A mosca sobre o nariz

Hoje é um dia especial. É a primeira vez que viajo em um trem na vida. Já tenho 43 anos e é a minha primeira vez. Sempre tive fascinação por trens. Ficava imaginando quando criança aquela coisa comprida que parecia nunca parar de correr, nada parecia mais forte do que um trem e isso encantava-me. A paixão pelos trens passou a atravessar a minha vida. Músicas que envolvessem trens pareciam sempre mais legais de ouvir...Trem Azul, The last Train to Clashville, Trenzinho Caipira e outros. Livros cujo enredo se passassem em trens já me chamavam a atenção de imediato, Assassinato no Expresso do Oriente, A garota no trem. E os filmes? Ah, os filmes!! Expresso para o amanhã, Train to Bulsan e generalizava até para aqueles que nada tinham a ver com trens, mas que levavam o nome no título como O expresso da meia-noite. E tudo isso sem falar na coleção de miniaturas, gravuras, fotos e mil bugigangas com motivos que tinham trens como referência. Mas tudo isso já tinha ficado para trás, eram coisas de uma infância e pedaços de uma adolescência, substituídos pelas coisas do mundo adulto que sempre impunham a realidade como premissa básica.

E aqui estou eu subindo nele pela primeira vez, com as emoções grudando na pele e preparando-me para uma viagem de 6 horas. Será que os astronautas que foram a Lua sentiram isso que estou sentindo?

Entro e procuro o meu lugar (comprei assento na janela, é claro). Achei ele sóbrio e funcional, se é que posso descreve-lo dessa maneira. Sento-me e começo apreciar a viagem. Ao meu lado está sentado um homem vestindo camisa de time de futebol. Ele dorme e uma mosca tenta pousar em seu nariz. Árvores, pontes e cidades se sucedem.

Lembro que preciso falar com Berenice (que coisa...ela me fascina essa é que a verdade...paixão antiga eu diria). Procuro o celular para ligar para ela. É urgente que eu fale com ela. Começo uma ligação e a maldita bateria acaba. E para piorar eu não trouxe um carregador (que burro que eu sou). Procuro ajuda com o passageiro sentado atrás de mim. Pergunto-lhe se não pode emprestar-me um carregador. Nada. Nem me olhou de volta. Fico meio sem graça. Não desisto e decido pedir para um outro passageiro. Uso meu melhor tom de voz e ele também sequer vira para olhar-me. Tento com um terceiro passageiro e fico com a impressão de ter falado com as paredes do trem. Já achando tudo estranho peço para um quarto passageiro e este pareceu olhar através de mim. Que merda é essa? Todo mundo resolveu ficar mudo ou é uma epidemia de esquisitice? Tem algo de errado aqui. Alguma coisa aconteceu e eu não sei o que foi. Decido ir para outro vagão. Puxo conversa com um sujeito gordo que comia batatas fritas e ... nada. O que está acontecendo na porra desse trem? Estou em pé no meio do corredor e quase todas as poltronas estão ocupadas, pessoas leem revistas, outros dormem, crianças brincam com jogos eletrônicos, alguns conversam. Tudo normal como deve ser uma viagem tranquila de trem. Só que ninguém parece me ver.

Uma sensação estranha percorre meu corpo, como se algo gelado e gosmento escorresse pelas minhas costas e eu não pudesse alcançar. Ninguém me vê, ninguém me escuta ... um trem com dezenas de pessoas e ninguém sabe de mim. Mil perguntas surgem em minha cabeça. Belisco-me com força na esperança de estar apenas dormindo. Vou de um vagão a outro. Esbarro de propósito nas pessoas, peço as horas para outro, experimento tomar bruscamente a revista de um, derrubo o doce de chocolate de uma criança gordinha. Nada acontece. Simplesmente ninguém esboça a menor reação, ninguém me vê. Em um ato de desespero eu fico em pé bem no meio do corredor e grito a plenos pulmões, xingo, chamo palavrões, rogo pragas e ... ninguém sequer altera uma única ruga do rosto para prestar atenção em mim. Tudo segue seu curso de normalidade. Menos eu.

Procuro meu lugar de volta e sento-me sem entender o que aconteceu. Procuro palavras para explicar o que sinto e não consigo. Minha mente não consegue processar o que ocorreu. O passageiro ao meu lado ainda dorme e percebo que a mesma mosca ainda teima em pousar no nariz dele. Olho para a paisagem que corre fora do trem. Acho que nunca chegarei a lugar nenhum. Acho que seguirei neste trem. E continuarei seguindo.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 25/02/2018
Reeditado em 08/09/2018
Código do texto: T6263516
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