A OITICICA DO SERTÃO - CLTS 02

Anelise era daquelas que adoravam ouvir histórias de assombração, de aparições do além, de sortilégios macabros, de maldições. Lembrava-se sempre dos tempos de criança, quando passava férias no sertão e maravilhava-se com os causos que sua avó, Dona Betina, contava. Os de terror eram os seus preferidos. Cada palavra proferida pela avó, dita como verdadeira, era bálsamo para ela. Porém, tudo não passava de fantasia. Anelise tinha plena convicção de que aquilo tudo eram contos de imaginação do povo local.

Na infância, a menina muito ansiosa, contava os dias para as férias escolares. Passar esse período no sertão era uma maravilha; Tomar banho no rio, correr a vontade, saborear a culinária local, subir nas árvores... (mas não todas as árvores...)

***

Conta-se histórias de um tal pé de oiticica amaldiçoado que ficava na estrada, do outro lado da cerca da casa de sua avó. Vários relatos acerca da planta maldita, com mais de 200 anos, assombravam a localidade.

Tudo começou quando uma bela jovem interiorana, chamada Maria das Dores, perdeu seu grande amor. Já estava tudo certo para o casamento; sua mãe tinha costurado um bonito vestido branco e preparado um gracioso arranjo de flores para a cabeça, matariam um carneiro e um porco para a festança, aluá a vontade para todos.

Acontece que o jovem noivo achou por bem que sua vida seria melhor lá pelas bandas de São Paulo, onde, talvez, conseguisse um emprego e saísse da miséria da vida rural. No dia do casório, a noiva recebeu apenas uma carta de adeus e boa sorte na vida. Desde então, a desolada rejeitada, vestida de noiva, sentava-se todos os dias recostada à oiticica e chorava por horas a fio. Parentes e amigos tentaram tirá-la daquela situação, mas seus esforços foram em vão. A mãe de Das Dores pediu que deixassem sua filha em paz. Talvez fosse melhor para ela pôr para fora todo o sofrimento, para mais tarde, erguer a cabeça e seguir. A mãe acreditava que aquilo fosse devaneios juvenis; "Ela é jovem. Logo, logo estará com um novo amor" Dizia. Foi o que fizeram então, e das Dores permaneceu junto à oiticica por dias, semanas, meses...

Mas suas lágrimas não cessavam. Ela chorava até adormecer, e de noitinha, os irmãos levavam-na desfalecida para casa. No outro dia, bem cedinho, ela voltava para a oiticica para o mesmo ritual de lástima. Das Dores emagreceu. Já não era mais a jovem vistosa de antes. Seu rosto, mais envelhecido, lembrava uma carranca.

Um dia, não mais suportando as dores da alma, subiu na árvore, laçou uma corda e enforcou-se. Foi encontrada pelos irmãos ao anoitecer, já com o rosto roxo e o corpo cadavérico endurecido. Coincidência ou não, os moradores locais acharam que a árvore adquiriu um aspecto fantasmagoricamente horripilante. Todos que por ali passavam sentiam calafrios e se benziam. Dizem os mais velhos que a oiticica, regada pelas lágrimas de sofrimento, absorveu as mazelas da jovem e fundiu-se com aquela alma atormentada, passando a puxar para si todos os sofrimentos do povoado.

A mãe de Das Dores, tomada pela culpa de ter subestimado a dor da filha, cortou os pulsos embaixo da árvore e lá permaneceu até seu sangue e seu último sopro de vida esvaírem-se.

Na época das tragédias, a igreja organizou novenas e vigílias para rezar pelas almas das pobres criaturas. Os moradores acendiam velas, deixavam terços nos galhos da árvore, jogavam água benta no tronco. Alguns achavam que seria uma boa ideia acabar com o mal arrancando-a com suas raízes. Foram impedidos, no entanto, pelos irmãos de Das Dores. Seria um desrespeito com o único "ser" que acolheu nos braços a irmã e a mãe feridas em seus últimos dias. E assim a árvore passou a ser protegida por várias gerações.

***

A história da oiticica de Das Dores perpetuou-se ano após ano e foi palco de inúmeros ritos e acontecimentos bizarros: uma jovem estuprada pelo padrasto atirou na própria cabeça ao lado da árvore, após contar o caso para a mãe e esta não acreditar. Outra, após engravidar e ser abandonada, encostou-se no tronco do mal e esfaqueou o próprio ventre, matando a si e ao fruto indesejado. Uma senhora de setenta anos, corroída de amargura e solidão, achou que estando ao lado de todas aquelas almas aterradoras abrandaria o seu coração embrutecido. Tomou veneno de rato, deitou-se ao lado da oiticica de Das Dores e esperou pacientemente a morte.

***

Anelise cresceu ouvindo essas histórias fascinada. E embora não acreditasse, toda vez que olhava para a tal árvore ficava com os pelos eriçados.

Sua avó sempre contava os mesmos causos a pedido da neta, e embora tentasse passar um tom de fantasia, sempre tremia um pouco a voz ao falar da moça sorumbática. Por vezes, Anelise surpreendeu-a olhando para a oiticica, com os olhos marejados, segurando a medalhinha da Virgem Maria com devoção, sibilando palavras inaudíveis.

A menina não entendia o porquê daquelas lendas mexerem tanto com a sua avó.

Depois que Dona Betina morreu ela passou a frequentar pouco o sertão. A vida conturbada na cidade não lhe dava tempo algum para reviver suas memórias. Lembrava-se sempre da meninice, das aventuras que vivera naquele lugar e, principalmente, das narrativas de horror que lá ouvira. Parecia que algo a chamava.

***

Muito tempo se passou. Estava prestes a formar-se em Letras e como trabalho de conclusão de curso resolveu reescrever as histórias do sertão de sua avó. Enrico, seu noivo, achava que ela não deveria mexer com essas coisas. Porém, não teve jeito. Destemida e decidida, arrumou as malas e partiu rumo àquelas antigas paragens para colher dados e conversar com alguns moradores.

A história de Das Dores continuava viva: "Deus me livre daquela árvore" "Passo é longe" "Cortar? Nem pensar. Dá azar" "Das Dores ainda está ali esperando a volta do amado"... Os relatos eram muitos. Anelise gravava e fazia anotações. Gostava do que ouvia, mas no fundo, não entendia como aquelas pessoas ainda eram tão supersticiosas em pleno século XXI. Ria por dentro das suas inocências.

Resolveu, então, fazer algo que sua avó nunca permitiu; ter contato com aquele tão temido símbolo de maldição. Aproximou-se, olhou longamente para a copa e, por fim, sentou-se recostada em seu tronco. "Eu não acredito em você, Das Dores. Vai ver tu nunca exististe mesmo. E se existiu deve ter sido uma moça muito tola e fraca para morrer por tão pouco. Se tiveres mesmo existido, não te temo. Tenho pena..."

Uma rajada de vento soprou com violência, levantando poeira e folhas secas. Anelise sentiu um arrepio e percebeu que seus pensamentos divagaram demais. Já era quase noite. Melhor seria retornar.

Ao adentrar a casa sentiu que a sua atmosfera interior estava mais fria do que o normal. Quis pensar que tudo era fruto de sua imaginação. Tomou um longo banho relaxante e, em seguida, deitou-se para tentar dormir. Naquela noite, muitas portas bateram. Percorreu todos os compartimentos para checar as janelas. Todas fechadas, nenhuma corrente de ar. Deitou-se novamente. Jurou que ouvira um choro abafado. Fechou os olhos com força. Nunca fora religiosa, no entanto, rezou o velho terço da sua avó até adormecer.

No dia seguinte fez uma vistoria por todos os cômodos, sem saber, na realidade, o que procurava. Por sorte (ou seja lá o quê) encontou num quartinho poeirento um antigo baú de madeira. Com muita dificuldade, conseguiu romper o cadeado que o mantinha fechado. Seus olhos brilharam ao pôr as mãos num velho diário. Passava com cuidado as páginas amareladas, enquanto debruçava-se na leitura. Era de sua avó. Nele ela relatava toda a história de Das Dores. Descobriu que ela fora sobrinha da tataravó de dona Betina.

Leu toda a história tal qual sua avó contara a vida inteira, com exceção do ritual que Das Dores praticou antes de sua morte e da esconjuração macabra por ela lançada; Todos aqueles que desdenhassem de seus infortúnios sob a sua folhagem fantasmagórica estariam condenados à morte, à loucura ou aos mais aterrorizantes sofrimentos.

O mal estava contido na árvore. Caso algo acontecesse a ela a desdita espalharia-se por toda a cidade. E enquanto a família a conservasse e a respeitasse estaria protegida.

Anelise seria a próxima guardiã da árvore que nunca envelhecia. Dona Betina, entretanto, jamais repassou esse legado à neta. "Quem sabe, com a descreça e coragem de minha menina, a praga seja quebrada, o mal extinto e a família, enfim, livre desse fardo". Essa era a última frase do diário.

Fechou-o com delicadeza, enquanto uma lágrima escorria.

***

À noite, após o dia exaustivo de pesquisa, Anelise recebeu uma ligação. A voz do outro lado da linha dizia que seu noivo fora assassinado durante uma tentativa de assalto. Largou o telefone trêmula. Correu insana até a árvore, gritando em desespero: "Então é isso, Das Dores? Essa é a sua vingança? O seu prazer é ver a infelicidade das outras mulheres assim como você foi infeliz? Sua maldita, maldita!!! Essa é a sua forma de provar que ainda existe? Então apareça, sua maldita! Apareça! Eu te odeio! Maldita!"

Nessa hora um vento frio sibilou baixinho. A lua minguante parecia esboçar um sorriso maligno. Ouviu-se um esgar sinistro de uma rasga-mortalha. As criaturas da caatinga agitaram-se. E de repente, silêncio.

***

Anelise foi encontrada morta no outro dia com o rosto retesado e os olhos arregalados, como se tivesse passado por momentos de grande terror. A policial do caso sorri e brinca com seu colega de profissão: "Nossa, parece até que viu fantasma! Haha". Nessa hora seu telefone toca e ela se afasta para atender. O colega se benze e em silêncio escreve nos autos que a vítima encontrava-se caída no chão, coberta de orvalho. Os moradores sabiam que eram lágrimas de Das Dores.

Temas: Família e lembranças

Aline Teodosio
Enviado por Aline Teodosio em 02/02/2018
Reeditado em 27/05/2018
Código do texto: T6243567
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.