Se eu tivesse aprendido alguma sobre religião, ou o que chamam espiritualidade, talvez eu me permitisse fazer uma oração, ao invés de ficar fazendo inúteis reflexões sentado em frente à uma janela para o mundo, em uma noite de lua nova, onde as estrelas parecem olhos de gato piscando no escuro.     
       Preces e orações, dizem os teólogos, contribuem para tornarem nossas almas energeticamente mais densas, enquanto reflexões feitas a esmo, sem uma unidade morfológica que lhe dê um sentido lógico, ou uma consistência de plano elaborado para algum propósito, só contribuem para queimar mais rápido a energia do universo. Isso pode ser um paradoxo, mas sinto que é verdade. Talvez o mesmo processo que é responsável pelo surgimento e organização do universo também o conduza para a sua morte. Você já pensou em quanta energia a natureza – ou quem a controla− precisou reunir para vencer e começar o processo que resultou no fenômeno da vida e depois disso, no ser humano?
     (Sim, sou obrigado a admitir agora que existe alguma Vontade no controle do universo. Porque ele é um processo. E um processo tem que ser composto e ordenado).
      Eu sempre achei que o ser humano é o resultado do esforço sinergético que o universo fez e continua fazendo para organizar a própria desorganização que Ele gerou com a sua explosão inicial.  Se ficou difícil de entender esse pensamento imagine que o universo é como uma daquelas bexigas de aniversário, cheia de guloseimas dentro dela. De repente ela explode e atira doces para todos os lados. Só que, nesse caso, são doces feitos de milhões de megatons. Com o passar do tempo, muitas deles se tornaram maiores que o nosso sol. Se colidirem uns com os outros não teremos um universo habitável, mas sim um oceano cósmico de infinita radioatividade.
      Então, (e foi aqui que a minha mente descobriu a necessidade de meter um Deus dentro dele) foi preciso inventar a lei da gravidade, para fazer com que corpos menores ficassem presos nas órbitas dos corpos maiores e estes, por sua vê, sendo obrigados a carregar sua própria “família”, não pudessem entrar na órbita de outro corpo de igual densidade energética.     
        Restabelecida, dessa forma, o equilíbrio no universo físico, bota-se ordem no caos. E com isso minha mente pula para o universo das nossas sociedades e verifica que tudo acontece da mesma forma. Há um processo hierárquico dentro dela, onde os “mais competentes” mantém em suas órbitas os menos “competentes”. Por isso, entre nós, existem Estados, famílias, empresas, generais, soldados, patrões e empregados, tudo formando uma hierarquia de funções e responsabilidades que mantém a coisa toda em equilíbrio.
        E existem também os asteróides, como eu, que teimam em não querer se prender a sistema algum, embora saibam o quão inútil e mentirosa é essa proposta de vida, pois quem não quer se encaixar em desenho nenhum sempre acaba batendo cabeça pelos múltiplos composto desse quebra cabeça universal, só para descobrir, tardiamente, que se o universo permitiu que ele existisse, é porque ele era uma peça desse desenho e o conjunto não se completaria sem ele.
 
      Rosana me disse várias vezes que essa minha mania de ficar fazendo confidências à noite era resultado de pura insônia. Que se eu fosse um trabalhador comum que rala duro durante o dia, não iria querer ficar acordado à noite, uivando que nem lobisomem para a lua cheia, ou suspirando que nem donzela medieval para a lua crescente. E se fosse também um pouquinho religioso, se tivesse uma teologia ao invés de uma teogonia, faria uma oração e iria dormir. 
      Sim, é bem possível. O homem que bem reza, bem dorme. Todavia, na estrada da vida que estação está mais perto da morte que o sono dos justos que não tem conta nenhuma para acertar com a vida? Eu sempre me senti tão inadimplente com ela... Talvez por isso não conseguisse dormir inocentemente, como ela, que caia na cama e trinta segundos depois já estava roncando como um motor tocado a diesel.
     Mas eu ficava pensando em como pagar as minhas contas com a vida. A vida, eu pensava, era como a minha empregada. Todos os dias ela vinha para arrumar a casa, lavar a roupa, organizar a minha bagunça. No fim do dia deixava as coisas todas arrumadinhas e encontrava tudo bagunçado na manhã seguinte.    
      Terminava o dia prometendo que o dia seguinte seria diferente, que ia manter tudo arrumadinho, do jeito que a minha empregada deixou. Mas daí a noite entrava pela janela, como uma amante clandestina, e tudo virava uma bagunça outra vez.    
        Sim. A noite, é assim mesmo que eu a via. Ela chegava como tarde e com respeitosa cerimônia eu a assistia trocar de roupa. Vestia o seu baby doll escuro e deitava ao meu lado. Todos os dias tinha com ela um conúbio amoroso, que resultava sempre nestes atrapalhados filhos do espírito, que abandonava pela manhã. E saciado no meu prazer intelectual, ficava na janela do quarto esperando surpreender a manhã seguinte depois de despedir essa amante noturna, que então se tornara madrugada. 
        Resquícios do meu velho espírito boêmio, que a Rosana deportou, mas que expulsos do meu comportamento cotidiano, se refugiaram nas sombras do meu inconsciente, e agora, que ela não está aqui mais para exercer a severa vigilância que exercia quando éramos casados, está retornando com outra roupagem.
(continua)