O MALDITO SOM DE PALHA SECA ESTRALANDO - CLTS 02

Ah! Meu netinho querido, não é estudando ciência na escola que você vai entender como esse mundo e a natureza funcionam. Há coisas que só se aprendem na prática; outras, nem aprendidas podem ser. Essas são as sabedorias dos antigos, os segredos passados de pai para filho. Um dia, você também terá acesso a alguns deles, pois ninguém sabe de todos. Hoje, mesmo com a mudança do tempo, ainda existem muitos mistérios, mas, confesso, não como no meu tempo. Que saudade daquela época! Os segredos estavam nas fases da lua, nas sombras, nas coisas do inverno, nos bichos, etc. Isso me lembra de quando eu tinha a sua idade. Eu adorava ouvir as histórias que o pai, o vô e meus tios contavam nas calçadas enquanto fumavam e bebiam cachaça:

- Coisas das noites de inverno.

- Meu Deus, nunca se deve fazer isso! Ele sempre aparece pra pegar quem faz mal a essa criatura de Deus!

A família, assim como o casarão, era bem grande. Os adultos eram repletos de segredos, guardavam consigo os antigos mistérios da região. Eles sabiam das verdades ocultas que se perderam com o tempo. Eu, a única criança da casa, sempre ouvia escondida eles falando sobre os segredos das águas, da lua, da noite, das casas abandonadas, dos bichos da noite, dos ventos de inverno, das rezas e ofícios secretos, das irmandades, das seitas, das criaturas das sombras e dos objetos ritualísticos e milagrosos. Aqueles tempos cheiravam a segredos. Bons tempos aqueles! Entretanto o que mais me marcou não foram os mistérios que ouvia escondida, mas o que passei naquele casarão com minha família.

Era período de inverno. O interior do Ceará estava repleto de vida de todo o tipo. O milharal estava grande e bonito. As carnaubeiras estavam bem verdes e o riacho ao fundo das terras de nossa família estava cheio. No curral, os bichos estavam gordos e bem tratados. Todos nós estávamos aproveitando os ventos frios, as chuvas e a escuridão do período. Em sua cadeira de balanço o vô todo satisfeito olhava suas terras verdes e seus filhos trabalhando enquanto fumava em seu cachimbo.

Na plantação, alguns arrumavam o velho e sinistro espantalho colocando novas vestes negras e um novo chapéu: “pronto. Está arrumado.”. Os outros em casa afiavam seus facões e consertavam o telhado pra aguentar as grandes chuvas que os ventos frios já profetizavam. As mulheres da casa colocavam as palhas bentas do dia de ramos nos umbrais das portas, verificavam se os ofícios secretos estavam escondidos atrás dos quadros dos santos que ficavam na parede da sala e colocavam nas quinas da varanda chifres de boi com essências para serem queimados nas noites tempestuosas e assim espantar as criaturas e os agouros. Alguns diziam até que fazer isso afastava os trovões e os raios. Eram os costumes da época, coisas que se fazia e que não se comentava, sabedoria que se passava com o olhar, que não se aprende na escola.

Numa dessas noites frias de inverno, o avô infelizmente adoeceu. A família toda ficou muito preocupada devido à avançada idade do idoso. Eu lembro de ouvir ele tossir muitas vezes durante o dia e a noite e de ver vez ou outra sangue nas suas mãos. “Tuberculose”, dizia a vó chorando pelos cantos da casa com um terço na mão pedindo a Deus a cura de seu marido. Eu não sabia que doença era aquela, mas logo entendi que era algo perigoso para todos da casa. Rapidamente isolaram o vô no quarto. Eu não podia mais entrar lá nem para pedir a benção. Um dos seus filhos, o meu tio, foi buscar de carroça a rezadeira da região pra ela fazer alguma coisa pelo velho. O farmacêutico da região havia morrido há alguns meses, só tinha restado a rezadeira para cuidar das pessoas usando suas artes. Era a única esperança que tínhamos. Ela, conhecendo o vô e toda a minha família desde décadas atrás, aceitou o chamado e veio imediatamente rezar e fazer suas artes para tentar curar o idoso.

Assim que ela passou pela porteira na carroça o lado de meu tio, eu a vi. Ela era uma venha estranha, usava roupas coloridas e esquisitas e também colares com símbolos obscuros. Com medo, fiquei o mais longe possível dela. Quando ela entrou no quarto do vô, meu pai veio até mim e disse “fique aqui no seu quarto e não saia por nada até eu voltar”. Depois de falar isso, ele e os outros entraram no quarto do vô e eu apenas fiquei ouvindo as suas vozes.

Eu era muito medrosa quando criança, mas também era bem curiosa. Por curiosidade e teimosia fui espiar os adultos da brecha da porta do quarto do vô. Chegando lá, eu ouvi muitos sussurros e vi pela brecha gestos sobre a cabeça dele. Não havia energia elétrica, só velas e lamparinas acesas pela casa. A cena era de dar medo: os meus tios e o pai, todos de preto, com as mãos postas em direção à cama do vô enquanto as mulheres vestidas de branco e usando véu olhavam para o céu de joelhos e com terço na mão.

As preces duraram alguns minutos. Eu observava aquilo tudo com muita estranheza e até um pouco de medo. Depois de um “amém” bem alto, percebi que a reza tinha se acabado, então imediatamente corri para o quarto e ouvi em seguida a rezadeira dando algumas orientações e se despedindo de todos. A medida que ela andava, meus tios e o pai a acompanhavam até a saída, onde um deles a iria levar pra casa na mesma carroça que a trouxera. Quando percebi que todos já estavam no alpendre, fui correndo pra janela do meu quarto espiar pela brecha. Foi quando ouvi ela e o pai conversando próximo ao espantalho:

- Trocaram as roupas dele?

- Sim. Nós arrumamos ele.

- Mesmo assim é perigoso. É inverno. Cuidado. Lembrem-se: não façam mal ao...

Nesse instante, a misteriosa velha olhou em direção à minha janela como se tivesse sentindo minha presença. De um susto eu caí pra trás e me afastei da janela. Tive medo. Aquela velha era muito estranha, tinha um olhar misterioso que passava medo e sabedoria. Eu, ainda sentada no canto do quarto, pensando sobre o que aquela mulher estava falando com o pai, ouvi o vô tossindo muito forte e decidi ir lá ver se ele precisava de alguma coisa. Iria assim desobedecer às ordens de meu pai. Infeliz erro meu!

O quarto do vô ficava bem ao lado do meu. Ainda quando todos estavam na varanda conversando e fumando, eu fui lá escondida, mesmo sabendo que era perigoso devido à doença dele. Infeliz teimosia de criança. A porta estava só encostada. Sem perder tempo, entrei. O vô estava todo coberto de lençóis e já dormia. “Acho que ele não precisa de nada”, pensei. Quando tirei o olhar do vô, percebi que espalhadas pelo quarto estavam algumas velas brancas, pretas e vermelhas. “Ave Maria, que velas são essas? Coisa estranha”, pensei já um pouco assustada.

Quando novamente voltei minha atenção para o vô, notei que tinha um inseto na ponta da quina de sua cama. Era um louva-deus, conhecido também como inseto esperança. Ele era grande e verde como as folhas novas de um cajueiro. “Esse inseto pode cortar ou morder o vô. É melhor matar”, pensei. Mesmo com um pouco de medo dele voar pra cima de mim, eu peguei a chinela, me aproximei e matei o bicho. Estranhamente, assim que esmaguei o inseto, o vô deu um grito como quem acabara de ter um pesadelo. “Nossa Senhora! Acordei o vô com o barulho da chinela”. Saí do quarto às pressas pro pai não ver que eu estava lá. Por sorte, deu tempo de chegar no meu quarto antes de todos entraram novamente no quarto do vô.

Assim que fechei a porta de meu quarto, notei surpresa que a janela estava aberta. “Valha! O vento hoje tá forte”. Quando fui fechá-la, ouvi assustada meu pai gritando do quarto do vô: “meu Deus, nunca se deve fazer isso! Ele sempre aparece pra pegar quem faz mal a essa criatura de Deus!”. Foi quando, olhando pra frente ainda fechando a janela, notei que o espantalho tinha sumido, então em pânico entendi do que meu pai estava falando e me veio à mente a voz da velha rezadeira perguntado: “trocaram as roupas dele?”. Ela não estava falando do vô. “Meu Deus, o que foi que eu fiz?”, pensei assombrada lembrando do inseto que eu tinha acabado de matar.

Com o sangue frio e a respiração ofegante, sem forças pra gritar pelos adultos, lembrei aterrorizada dos meus tios pondo as novas roupas pretas no espantalho: “pronto. Está arrumado.”. Então, meu netinho, foi naquela sombria noite de inverno, enquanto meus tios e meu pai tentavam desesperadamente arrombar a porta do meu quarto, que eu, de olhos arregalados e tremendo com o pavor, ouvi atrás de mim e cada vez mais alto o maldito som de palha seca estralando.

Temas: família e lembranças.

HENRIQUE SANTOS CE
Enviado por HENRIQUE SANTOS CE em 02/02/2018
Reeditado em 27/02/2018
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