São os Loucos Anos 20
Parte IV

Nina doi despertada pelas primeiras luzes do dia que entravam pelas frestas da janela e iluminavam a casa que ainda respirava à festa. Sem planos para aquele dia e sabendo que o sono já a havia deixado, decidiu levantar-se.

Fez a toalete e vestiu-se com simplicidade. Desceu pela enorme escadaria de degraus brancos e chegou ao salão principal onde um exército de criados tratavam de limpar tudo.

Mordiscou uma torta de morango que repousava sobre a mesa com a tranquilidade serena daqueles que tem o mundo nas mãos e seguiu para a biblioteca lambendo o creme doce e apreciando o aroma de baunilha nos dedos.

Ao chegar a biblioteca descobriu que naquela manhã seu refúgio estava comprometido. As dezenas de caixas de presentes trazidas pelos convidados na noite anterior agora estavam armazenadas ali, ocupando todo o espaço.

Com grande dificuldade resgatou seu Ulisses e o levou ao jardim onde sentou-se e tentou iniciar a leitura, mas a presença daquele exército que se movia sem parar a deixou incomodada.

Levantou-se e caminhou pela trilha de cascalho branco até o portão de ferro ornamentado com as iniciais do pai. Observou a rua de paralelepípedos deserta e emoldurada pelos casarões onde grande parte da fortuna do país residia.
 
Sem pensar e sem saber ao certo para onde ia, saiu para a calçada de pedras seguindo o caminho que há muito não percorria até que, algumas dezenas de metros depois, chegou àquele lugar ladeado por um pequeno muro de pedras encimado por altas grandes de ferro fundido e adornadas com arabescos infinitos, o Jardim Ângela.

Um parque público destinado à recreação dos filhos das famílias ricas do bairro, onde as crianças podiam brincar e correr sob o olhar das jovens babás vestidas de branco.

Sob o arco que marcava a entrada do jardim um homem baixo, de bigode e terno puído vendia balões coloridos e pipoca doce para as crianças que formavam fila. Ao passar por ele, Nina inspirou fundo o cheiro do caramelo que dominava o ar e se lembrou de quando era criança e também brincava naquele lugar que lhe parecia encantado.

Logo na entrada, no centro da praça circular, havia um magnifico chafariz formado por uma dezena de anjos que miravam o céu com seus olhos piedosos enquanto que da base tocada de leve pelos pés descalços das criaturas aladas, nasciam jatos de água que formavam círculos no ar e que ao cair faziam surgir centenas de pequenos arco-íris enquanto crianças vestidas com esmero corriam em sua volta.

Nina pensou em se sentar em um dos poucos bancos vazios que circulavam a praça formando uma barreira que represava o mar de árvores que dominava o espaço logo atrás, mas percebeu que naquela manhã de domingo desejava ficar em silêncio.

Escolheu ao acaso um dos muitos caminhos que nasciam na praça e avançavam para o interior da floresta de bétulas centenárias e se perdiam em direção ao emaranhado de árvores e continuou caminhando enquanto a algazarra das crianças foi ficando para trás até se tornar um zumbido distante.

Aspirou os aromas que inundavam o ar: umidade, musgo, flores, folhas.

A pouca luz do sol que penetrava ali após vencer a barreira de folhas verdes que formavam a abóbada sobre aqueles corredores refletia-se na umidade das lajotas decrépitas sob seus pés fazendo o caminho à sua frente parecer forrado por pequenas pedras de brilhante.

Os vários bancos distribuídos pelo caminho foram rareando a medida em que ela se distanciava da entrada do parque e, apesar do ar de abandono que ia tomando conta do lugar, ela continuou em direção às entranhas daquele bosque feito de solidão enquanto ouvia o som suave da brisa que dançava entre a folhagem das árvores e plantas e saboreava a tranquilidade que somente a solidão daqueles que aprenderam a ser bons companheiros de si mesmos proporciona.
 
Quando criança, tinha perambulado centenas de vezes com os irmãos pelos recantos daquele lugar que às vezes parecia saído de um conto de fadas e que tinha sido o cenário perfeito para suas aventuras. Da mesma forma que outrora havia feito, caminhou até chegar a um nicho que parecia não ser visitado por viv'alma há muito tempo e que repetia a entrada circular do parque em versão reduzida.

De repente, uma lembrança há muito perdida voltou à sua memória. Lembrou-se com perfeição do dia em que ela contava cerca de cinco anos, suas perninhas estavam cansadas de correr atrás dos irmãos envolta do grande chafariz uma infinidade de vezes sem nunca alcançá-los.

Aborrecida, sentou-se sozinha no chão observando o desenho que os jatos de água nascidos aos pés das belas criaturas formavam no ar, estava perdida em seus pensamentos quando ouviu um sussurro, como se o vento a estivesse chamando.

Olhou para trás. Não havia ninguém ali, mas novamente ouviu aquele som que parecia saído do bosque e que a chamava. 


Foi até o limite entre a praça e o emaranhado de árvores que se multiplicavam até o infinito. Um minuto de descuido da babá e ela adentrou por um daqueles caminhos, seguindo o sussurro que chamava seu nome.

Andou por vários minutos sozinha e sem sentir medo até que chegou a um daqueles nichos arredondados que se espalhavam pelo interior do bosque e onde sempre havia um pequeno chafariz sob a estátua de um anjo solitário.

Sentou-se em frente àquela imagem tão perfeita que a observava profundamente e que a hipnotizou. Não sabe por quanto tempo permaneceu ali até ser despertada daquele transe pela babá desesperada seguida por dois guardas do parque que ao encontrá-la levantou-a no colo com lágrimas nos olhos.

“Nina querida, porque você saiu de perto de mim sem me avisar? Nunca mais faça isso!”.

“Ele me chamou” – disse a menina sorrindo e apontando em direção às costas da babá.

A mulher assustada olhou para trás apertando a menina contra o peito enquanto procurava em volta por alguém que estivesse ali, mas não havia ninguém além daquela figura alada.

“Não há ninguém aqui Nina, vamos embora. Vamos para casa”.

A lembrança daquela pequena travessura e de sua imaginação fértil a fez sorrir e decidir se sentar ali. Havia um único banco naquele local tranquilo que parecia esquecido até pelo pessoal responsável pela manutenção do parque.

Apesar do abandono, a solidão que ali reinava absoluta tornava aquele recanto o local perfeito para a leitura. Assim, sem ser incomodada e imersa naquele silêncio onipresente, Nina se entregou novamente às aventuras de Leopold Bloom.


Perdeu-se na leitura sem ver o tempo passar. Era assim sempre que se dedicava àquilo que mais amava na vida, ler. Era como se deixasse seu próprio corpo e viajasse para aquele mundo feito de letras, tinta e papel, onde permanecia até que os olhos se negassem a continuar lendo.

Após ler dezenas de páginas ela pousou o livro no colo e fechou os olhos que ardiam para descansá-los enquanto se concentrava no som dos pequenos insetos que vagavam pelo bosque ao seu redor.

Naquele lugar onde o tempo não existia, ela inspirou e expirou com calma, sentindo o ar entrar e sair dos pulmões e ouvindo as batidas compassadas do seu coração.

Sentia-se completamente relaxada e permaneceu assim por vários minutos, até que ouviu aquele sussurro outra vez.

“Nina”.

Abriu os olhos assustada, olhou em volta, mas não havia ninguém ali, ou ao menos ninguém que seus olhos pudessem ver.

Estava completamente sozinha mas podia sentir em sua pele o olhar de alguém que a observasse sem ser visto.


Aquela sensação fez seu coração disparar. Sentiu a necessidade de sair dali o mais rápido possível. Levantou-se, contornou o pequeno chafariz que ocupava o centro do nicho e seguiu em direção ao caminho que tinha percorrido para chegar até ali e que a levaria de volta para a entrada do parque, onde encontraria a segurança da multidão.

Antes de seguir em frente e sem se livrar da certeza de que alguém a observava, olhou uma última vez para trás, como se para atender a um chamado silencioso e a única coisa que viu foi o anjo de pedra que, com seus olhos cinza, olhava diretamente para ela.

(continua)


 
Fefa Rodrigues
Enviado por Fefa Rodrigues em 21/03/2018
Reeditado em 11/12/2018
Código do texto: T6286638
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