ANTES TARDE DO QUE NUNCA?

Adolf sentia-se cansado nesses dias quentes de verão. Morar sozinho para um velho de 65 anos não era uma tarefa muito fácil. Embora a boa e fiel empregada, Dona Eleonor, cuidasse dele com uma dedicação filial, às 18 horas ela ia embora e ele sentia inevitavelmente a solidão e como era triste. Sem filhos, sem irmãos, os pais já haviam morrido, sem mulher, sozinho mesmo no mundo. Há alguns anos apenas ele tinha prestado mais atenção em Dona Eleonor, uma viúva, sem filhos, que se prestava com tanto zelo a cuidar de um velho como ele. Se bem que ela já não fosse muito nova, vai lá que uns 10 anos mais nova que ele, se tanto. Mas a curiosidade da questão era a seguinte, porque ela se prestava a isso? Será que Dona Eleonor nutria no fundo algum sentimento de amor pelo velho ou será que era apenas compaixão, pena? Ela sempre deixava o café na mesinha ao lado da cama, torradas no pote de vidro, a xícara, o pires, a colher, tudo sempre do mesmo jeito, todos os dias, religiosamente há 10 anos que era assim. Mas quando ela ia embora tudo parecia mudar, piorar. Na sacada do apartamento, ali do 8º andar, ele via de tudo. Uma noite dessas viu um bêbado dar uma pedrada em outro pela disputa do último trago. O bêbado alvejado ficou ali caído no chão, enquanto o outro, vibrante comemorava entornando sua conquista. Saiu rindo como louco com a garrafa, debochando e resmungando contra o outro bêbado. Eram coisas comuns de cidade grande: assassinatos, assaltos, gritaria, badernas. Só que estava piorando, porque Adolf começou a ter algumas visões que pareciam sobrenaturais e aí, numa idade que não podia mais confiar em sua sanidade, ele se perguntava, isso é real ou são as sandices de um velho louco? Foi por isso que ele começou suas caminhadas matinais todos os dias. Saía bem cedo, antes de Eleonor chegar, mas já tinha pensado em convidá-la em mais de uma oportunidade e não teve coragem. Tinha medo de ser entendido de forma errada.

Transformou suas caminhadas numa rotina agradável. Tomava os remédios, media sua pressão na farmácia da esquina, na ida e na volta e passava na padaria pra comprar o pãozinho. Tomava um café gostoso com Eleonor e conversavam sobre o dia deles. Isso o deixava mais cansado a noite e desde que começou não tinha ainda caído na distração de espiar da sacada, as cenas bizarras da cidade infernal. Tudo ia bem, mas esse estado agradável das coisas é tão frágil, que logo desmorona a falsa fortaleza que o cerca e foi assim que sonhos passaram a atormentar o velho Adolf. Num desses sonhos, talvez o mais amedrontador, uma figura tal qual uma sombra aparecia e se movia trêmula, como num sopro, movendo-se pra frente e pra trás, apagando e ressurgindo fantasmagoricamente. Inicialmente a sombra parecia querer fazer contato, chamando, com o rastro indefinido do que parecia ser um braço projetando-se daquele conjunto insólito. Depois leves gemidos que cresciam para sussurros, até se tornarem agudos gritos ensurdecedores. A gruta, vá até a gruta. Quando a noite chama temos que obedecer. Faça o que eu ordeno e sua recompensa será valiosa. E foi assim que o velho Adolf levantou-se da cama e mesmo de pijama e chinelas atendeu ao chamado da noite. A tal gruta, a qual a aparição indicou, ficava nas colinas ao sul da cidade, a 30 km dali, pediu um uber, pelo menos teve o senso de não dirigir naquele estado.

A lua cheia e brilhante enchia o véu noturno de claridade e de mistério. No topo das colinas uma cortina de névoa se aglutinava. O uber o deixou numa rua sem saída. Ali não tinha comércio ou casas, mas enormes terrenos com prédios abandonados e o aterro sanitário no final da rua. O lugar tinha sido abandonado após o aumento da criminalidade. Depois de contínuos assaltos todos os comerciantes tinham abandonado a área e deixado casas e prédios ocos e silenciosos.

Subindo uma escada escavada no próprio solo da encosta o velho apoiava-se em sua bengala e empreendia sua jornada. Os insetos incomodavam e a subida não era fácil. Duas vezes tinha pisado em falso ou escorregado em pedras, mas continuava. Ao terminar a escada uma estrada de barro cortava a montanha, contornando suas sinuosidades. Olhando pra cima, há uns 50 metros via a gruta, mas sem escadas. Teria de escalar, enfrentar todos os obstáculos à frente. A escalada difícil foi superada pela promessa do sonho. Sonho que lhe encucara um vaticínio, acreditava ele. Ao chegar no local onde ficaria a gruta, depois de sofrer arranhões, perder uma das chinelas e escorregar, quase caindo colina a baixo, Adolf não achou a gruta. Andou 10 metros à frente, depois voltou os 10 metros e avançou mais 10, estava perdido. Então um cachorro completamente preto apareceu. Um cachorro de orelhas pontudas, focinho fino, muito magro e peludo, diferente de qualquer raça que conhecia, diferente mesmo até de qualquer vira-latas, um cachorro estranho. Ficou paralisado, segurou com as duas mãos a sua bengala à frente do corpo, pronto para se defender de um ataque. Mas o cachorro não o atacou, em vez disso andava e parava, como se quisesse que o velho o seguisse. O velho, preparado para qualquer coisa de natureza grotesca, sentia confiança em seguir o cachorro. O cachorro o levou até a entrada da gruta. Depois deu dois latidos e saiu correndo desaparecendo na escuridão.

- Oi Adolf, que bom nos conhecermos.

- Eu não estou te vendo, só escuto a sua voz.

- Você gostaria de ver meu rosto? Seria o modo apropriado de nos apresentarmos, não é?

- Sim, seria.

- Convém lhe avisar, caro Adolf, que antes de ver meu rosto, certos termos e condições têm de ser acertados entre nós. Acredito que a sua vinda até aqui seja baseada em qualquer crença no oculto. Você acredita no oculto, Adolf? Embora Adolf não visse a pessoa ou besta, monstro, demônio, ou o que quer que fosse que proferia aquelas palavras firmes e contundentes, ele via faiscarem chispas amarelas e vermelhas do que poderiam ser os olhos e sentia o seu hálito, sua respiração monstruosa, como de uma fera colossal. A partir daquele ponto Adolf sabia que teria de ter cuidado com decisões, com as palavras que proferisse, com tudo.

- Eu acredito em muitas coisas. Minha idade e experiência já me fizeram ver muitas coisas para as quais algumas não há explicações racionais. Eu também desconfio do que vamos tratar aqui e no alto dos meus 65 anos estou sim disposto a pagar o preço para aplacar as consequências da velhice. A criatura, respirou profundamente 3 vezes e deu uma baforada, antes de começar a falar: - Então você aceita as consequências para o que tenho a lhe oferecer? Parece pra você tudo estar bem claro, então, podemos prosseguir?

- Sim, eu aceito. E no mesmo instante tudo se iluminou como que milagrosamente. Não se via uma fonte de luz sequer que justificasse aquela claridade, mesmo assim tudo estava iluminado. Uma luz tão forte quanto qualquer iluminação feita pelo homem para iluminar a noite. Agora Adolf via nitidamente aquele ser. Não uma sombra indefinida, não um demônio ou monstro, mas uma figura com as feições de um ser humano, só que muito alto, vestia-se com um blusão de algodão branco, um casaco de pelo de ovelha preto, calças marrons, botas de montaria e um chapéu preto de abas grandes, apesar de ser verão e estar muito quente, mas ele parecia estar frio, o ar começava a resfriar ao redor e quando respirava dava pra ver fumaça exalar.

- Tome. O bisonho homem lhe ofereceu um frasco liso, sem rótulo, pequeno. - Neste frasco tem uma poção mágica revelada através de alguns encantos a alguns magos ao logo da história e que algumas vezes causou muita confusão. Vocês não têm certas habilidades e corrompem facilmente o que é divino. O que tem que saber é que o que esse frasco contem te fará rejuvenescer 40 anos e embora sua forma física não mude você poderá sentir todos esses efeitos. Então você vai realizar seu sonho e se tornará jovem de novo e prolongará sua vida em mais 80 anos e viverá mais que qualquer um desta era. E tudo que tem de fazer para pagar sua dívida comigo é me oferecer o primeiro filho que tiver. O seu primeiro filho não poderá sequer sentir o leite do peito da mãe. Tem que ser entregue a mim imediatamente, como consequência do não cumprimento deste contrato você terá os efeitos de sua antinatural juventude cortados e morrerá pelos efeitos repentinos da velhice opressiva. O frasco foi aberto pelo homem e oferecido. Adolf sorriu satisfeito e tomou todo ele. Depois disso tudo se apagou e na escuridão completa se encontrava de novo. Voltou pra casa feliz e dormiu o resto da noite tranquilamente.

Depois daquilo o velho viveu tal qual prometera o misterioso homem alto. Jovem, cheio de disposição e animo. Tornou conhecido seu sentimento pela viúva Eleonor e casou-se com ela. Mudou-se de cidade e de país. Estava agora morando no México, numa praia paradisíaca e todos os dias amava a sua mulher e vivia a sua vida de forma intensa e bela. Conseguiu um emprego como guia turístico e há muito tinha esquecido de tudo o que acontecera naquela noite do sonho. Tudo isso se fora. Até que seu primeiro filho nasceu e na maternidade, assim que teve seu filho nos braços lembrou da promessa que fizera e do amargo preço que parecia distante mas que agora era inevitável. Lembrou-se que não poderia deixar o filho sentir o calor do peito da mãe nem experimentar o seu leite e mesmo assim fugiu de cumprir a promessa e esperou pra ver o que aconteceria. Mas nada aconteceu e viveu feliz ainda por muitos anos ao lado da mulher e do filho, o qual deu o nome de Daniel.

Um dia caminhando na praia Adolf distraiu-se e acabou indo além do trajeto habitual, muito além. Até umas rochas que despontavam da areia para o mar. De uma hora pra outra sua visão tornou-se turva e a respiração difícil, até que uma forte dor irradiou do seu peito e o fez cair na areia da praia. Contorcia-se com parte do corpo paralisada escavando a areia como se isso fosse de alguma forma amenizar aquela implacável onda de choque. Perdendo a sua luta contra o infarto, já sem forças, olhava pro céu. O céu estava limpo, de um azul cintilante e o clima agradável. Não fosse o céu do México; queria olhar pela última vez o céu da cidade que nasceu. Lembrou da sua infância, lembrou do filho Daniel e da esposa Eleonor e de como foi feliz ao lado deles. Lembrou também com pesar como na sua danação tinha conseguido encontrar o amor e como antes ao lado de Deus não fora capaz de seguir com sua vida como a maioria das pessoas de bem. Estaria condenado pra sempre? “Dani-Dani, ah, ...el.” Conseguiu com dificuldade pronunciar o nome do seu filho para então cair morto. Deitado sobre o braço direito, seus olhos abertos e vazios encarando o eterno, lágrimas que secaram, numa trágica e comovente cena de morte. Olhando para trás via-se outro par de pegadas na areia além das suas. Pegadas maiores, mais profundas, que continuavam além do ponto em que Adolf jazia caído.