Sobre-humano

       Naquela noite aconteceu algo espantoso. A casa em que eu, minha esposa e nossa filha estávamos era do vereador Camargo, que me alugou temporariamente. Nossa casa estava em reforma e não havia outra casa para alugar senão a de Camargo. Dias antes de nos mudarmos, algumas pessoas vieram nos falar da casa. Diziam ser uma casa em que aconteciam coisas estranhas e que o próprio Camargo — não podia ser outra pessoa — desmentia os boatos. Mas não dei atenção.

Costumávamos dormir cedo, Isabel, nossa filha, acostumou-se com nossa rotina de dormir no mesmo horário, por volta de onze horas. Uma hora depois não se ouvia mais nada, apenas sons noturnos como gatos no telhado e o barulho de uma coruja chamada pelos nativos de nossa cidade de rasga mortalha que passava sobre o telhado.

— Pai! Mãe!

Gritou Isabel, corri até o quarto e vi ela aos berros soluçando.

— Que houve querida? Diga meu amorzinho.

— Isabel, minha filha, venha para a mamãe.

Tinha comigo uma sensação ruim, lembrei imediatamente dos boatos, mas logo ignorei. Levamos nossa filha para o nosso quarto e estando ela bastante assustada a acalmamos. Quando o sol raiou fomos à mesa tomar café da manhã, tentei saber o motivo do choro dela.

— Amorzinho, tem algo para contar-nos?

— Não, pai.

— Tem certeza? Pode falar.

— Confie em nós filha, estamos aqui para lhe proteger.

Ela olhou-nos com aqueles olhinhos pequenos e comendo com a boquinha fechada e suja de leite que as mãozinhas levavam até sua boquinha e disse em seguida:

— Tinha uma menina igual a mim, ela disse que ia tomar o papai e a mamãe de mim.

Após falar encheu os olhinhos de lágrimas. Nossa bebê com apenas quatro aninhos já era muito esperta. Acalmei-a e sua mãe beijou e acariciou-a.

— Foi só um sonho bebê, não há menina nenhuma que irá tomar eu e sua mãe de você. Pronta para irmos para a escola? Vamos?

— Sim!

Peguei as chaves do carro e fomos. Após deixá-la na escola já quando estava de saída para o trabalho um velho pôs-se na frente do meu carro, desci e pedi que saísse, mas ele respondeu com uma negação.

— Rapaz, saia daquela casa! — O que quer dizer com isso, senhor?

— Você só pode ser ingênuo. Há muito tempo, quando eu ainda era um garoto aconteceu coisas misteriosas naquela casa.

— Senhor, mais isso foi há cem anos atrás…

— Está zombando de mim?

— Não!

— Tolo, irá se arrepender caso não saia daquela casa. Vi sua filha, tenha cuidado, pois ela é muito pequena, é uma presa.

O velho saiu mancando de uma das pernas e gritei: "Ei, volte aqui.", mas ele não voltou e eu preocupei-me. Fui ao trabalho, porém, não consegui concentrar-me. Meu chefe perguntou-me e disse que se eu não estivesse sentindo-me bem poderia voltar para casa. Voltei.

Minha esposa perguntou o motivo de eu voltar tão cedo, não expliquei.

— Nada, não foi nada Felisa.

— Como não? Você nunca aparece assim no horário de trabalho, mas se houver motivo sim.

— Estou cansado. É isso.

Sentei-me no sofá e lá fiquei durante toda manhã pensando, mas não consegui entender. Ignorei novamente. Por que uma casa assombrada que afetou uma família há muitas décadas voltaria a assombrar novamente e logo a minha família?

— Mô, você não vai pegar a Isa?

— Irei querida. Nossa, já passou da hora, já vou.

Chegando na escola vi o mesmo velho sentado no banco da praça e olhando-me fixamente.

— Vamos Isa. Como foi seu dia na escola?

— Foi bom pai.

O velho continuava olhando-me. Segui o caminho em direção a nossa casa. Durante o percurso minha filha não apresentava nenhum sinal de estranheza e isso foi algo bom naquele momento, ainda que preocupado com a situação: boatos, aviso do velho, o choro devido ao pesadelo que ela nos contou.

Ela subiu ao quarto, eu fiquei assistindo televisão e Felisa preparando o almoço, ouvimos umas batidas, como se algo estivesse querendo chamar atenção. Pensei que fosse Isabel, fui até seu quarto e o barulho estava mais intenso, quando toquei o trinco as batidas cessaram, abri a porta rapidamente e vi-a sentada brincando de boneca. Chamei-a para assistirmos e ela veio comigo.

— O almoço está pronto — gritou Felisa.

— Querida, depois assistiremos porque agora vamos comer.

A refeição tinha como destaque a cabidela, já esperava a reação de nossa filha. Ela sempre dizia: "Eca!". Fiquei pasmo e Felisa ainda mais. Isabel pediu o caldo da cabidela com o coração, comeu com tanta vontade que soltou um arroto no fim.

Era costume após alguns minutos da refeição Isabel dormir. Notamos grande esperteza nela, uma surpresa, pois ela sempre queria deitar-se, dessa vez ela foi brincar de boneca, deixemos. Optei por não ir ao trabalho, liguei para meu chefe e disse que nos veríamos no dia seguinte e ele concordou prontamente. Felisa estava lavando as louças como de costume. De repente novamente aquele barulho, batidas vindo do mesmo lugar, dessa vez Isabel estava conosco, fui ao encontro do barulho e Isabel correu colocando-se em minha frente.

— Pai, quero dormir no seu quarto.

— Não filha, agora não.

— Agora sim! — Gritou muito alto, segurou minha mão e puxou-me com uma força notável.

— Isa, não grite com seu pai.

As batidas não pararam e Felisa já curiosa desde a primeira vez foi até o quarto. Deixei Isabel na cama e fui atrás de Felisa. Acompanhei ela e demos passos delicados, imperceptíveis ao ouvido, em direção ao barulho que escapava daquele cômodo. Girei o trinco suavemente e abri a porta. Não vimos nada. Felisa disse que as batidas vinham da cama. Continuamos caminhando, abaixei-me para olhar debaixo da cama e paralisei quando vi nossa filha amarrada e com a boca selada.

Leandro Ferreira Braga
Enviado por Leandro Ferreira Braga em 19/02/2018
Reeditado em 30/08/2023
Código do texto: T6257995
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.