os braços estendidos na frente do corpo, um sorriso de felicidade nos lábios – estávamos ansiosos que vocês chegassem.

Kitty ainda abraçava as crianças, quando Clarence, com os olhos arregalados, aproximou-se dela e disse que precisava ir embora para casa.

– Obrigada, senhora Kitty, pelo chocolate quente – fez uma pausa antes de continuar – Mais tarde eu volto para – nova pausa – cumprimentar os seus convidados.

Antes de saírem pela porta atrás de Clarence, os gatos, o dorso muito arqueado, relaram as pernas, um a um, dos recém-chegados.

As crianças assistiram encantadas, o avô acender a lareira. Disseram nunca ter visto uma lareira de verdade. Kitty serviu bebidas a todos, depois levou as noras para conhecer os cômodos da casa.

Para o almoço, haviam assado peru e carneiro, uma especialidade de Kitty que os filhos adoravam. Às crianças, serviram hambúrgueres caseiros com batatas assadas ao invés de fritas, porque eram mais saudáveis.  Como sobremesa, havia  cookies sortidos comprados por Greg na cidade.

Ao recolher a louça do almoço, Kitty estranhou que todos os pratos, exceto os que ela própria e Greg haviam usado, pareciam estar limpos, como se não tivessem sido utilizados.

Terminado o almoço, trocaram presentes, embora não fosse esse o script programado. Kitty havia costurado um saco vermelho que pretendiam deixar na varanda com os presentes, para dar a impressão de que fora o Papai Noel que os entregara. Mas Greg estava ansioso para dar às crianças o trenó que ele mandara fazer em uma impressora 3D a partir de uma foto antiga, de um trenó seu de infância, que havia recentemente encontrado.

Aproveitaram o resto da tarde brincando com as crianças do lado de fora da casa. Depois, para que se aquecessem,  Kitty os convidou para um chá com leite ao pé da lareira, na sala.

Tomavam o chá quando foram interrompidos pelo barulho de batidas firmes na porta de entrada.

– Quem pode ser a essa hora? – disse Greg, uma pergunta retórica, já se levantando.

– Talvez seja a Clarence – sugeriu Kitty –  ela ficou de vir aqui mais tarde.
Greg viu pela janela que havia três policiais à porta. Decidiu recebê-los do lado de fora.

– Pois não. Em que posso ajudá-los?

– O senhor é Gregory Addington, pai dos senhores Francis e Thomas Addington?

– Sim, o próprio. Algum problema?

– Podemos entrar?

– Estou com visitas. Do que se trata?

O policial respirou fundo antes de começar.

– O carro em que seus filhos viajavam sofreu um acidente essa madrugada.

Greg não se alterou, lembrou-se do filho ter dito que o carro precisava de alguns reparos.

– Sim, continue.

– Seus filhos, as mulheres e as crianças faleceram no acidente, senhor Greg. Nós sentimos muito.

Greg ficou paralisado, os olhos perdidos, a boca entreaberta. Virou-se na direção da lareira onde deveriam estar todos – os filhos, as noras, os netos. Mas somente Kitty estava lá, a materialidade dos demais instantaneamente desfeita pelo choque de realidade que os policiais haviam lhe dado.

Kitty virou-se para a porta no exato momento em que ele, muito pálido, a olhava. Greg pediu aos policiais que se retirassem. Ele daria a notícia à mulher. Mais tarde tomaria as  providências necessárias.

Os familiares na sala se desvaneceram também aos olhos de Kitty quando Greg lhe contou sobre o  acidente e as mortes. Examinou as xícaras na sala e viu que, assim como os pratos do almoço, elas também permaneciam intactas.

Choraram desconsolados por horas seguidas sem ânimo para nada até adormecerem abraçados.  Novamente um sonho os despertou de madrugada. Nele, uma espiral de luz negra do céu à cama onde estavam exalava um cheiro forte e desagradável.   
 

 
Melisas Ribeiro
Enviado por Melisas Ribeiro em 22/12/2017
Reeditado em 22/12/2017
Código do texto: T6205911
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