O VOO.

Ateu!

É o que eu sempre disse ser, pelo menos desde quando deixei as barras da saia da minha mãe.

Em minha cabeça não entrava aquela máxima de que, tudo, mas tudo mesmo, só acontece com a vontade de Deus.

E dizia a quem conveniente fosse, que, “Deus não pode querer um estupro”, por exemplo!

“Nem um assassinato de um pai de família.” Essas coisas.

Viagem marcada para os Estados Unidos, e o medo de avião, já dias antes dava seus sinais.

Dia da viagem... embarque... decolagem... tudo dentro dos conformes, não fosse o medo, porém, quando o voo se estabilizou e entrou em ‘velocidade de cruzeiro’, as coisas se acalmaram . E assim aconteceu.

Num determinado momento, todos sentimos um ‘baque’ no avião, com um barulho surdo, mas intenso.

Medo geral, claro, mas todos vindo a se acalmar com o aviso dos comissários de que “estava tudo sob controle”. Calmos entre aspas, mas o voo prosseguiu dentro da normalidade, até... outro estrondo! Gritaria geral, e, mais uma vez o aviso dos comissários para que nos acalmássemos, e blá, blá, blá.

Porém, dessa vez parecia que o avião não emitia mais o som característico dos motores, fosse isso ou não, era o que meu cérebro dizia, tentando em vão lutar contra essa angústia.

Quem está acostumado a viagens de avião, sabe da sensação de elevador que se sente quando o mesmo está perdendo altitude, sendo para procurar uma zona mais calma, ou mesmo aterrissar, e era isso que eu estava sentindo.

E nada de barulho de motor!

Eu já suava em bicas! Muito medo, e percebia que todos que eu via também estavam apavorados.

De repente aquele som característico antes de um aviso do comandante... Atenção geral: “Senhores passageiros... pedimos a todos que mantenham a calma para este aviso. Tivemos a poucos minutos, a perda dos dois motores, e estamos fazendo todo o possível para religá-los, por isso pedimos para que afivelem seus cintos de segurança; informo ainda que esse avião – claro que ele não se utilizou de palavras técnicas, indo direto ao ponto – tem uma razão de planeio de ‘dezoito para um’, ou seja; pela nossa altitude, podemos permanecer voando por mais cento e oitenta quilômetros, tempo suficiente para encontrarmos um local para pousarmos, portanto, sigam as instruções dos comissários, e mantenham a calma”. Calma? Onde achar calma numa situação dessas? Gritaria geral, choro, um verdadeiro inferno se formou no avião, enquanto os comissários tentavam controlar a situação dos passageiros.

Mais um tempo se passou, quando fomos informados para ficarmos em ‘posição de impacto’, coisa que entre gritos e choro, todos se puseram a fazer, então percebi os comissários indo para seus assentos e, eles também se preparando para um impacto.

Noite.

Nada se via lá fora, e, pelo tempo de voo, e o mapa do avião visto pouco antes de perdermos os motores, mostravam que estávamos sobre densa floresta. Pavor!

Nesse ponto tenho que dizer que assim que começaram os problemas, me vi rezando fervorosamente, e, agora, nesse instante do voo, pude perceber que eu estava muito calmo. Estranhamente calmo.

Outro detalhe, é que percebi nesse tempo que as pessoas haviam parado de gritar, e, parecia que todos dormiam, embora tivessem na posição de impacto, o fato é que não se ouvia um ruído sequer das pessoas.

De repente, vi que saiu da porta de um banheiro a frente, uma pessoa... um homem... vestido todo de branco, calça, camisa e um paletó.

Tudo branco.

Aparentando entre cinquenta e sessenta anos, um semblante bem calmo, veio se aproximando pelo corredor, olhando as pessoas, e, chegando na altura de minha poltrona, olhou-me e deu uma piscadela, sorrindo mesmo.

E o avião nessa altura mostrava aquela sensação de estar próximo ao pouso, balançando, tudo indicava que estávamos prestes a tocar o solo... ou sei lá o que. E eu calmo, muito calmo.

Tum!

Fechei os olhos e esperei sentir o impacto, a dor, sei lá, alguma coisa terrível que viesse acontecer, como se numa queda de avião, pudesse ter tempo de pensar em tudo isso.

Logo percebi que o avião corria suavemente por uma pista ou algo assim, como se tivéssemos pousado!

E assim foi, perdendo velocidade... parando... parando... paramos! Inteiros!

Nisso vi que todos no avião também perceberam o pouso perfeito, e foi uma alegria geral, coisa que jamais imaginei poder ver, pois estávamos todos vivos!

Os comissários se levantaram e pediram que permanecêssemos em nossas poltronas aguardando instruções, e que tudo estava bem, claro que obedecemos... aliviados.

O comandante aparece, pega o fone e começa explicar o ocorrido: Em dado momento, quando já não havia mais nada a fazer, eles da cabine viram duas grandes fogueiras a frente, e partindo dessas fogueiras, uma linha de tochas acesas, como que sinalizando o centro de uma pista. Provavelmente uma auto estrada, isso bem a frente do avião, que ainda estava em altitude que permitia pousar nessa... pista? E assim foi feito.

O comandante explica ainda que não tinham mais comunicação com qualquer torre, e, imaginaram uma única coisa possível: A tripulação não tinha informação alguma, mas algum centro de controle tinha a posição do avião. Mas qual a chance de aparecer uma pista na frente de um avião que está caindo? Por certo, o pessoal de controle seja lá onde tivessem, arriscaram tudo, preparando uma pista que tivesse o mais próximo possível da área onde se encontrava o avião, para, caso a tripulação visse a pista, tentassem um pouso. Tudo muito improvável, praticamente impossível, mas funcionou. Também não havia outra explicação, não até o momento, pelo menos.

Estava tudo escuro lá fora, mas dava pra ver que estávamos numa floresta.

Em situações como essa, de pouso de emergência, é natural que assim que o avião pare, a tripulação mande os passageiros evacuarem a aeronave, porém, dada a situação do avião não apresentar nenhum sinal de incêndio, por exemplo, e estando no meio de uma floresta sabendo lá onde, pediram que permanecêssemos dentro do avião, pelo menos até que o dia clareasse.

E assim foi feito.

Apenas algumas pessoas desceram do avião a noite, para esperar com lanternas, quem viesse nos socorrer, pois, claro que quem preparou essa pista pra pousarmos, logo estaria ali.

Pensamos em alguns carros, enfim, algumas pessoas viriam nos receber.

Foram escolhidas algumas pessoas entre os passageiros; um bombeiro, um policial e mais dois voluntários, entre os quais eu me propus a ir junto. Claro, o comandante também desceu.

Tínhamos duas lanternas, e esperamos um bom tempo, acho que uns dez minutos, e nada de aparecer alguém.

Muito estranho, afinal, aquela pista não iria aparecer ali, toda preparada para nosso pouso, sem que alguém tivesse lá.

Era questão de tempo para o pessoal do resgate chegar.

Nada.

Nem as duas grandes fogueiras que a tripulação avistara sinalizando a pista, tampouco as tochas no meio da pista nós víamos.

Começamos a caminhar no sentido em que o avião havia pousado, quando alguém disse espantado: “Nós aterrissamos nesse buraco?”

Só então, o comandante se deu conta de que, ao pousar, o avião correu por uma pista perfeita, aparentemente um asfalto, como se tivessem preparado uma rodovia, mas... estávamos em uma estrada – se é que pode chamar aquilo de estrada – de terra, totalmente cheia de buracos e lama! Como isso era possível?

Tomamos a decisão de voltar imediatamente para o avião, e esperar o dia amanhecer para estudarmos a situação.

A angústia era geral, e, mal o dia começou a clarear, descemos ansiosos para ver onde estávamos.

Os fatos dali em diante seguiram em ritmo vertiginoso e pra mim alucinante!

Havíamos pousado no meio do nada, ou melhor, do inferno!

Rochas, árvores gigantes, um riacho no caminho ‘percorrido pelo avião’, uma grande cratera... Cai de joelhos e me lembrei do homem que piscou pra mim dentro do avião.

Ateu!

Não me lembro quanto tempo fiquei ali, meio de joelhos, meio caído, chorando... tentei me recompor e procurar as outras pessoas pra contar... não havia ninguém ao redor!

Nisso, vi a minha frente a uns vinte metros uma pessoa... um homem... de branco!

Ainda de joelho, só tive força pra estender minha mão em sua direção, como que implorando algo. Ele virou-se, e ao me olhar... gelei!

Ele não tinha mais aquele olhar sereno que eu vi dentro do avião, ao contrário, seus olhos pareciam vermelhos e me olhava com escárnio, um sorriso de quem debocha de você!

Senti que meu corpo ardia, de repente vi que tudo ao redor estava se incendiando. Árvores, rochas, tudo ali parecia um inferno.

Olhei pra trás, na direção do avião e percebi a verdade... a terrível verdade!

Um pedaço que seria a asa do avião, rasgada e em chamas a poucos metros; pedaços de corpos ensanguentados estendidos ao longo do caminho; o que parecia ser a fuselagem principal do avião também estava ardendo em chamas, enquanto gritos aterrorizantes eram ouvidos.

Olhei pra mim, percebi que um braço fora arrancado, o joelho esmagado, o corpo todo ensanguentado… eu... estava morrendo.

Fechei os olhos, esperei alguns segundos para abri-los, e ver se tudo não havia passado de um pesadelo. Infelizmente era a mais cruel realidade.

A minha frente, aquele ser, agora não mais na figura de um homem, mas sim de um espectro apavorante, e seus olhos faiscantes, ria em gargalhadas zombando de mim...

Zé Roberto
Enviado por Zé Roberto em 20/02/2018
Reeditado em 21/02/2018
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