Ronda noturna

Todos os dias, melhor falando, todas as noites é a mesma coisa. Calçar o coturno, vestir o colete com a identificação da empresa de segurança, colocar um cassetete (armas de fogo são proibidas, assim como celulares) e um aparelho de radiofonia na cintura, um cordão com apito e uma motocicleta para circular pelo condomínio.

Hoje é mais uma noite de trabalho. Não gosto muito do que faço, mas é o que me resta ...um dia eu encontro um emprego melhor. Círculo por um condomínio fechado de classe média que fica em uma parte periférica da cidade. Existem casas bonitas aqui, todas construídas em três estilos arquitetônicos (a empresa construtora que vendeu as casas impôs essa condição). Penso que jamais terei dinheiro para comprar uma casa aqui.

Já passam das duas horas da madrugada e sou surpreendido por uma chuva forte. Estaciono a moto próximo de um quiosque para passar a chuva. O quiosque fica bem no centro de uma quadra bem arborizada. A chuva é forte e não dá trégua. Fico olhando a chuva cair quando percebo algo como um vulto na janela de uma casa amarela que fica imediatamente em frente ao quiosque. Fico surpreso com isso pois sei que essa casa está vazia já tem mais de um ano. Fico atento e aprumo o olhar, sinto que a chuva forte atrapalha, mas não vejo mais nada. Decido que a chuva atrapalhou e que de fato não vi coisa alguma. A chuva finalmente passou e sigo minha ronda.

Quando termino meu turno de trabalho pergunto para meu supervisor qual é a situação da casa amarela e recebo como resposta aquilo que já sabia: a casa está vazia e seus donos foram embora colocando-a para vender ou alugar.

Uma outra noite de trabalho. É uma noite fria mais sem chuva. E isso já é muito bom. Por algum motivo sinto-me inquieto, não queria ter vindo hoje. Não era meu dia de trabalho, mas um colega pediu que tirasse o seu turno uma vez que se encontrava doente. Tudo bem. É um trabalho solitário, somos só eu e um outro colega em ronda pelo condomínio, ele fica com o lado sul e eu com o lado norte, eventualmente comunicamo-nos pelo rádio.

Rodo em baixa velocidade pelas ruas bem asfaltadas do condomínio. Os moradores recolhem-se cedo, as vezes um ou outro grupo de adolescentes fica perambulando pelas ruas rindo e falando alto, mas raramente alguém é visto depois da meia-noite.

Várias vezes passo em frente à casa amarela e por algum motivo uma sensação esquisita assalta meu corpo. Acelero a motocicleta de um jeito que não é o usual ... quero passar o mais rápido possível do perímetro da casa. Arrisco olhar rapidamente para trás e vejo um vulto ... um vulto de mulher. Rapidamente a velocidade da moto me afasta do local. Fico com a nítida impressão de ter visto uma mulher usando um vestido branco e longo. O que faz uma mulher tarde da noite andando pelo condomínio? Uma sensação de estranheza invade-me. Devo retornar e ir checar a situação? Penso em acionar meu parceiro pelo rádio, mas o que eu ia falar? Que estou com medo de ir abordar uma moradora porque acho que ela é um fantasma? Decido não fazer nada, mas sei também que vou ter que passar em frente à casa amarela nas próximas voltas ... e pensar isso me deixa com uma tensão que não sei definir. Passo várias vezes em frente da casa amarela e não vejo mais nada. Um alivio gruda em minha pele e o turno de trabalho termina sem nada mais de estranho acontecer.

Passei alguns dias tirando serviço no lado sul do condomínio. Foram dias bem tranquilos sem nenhuma sensação de medo querendo me pegar. Mas hoje eu estou no lado norte e já sinto um clima de ansiedade no ar. Já passa de meia-noite e está tudo tranquilo. Várias vezes passei em frente à casa amarela e nada demais aconteceu. Ufa, sinto-me mais tranquilo. Estou a algumas dezenas de metros da casa amarela quando diviso uma mulher parada em frente a esta. É a mesma mulher. Meu coração pareceu estagnar e ficar mais lento. Reduzo a velocidade da motocicleta e vou parando lentamente. O que faço agora? Sigo em frente? Decido pegar o rádio e chamar meu parceiro, isso parece dar-me um alívio momentâneo.

- P1 chamando, onde você está P2?

- P2 na escuta. Estou passando a quadra do lado sul. Tudo bem por aí?

- P2 estou com uma situação estranha aqui ... tem uma mulher parada bem em frente aquela casa que está vazia, lembra?

- Sei qual é a casa. Mas qual é a situação, P1?

- Não sei dizer, só sei que ela está parada ... ela está me olhando agora. O que faço?

- P1, se ela não está em atitude suspeita faça uma abordagem. Deve ser uma moradora.

- P2, solicito seu apoio ... tem algo estranho nela...

Rapidamente o guarda noturno P2 chega ao local onde encontrava-se seu colega. Depara-se com este caído, desmaiado, ao lado da motocicleta. Em pouco tempo este recobra os sentidos.

- Não sei o que houve. Percebi que havia algo estranho com a mulher e lhe chamei. Quando dei por mim ela estava bem na minha frente. Como pode, meu Deus? Em um segundo ela estava na frente da casa e no outro estava a dois palmos de mim.

- Mas ela fez algo? O que ela fez, homem?

- Foi tudo muito rápido, ela abriu a boca para falar algo e me tocou. Ai não vi mais nada ...

- Cadê essa mulher que você viu? Para onde ela foi?

- Não sei, cara! Ela sumiu. Eu ...eu acho que vi um fantasma ...

Fiquei três dias com febre após o acontecimento que relatei. Pedi demissão e nunca mais retornei aquele condomínio. Confesso que fiquei muito assustado e durante algum tempo tentei entender o que tinha acontecido. Como aquela mulher em um segundo estava há oitenta metros de mim e no outro estava me tocando? Tenho certeza que nunca saberei dizer o que de fato houve naquela noite de ronda noturna. Mesmo passado todo esse tempo de vez em quando ainda sinto um friozinho de medo ...

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 16/03/2018
Reeditado em 08/04/2018
Código do texto: T6281101
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