A ÚLTIMA VIAGEM - CLTS 02

O homem permanecia em pé, parado como uma antiga estátua diante do quadro que repousava fragilmente na parede da galeria de sua vasta mansão, agora vazia, úmida e fria; seus olhos congelados miravam a pintura que agora era o único objeto que ostentava alguma cor, que destoava da tez pálida, doente e melancólica do homem que se prostrava lá, como uma gárgula, rodeada da riqueza material que já lhe fora tão cara: mesas de mogno, cristaleiras de pau-Brasil, estátuas de bronze, tudo agora coberto com o mais morto bege dos tecidos de algodão cru.

Enquanto estava lá, as únicas coisas que passavam por seus pensamentos levavam à ironia de que sempre, em sua vida, valorizara tais objetos, disponíveis apenas àqueles que desfrutavam da mais alta riqueza, e que a perda de apenas uma, a de menor valor econômico e maior valor emocional, o levara à beira da ruína: Berenice, morta por um criado que cultivou a inveja dentro de si. Agora, aquela pintura era a única coisa que restava de sua beleza.

Não suportaria mais passar sua vida naquele local, cada peça, cada umbral, cada mobilia, até as rochas que formavam sua morada o faziam lembrar Dela, tão brutalmente assassinada, por um qualquer que provavelmente jazia em uma forca na praça principal. Tinha que sair dali, encontrar outra morada, afastada, de preferência na tranquilidade dos montes, para então aguardar que a Senhora Morte unisse novamente os amantes.

Pegou sua pequena mala de viagem, as poucas coisas essenciais que queria daquele lugar, e saiu porta afora, abandonando a antiga mansão, outrora lar de grandes festas e bailes, agora praticamente um mausoléu, guardado permanentemente pela Berenice imortalizada na parede da galeria.

Subiu na carruagem que alugara, e durante a viagem pela cidade não disse uma só palavra, não sabia se sua tremedeira era consequência dos gélidos ventos do inverno ou da ansiedade que sentia por deixar sua vida para trás, junto com sua amada. O coche parou na entrada da estação de trem: um arco de tijolos de barro, uma bilheteria e alguns bancos de madeira. Despediu-se do cocheiro, pagou-o e seguiu para a estação, onde comprou o bilhete.

O homem não sabia se as poucas pessoas que aguardavam a locomotiva estavam melancólicas ou se isso seria fruto de sua própria consciência, que transformara tudo ao seu redor em uma massa de imagens cinzentas de um mundo que já havia sido alegre e abastado. A única coisa realmente palpável era a névoa que cobria o local, provavelmente fruto do frio que fazia na cidade àquela tarde.

Ouviu o som característico da locomotiva se aproximando, até ela preencher os trilhos da plataforma, a grande máquina de aço pintado em vermelho, que invadiu todo o lugar com a densa fumaça que provinha de suas fornalhas. Cessou seu movimento por completo como uma grande criatura que para sua caminhada para descansar. A fumaça se dissipou e revelou as portas abertas do veículo, convidando-o a adentra-las, antes que se fechassem e prosseguisse sua árdua caminhada. Entrou, bem como os outros que a aguardavam.

La dentro, o homem depositou sua pequena bagagem no local apropriado e se acomodou em seu assento, um banco de madeira escura estofada com um delicado mas gasto couro vermelho, típico dos vagões de primeira classe. Apropriadamente, para ele, poucas pessoas tomaram a mesma viajem, de forma que seria mais fácil se perder em seus pesarosos pensamentos, até seu destino.

A locomotiva, com um estridente grito reiniciou seus movimentos, o homem observava as paisagens que passavam pela janela como um livro que, se haviam sido escritos para o deleite e excitação do leitor, agora pareciam páginas do mais obscuro conto de Edgar Alan Poe. O mundo sem Berenice se resumia a um monte de areia cultivável, que sustentava a raça humana para sua simples existência, que agora não passava de nada além do simples acaso.

A tarde tornou-se noite, e as imagens que passavam pela janela da locomotiva foram se tornando, lentamente, apenas a escuridão. Aquela paisagem escura, iluminada apenas pela pouca luz da lua cheia apenas endossava o sentimento daquele que contemplava aquele cenário, que cada vez mais se tornava igual àquilo que se passava em sua alma, a negrura, as trevas. As luzes elétricas das lâmpadas se acenderam em seu vagão.

O balançar do trem, para a maioria das pessoas, era um incomodo que as fazia levantar de vez em quando para se livrar das dores da viagem, mas para o homem, era como um ninar carinhoso nos braços do sofrimento que sentia, e ainda com os olhos fixos na escuridão da noite que se consolidava fora de sua janela, ele encostou suavemente sua cabeça e adormeceu, um sono profundo que se revelara uma pequena e rara bênção, desde a morte de sua amada.

Seus sonhos, entretanto, não foram reconfortantes. Estava em sua antiga mansão, em um baile de máscaras, comumente realizado durante a época dos carnavais venezianos; não podia reconhecer os rostos, mas sabia que ali estavam amigos, companheiros de negócios e um ou outro familiar. Caminhou por entre as diversas máscaras, umas com um grande sorriso malicioso como quem procura diversão carnal das mais atrozes, outras chorando lágrimas de falsidade, umas douradas como o sol, outras vermelhas, brancas e azuis.

Contudo, viu uma que reconheceu imediatamente, Berenice, com as vestes brancas de pureza com as quais fora sepultada, e uma máscara negra, cuja tristeza que representava só poderia ser comparada à sua própria. Correu na direção de sua amada com todo o desespero que um ser humano poderia ter, ansiava por toca-la mais uma vez, sentir sua pele sedosa, ao menos ter a oportunidade de dizer o quanto a amava ou, ao menos, um adeus.

Quando finalmente a alcançou, ela se virou para ele, o homem repousou seus dedos sobre a máscara para gentilmente retirá-la de seu rosto para contempla-lo uma ultima vez, sob prantos de tristeza. Porém, antes que pudesse revelar a beleza por trás da máscara, Berenice foi lentamente ao chão, raspando suas delicadas mãos na roupa do homem que assistia de pé, e quando ela caiu, pode ver uma faca em suas costas, o sangue quente umedecendo o belo vestido branco que usava.

Havia um homem atrás dela, vestido com um terno preto e uma gravata borboleta vermelha; diferente das outras, a máscara vermelha daquele homem estampava uma grande gargalhada, e possuía chifres e dentes dignos das pinturas mais pitorescas do inferno. Havia risos, estridentes e eufóricos, de todos os convidados, que agora olhavam e apontavam para o coitado, que caiu de joelhos.

Tremendo, tentou levantar, mas era como se suas pernas fossem feitas do mesmo aço da locomotiva, e permaneceu lá, de joelhos sob os pés do homem que o impedira de se despedir de Berenice, que havia cravado uma faca no fantasma da mulher que amara mais do que tudo, e mesmo que fosse apenas um sonho, seu desejo era morrer. De súbito, acordou.

O homem abriu os olhos, desesperado pelo sonho, mas de certa forma aliviado, tentando convencer a si próprio de que aquele não era o fantasma de sua esposa, e que nunca houve uma oportunidade para se despedir, de contemplar seu rosto. Assim como sua morada, será que Berenice poderia ficar para trás?

Percebeu, então, que as luzes do vagão estavam apagadas, apesar da escuridão da noite. Provavelmente desligaram as lâmpadas para o conforto dos passageiros. Mas então, que passageiros?

A escuridão era preenchida pela suave luz da lua cheia, que revelava um vagão total e completamente vazio, onde antes haviam alguns poucos passageiros. Pensou, então que o trem havia feito alguma parada enquanto mergulhava no pesadelo de sua mente perturbada. Então, um arrepio tocou sua nuca, como se o próprio diabo o tivesse beijado: olhando para a extremidade do vagão viu um quadro, onde antes não havia nada.

Caminhou com dificuldade devido ao balanço da locomotiva para sanar sua perturbadora curiosidade, e quando se aproximou, lá estava ela, Berenice, com sua tez dourada, seus cabelos cacheados, cuja luz branca da lua lhe conferia ainda mais uma beleza fúnebre. Com espanto, ficou contemplando a pintura, tentando imaginar o que a teria trazido para lá. Ouviu, então, uma breve, mas sinistra gargalhada.

O desespero tomou conta de si quando virou para a outra extremidade do vagão da locomotiva, e lá se prostrava, em pé como uma torre, o homem de terno preto e gravata vermelha que o assombrara a pouco no pesadelo. Ele lentamente retirou a máscara do rosto, mas sua fronte estava coberta pela escuridão da noite.

Correu em direção à misteriosa figura para saber quem era o sinistro homem:

-Quem és, por que perturbais meu luto com lembranças cruéis e fantasias horrendas?

Porém, quando chegou próximo o bastante para ver seu rosto iluminado pela penumbra da lua, o reconheceu. Aquela fronte, aqueles olhos, aquele sorriso malicioso, aquelas mãos malditas, era ele, o criado que matara sua amada esposa!

Ficou parado por um instante, e então explodiu em seu ódio:

-Deverias estar morto e enforcado, maldito, me privaste de minha amada, e por consequência, de minha vida!

A figura macabra, então, tirou de dentro de suas roupas uma corda, abaixou sua gola e revelou que ela estava enrolada em seu pescoço.

-Teu desejo já é uma realidade, não mais desfruto de um corpo com vida, e aqui estou, concreto apenas por ódio e amargura.

O homem caiu de joelhos, tal como em seu pesadelo, com as mãos no rosto foi aos prantos, e aos prantos clamou ao sinistro:

-Mataste minha mulher, destruíste minha vida, e agora vens me assombrar. Não estás satisfeito?

A maliciosa figura caminhou lentamente em direção ao homem de joelhos e falou, suavemente em seus ouvidos, com um tom que, apesar de baixo, soava como a própria morte:

-Não.

Ainda aos prantos, disse o coitado de joelhos:

-Então porque ainda queres me atormentar?

Ainda naquele tom macabro, falou o espírito:

-Não recordais de invernos passados, já que os passastes frente às chamas de tua lareira. Nós, por outro lado, meros criados em detrimento à tua realeza, voltávamos para nossas humildes moradas, onde, com o pouco que nos pagava, escolhíamos entre carvão para nos aquecer ou comida para nos alimentar. Foi naquela noite, profanei teus celestiais sapatos com cera velha, e me recusastes o pagamento por trabalho mal feito.

A face da cruel criatura se contorceu em uma raiva infinita:

-Meu filho, ainda um jovem sem a capacidade de andar, morreu congelado naquele inverno. Minha amada esposa, que a amava tanto quanto tu amavas a tua, incapaz de lidar com a morte de nosso filho, tirou a própria vida. E eu, eu mesmo que estou aqui na tua frente, cuja dor supera qualquer outra, busquei a vingança, ceifando de ti tua companheira, pagando na mesma moeda o que me pagaste. E agora, para completar nossa jornada, ambos pecadores nos dirigimos ao mesmo lugar.

O homem, ouvindo essas cruéis palavras se levantou desesperadamente e correu para a porta da locomotiva, que estava trancada. E antes que pudesse gritar, a figura sinistra completou, com uma gargalhada:

-Sem paz, sem os montes, sem Berenice, não mais a vereis. Senta-te, pois essa maravilhosa locomotiva nos leva ao nosso destino comum, onde não só belzebu reina, mas a dor e o sofrimento. Senta-te, pois esta maravilhosa locomotiva nos leva às terras infernais.

O grito do homem que, por Deus, congelaria até o mais quente dos corações, só não foi ouvido no mundo dos vivos porque, com uma alegria fúnebre, a locomotiva gritou de felicidade.

TEMAS: ferrovias e família.