Foi assim que eu atraí a Mariana. Ela não era, na verdade, nenhuma mocinha romântica e impressionável com uma boa conversa. Ao contrário, era uma garota já madura, com vinte e oito anos, que vivia só com sua mãe, estava no último ano do curso de pedagogia e já trabalhava como professora de educação infantil em uma escola da prefeitura local há três anos. Ela passava pelo parquinho todas as noites, depois da faculdade. Um dia ela me ouviu declamando um soneto que eu havia feito a pedido de um rapaz que queria conquistar uma garota nordestina que ele acabara de conhecer no parquinho. O poema, que eu chamo de soneto só porque ele tem quatorze versos dispostos em duas quadras e dois tercetos, embora despreze as demais especificações estruturais desse tipo de composição, era assim: “A minha amada é filha do sol ardente, Das caatingas, onde a flora ressecada, Ainda gera a flor bonita e resistente, Que só nessa terra pode ser encontrada.| Em suas mãos trás o cetro da realeza, Feito de coragem e sabedoria natural; Virtudes muito maiores que a beleza, Que para elas, não é só fundamental.| Os seios da minha amada são divinais, Redondos como o cone de um vulcão, Firmes, mornos, monumentos naturais.| Assim como a matéria prima do cristal, Eles assumem a forma da minha mão, Se transformando no meu Santo Graal.”
 
   Não era grande coisa, convenhamos, mas chamou a atenção dela. Talvez fosse o fundo musical, proporcionado por Elvis Presley cantando Love me Tender, mas o fato é que ela me procurou na cabina do parquinho para saber quem era o autor daqueles versos.
   ̶  Fui eu que os escrevi. Gostou?  ̶  respondi perguntando, com certo orgulho, pelo fato de eles terem chamado a atenção de uma garota como aquela.
     ̶  Gostei. Parece que foram escritos para mim   ̶  disse ela, com sorriso encantador .
     ̶  Porque?
     ̶  Porque eu sou nordestina e também venho das caatingas. Para quem você fez essa poesia? Para alguma namorada sua?
       ̶  Foi justamente para uma garota nordestina. Mas não era minha namorada.
      Ela sorriu e compreendeu a minha intenção.
        ̶ Amanhã você toca essa música com essa poesia para mim e deixa eu gravar? Eu pago  ̶  disse ela.
         ̶  Toco. E você pode gravar. E não precisa pagar nada por isso. Presente meu para você. Será uma honra para mim  ̶ , respondi.
    Na noite seguinte ela veio, com mais duas colegas, e trouxe um gravador de fita. Eu toquei a canção do Elvis, declamei a poesia e dei uma cópia para ela.
    Depois ela voltou várias outras vezes e foi assim que a gente começou a namorar.  
                                                        ***
     A primeira coisa que pensei ao ver Mariana sentada em cima da cama, com aquela revista nas mãos, foi que ela voltara
para cobrar-me o fato de eu ter se juntado com a amiga dela exatamente um mês depois de ela ter falecido. Que ela talvez pensasse exatamente o que qualquer pessoa que está lendo este relato pensaria. Que nós já tínhamos um caso quando ela ainda estava viva. Afinal, seria até lógica uma dedução dessas, porquanto durante o último ano da vida dela, em face da doença que a matou, nós não tínhamos uma vida sexual normal. A quimioterapia havia destruído praticamente a libido dela e mitigado ao máximo o seu apetite sexual. E eu era um homem de cinquenta e quatro anos, cheio de tesão pela vida e pelo sexo.
    E para piorar o caso, Marisa era uma mulher bonita e sexualmente muito atraente. Ainda não tinha feito quarenta anos, o que pressupunha estar em plena maturidade sexual, coisa que não passaria despercebida a um sujeito na minha idade e condição.
         ̶  Como vai a Marisa?   ̶  Mariana perguntou, levantando os olhos da revista e olhando diretamente para mim. A pergunta saiu natural e eu não senti nenhuma ambiguidade ou intenção oculta nela. Apenas o interesse de alguém perguntando por alguém a quem não vê a algum tempo.
        ̶  Bem  ̶  respondi, tentando mostrar naturalidade também. Não sei se consegui, mas se não, isso não foi usado por ela para explorar os meus receios, porque ela não disse mais nada a respeito. Só olhou para mim e esboçou um pequeno sorriso, daqueles que ela costumava dar quando o assunto era banal e só entrava na pauta das nossas conversas por mera falta de assunto.
        Os olhos dela não pareciam os olhos de uma morta. Ao contrário, ali ainda se via o brilho de uma mente que pensa, sente e articula palavras engenhosamente arranjadas para informar um estado interno de sensibilidade que se supõe ser próprio de uma alma encarnada, ainda de posse de todas as faculdades de um ser vivo. Mas não havia maldade no olhar dela nem ambiguidade na sua voz, apenas o sincero interesse de uma pessoa que acaba de voltar de uma longa viagem e quer saber notícias de alguém de suas relações. Fui eu, talvez premido por um sentimento de culpa, que pressupus que essa pergunta, feita assim de sopetão, tivesse a ver com minha, vamos dizer, precocidade em sair daquela condição de viúvo inconsolável e me embolar com a sua amiga tão rapidamente. Afinal foram vinte e cinco anos juntos, de um casamento que todo mundo achava perfeito. E bastou um mês para que eu esquecesse tudo e a substituísse, no coração, na vida e na cama, por outra mulher, que era exatamente a sua amiga.
       A pergunta me alertou pelo fato de ela não obedecer á uma ordem de prioridade para uma pessoa que, tendo estado ausente por tanto tempo, normalmente teria outros assuntos mais urgentes sobre os quais se informar. Se ela tivesse perguntado sobre nossas filhas, por exemplo, eu teria achado a coisa mais natural. Mas ela não perguntou como ia a Jimena, a nossa filha mais velha, que havia casado cerca de dois anos antes de ela ter falecido e nos dera uma linda netinha que agora estava começando a andar e a falar. Nem quis saber da Gisela, nossa filha mais nova, que mudara para a capital do estado para estudar Turismo. Calculei que essas fossem coisas que ela talvez já soubesse e quem sabe, estivesse acompanhando, do mundo dos mortos, se é que lá se tem noticia do que acontece no mundo dos vivos.
        ̶  E as meninas, vão bem?  ̶  ela perguntou, como que respondendo aos meus pensamentos.
        ̶  Estão ótimas. A Luizinha está quase falando  ̶  respondi, com um certo alívio por perceber que o assunto Marisa não era exatamente o foco das atenções dela, e que o fato de ela perguntar primeiro pela amiga era apenas circunstancial. A Luizinha era a nossa netinha de um ano de idade.
      É claro que eu não estava preparado para aquele encontro e isso justifica o fato de ficar sem palavras e sem perguntas, como fiquei, ali, na frente dela, como se não tivéssemos nada a conversar depois de uma separação tão traumática como foi aquela. Nem me bateu curiosidade de perguntar onde ela esteve todo esse tempo, ou como era aquele mundo para onde as nossas almas vão depois de desencarnadas, se ela vira Deus, anjos, ou quaisquer outras entidades, pertencentes a essa fauna, cuja existência as religiões do mundo todo tentam nos fazer acreditar.
      Talvez essa ausência de curiosidade, ou mesmo a falta de temor com que eu enfrentava essa estranha experiência viesse exatamente do fato de eu não ter nenhuma crença a respeito dessas coisas. Não que eu seja ateu, ou que professe qualquer coisa parecida com esse comportamento paradoxal que diz não acreditar em Deus sem saber que para a gente não acreditar em alguma coisa é preciso, primeiro, pressupor que essa coisa possa existir. Quer dizer, nós não podemos dizer “eu não vou me sentar naquela cadeira” sem antes pressupor a existência de uma cadeira onde eu não vou me sentar. Assim, não posso dizer que Deus existe ou não existe. Só posso dizer que não sei se ele existe. E se existe, quem o que Ele é. E isso leva a outros questionamentos que envolvem assuntos mais próximos ao fato de Mariana estar ali, na minha frente, conversando comigo como se estivesse apenas voltando de uma viagem. Isso tudo já desafiava mais preconceitos do que eu tinha capacidade de absorver com minha mente tão apegada ao simplesmente explicável pelos padrões da lógica e do cientificamente provável.  
       ̶  Ela deve estar linda ̶  disse ela, com aquele sorriso que eu tanto amava quando se referia á alguma coisa que a fazia feliz.
       ̶  Sim, ela está  ̶  respondi, sem saber o que mais poderia dizer a ela.
       ̶  A Gisela está gostando da faculdade?
       ̶  Acho que sim. Ela não falta ás aulas e fala com entusiasmo das coisas que tem aprendido lá.
       ̶  Que bom.
     O tom da voz dela era natural como de alguém que só quer mesmo se informar de coisas que aconteceram durante a sua ausência e que diziam respeito à pessoas da sua relação. Eu não sabia o que dizer mais, nem se deveria perguntar sobre coisas que ela viu, ouviu, sentiu e viveu enquanto esteve desse outro lado da vida que eu, agora, estava sendo obrigado a admitir que existia porque estava exatamente conhecendo alguém que conseguira voltar dele. Antes disso era inadmissível para mim uma possibilidade dessas, pois nem a chamada ressurreição de Jesus eu admitia como um fato histórico real, mas apenas como uma tradição arquetípica que alguns especialistas da mídia cristã aproveitaram para aureolar a sua religião com um poder acima de todas as outras crenças, ou seja, o poder de vencer a morte. Voltaremos a esse assunto em momento oportuno, mas por ora só posso dizer que todas essas coisas passaram pela minha cabeça com a velocidade de um cometa que surge no oriente e desaparece no ocidente em razões de segundos.
      Não deu tempo para nenhum desses pensamentos chegar ao órgão fonador em condições de ser expresso em linguagem. Ouvi um barulho de gente abrindo a porta da sala. Marisa, pensei. Esse foi mm pensamento que se sobrepôs a todas as perplexidades que eu estava tentando organizar dentro da confusão que se estabelecera dentro da minha cabeça. Meu Deus, o que vai acontecer se ela encontrar Mariana aqui? Como vai entender isso? Como vai encarar esse fato tão extraordinário?
      ̶  Parece que tem alguém lá fora  ̶   eu disse. Levantei-me e saí do quarto.  ̶  Já volto.
      ̶  Tudo bem  ̶  respondeu Mariana, com aquele sorriso tranquilo, de quem já vivera aquela situação outras vezes. Vá ver quem é. 
    Era Marisa. Levei-a imediatamente para a cozinha, pus água no fogo e disse que ia fazer um café. Aí me deu uma vontade incontrolável de ir ao banheiro. Pedi que ela tomasse conta da água no fogo enquanto eu ia fazer o meu xixi. Corri para o quarto sem a menor ideia do que fazer com Mariana. Mas ela havia simplesmente desaparecido.
(continua)