“6. Depois Judá tomou para Er, o seu primogênito, uma mulher, por nome Tamar. 7 Ora, Er, o primogênito de Judá, era mau aos olhos do Senhor, pelo que o Senhor o matou. 8 Então disse Judá a Onã: Toma a mulher de teu irmão, e cumprindo-lhe o dever de cunhado, suscita descendência a teu irmão. 9 Onã, porém, sabia que tal descendência não havia de ser para ele; de modo que, toda vez que se unia  mulher de seu irmão, derramava o sêmen no chão para não dar descendência a seu irmão. 10 E o que ele fazia era mau aos olhos do Senhor, pelo que o matou também a ele.” Gênesis, 38. 6. 10
 
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     Havia poucas pessoas no velório. Todos vestidos de preto, barbas negras enroladas em tufos encaracolados  e com chapéus da mesma cor. Em volta do caixão, balançavam ritualisticamente a cabeça, enquanto murmuravam salmos em uma língua que parecia ser hebraico. O rosto do cadáver, dentro do esquife, era uma máscara crispada de dor e agonia, como se tivesse morrido em terrível convulsão mental. 

Parecia uma reunião de família. Todos estavam ali, em volta do seu caixão. Os visíveis e os invisíveis. Mas ele podia vê-los, podia ouvi-los, podia sentir os toques asquerosos de suas mãos gélidas e carcomidas. Podia sentir seus hálitos pestilentos e o cheiro das babas purulentas que saiam de suas bocas horrendas. Eles estavam discutindo. E choravam e ganiam como cães raivosos. Voejavam como harpias em volta do seu corpo. Parecia um bando de moscas varejeiras sobre um monte de estrume. Disputavam seu corpo como se fosse um exército de hienas brigando por um pedaço de carne decomposta.
Pois isso era o que ele se tornara agora. Um monte de lama malcheirosa que começava a se decompor. Era um golem de quem a palavra emet (verdade) escrita na sua testa, havia sido retirada a letra "e" transformando-a na palavra met (morte). Podia ver os vermes que começavam a roer as suas entranhas. Além da dor que aqueles demônios lhe provocavam, revirando e puxando suas carnes com suas garras aquilinas, não podia evitar também o nojo. Nojo do que era agora. Nojo do que fora. Nojo do se tornara. 
Aqueles vermes que começavam o corroer suas entranhas também eram demônios que ele mesmo criara e hospedara em seu corpo durante toda sua vida. Lamentava agora ter desprezado os preceitos da Torá. Arrependia-se de não ter seguido as mitzvá. E de ter violado o sabbath trabalhando e fazendo coisas que lhe eram interditas fazer naquele dia sagrado. Mas a ambição e o amor pelo dinheiro, para ele, sempre foram mais fortes que a religião.
Via agora que era verdade o que diziam os mestres da sinagoga e lamentou ter desprezado os seus ensinamentos. Pois todos aqueles espíritos imundos que agora se aglomeravam, como uma horda de cães famintos, em volta do seu cadáver, eram seres incorpóreos formados por gotas do seu sêmen, que fora derramado em úteros prostituídos, ou abandonados em preservativos que evitavam que ele cumprisse a função pela qual o Eterno Deus o fez: a procriação. 
Os rabinos diziam que todo sêmen derramado em vão era colhido e aproveitado por Lilit, a mãe dos demônios, para gestar seus filhos danados. E que estes consideram o homem que forneceu esse sêmen como pai. Por isso a Torá condenava o onanismo, o homossexualismo e o sexo irresponsável, feito unicamente para obter prazer. Por que o sêmen é sagrado. Foi dado ao homem para ele procriar. 
Cada gota de sêmen desperdiçado podia dar origem a um demônio. E no dia do seu enterro, quando o homem estava sendo levado à sepultura, os filhos danados, gerados do sêmen desperdiçado enxameiam ao redor do cadáver, como se fossem abelhas em volta de um favo, clamando: “tu és nosso pai”. Por isso,  aquela horda de demônios lamentavam e pranteavam em volta do seu ataúde, porque perderam o seu lar e agora estavam sendo atormentados juntamente com os outros demônios (incorpóreos) que pairavam no ar. 
Sim, ele agora sabia de onde vinham todos aqueles pensamentos terríveis e a inspiração para aqueles atos indignos que cometera durante a vida. Dera geração a uma família de anjos bastardos. E enquanto ele vivera os danados tinham uma casa e um lar. Agiam através dele. Por isso ele roubou, fraudou, prostituiu, destruiu famílias e lares, tudo em nome de um desejo conspícuo, mesquinho e egoísta, que tinha como únicos valores o prazer carnal, o exercício do poder e o acúmulo de bens. 
Não deixara filhos carnais de sua semente. Não tivera uma família humana para executar por ele o tikun schovavin (rito da purificação), para afastar do seu cadáver aquela horda de “filhos malcriados”, que agora disputavam entre si o seu cadáver, como se ele fosse um precioso relicário. Por isso seu rosto parecia uma máscara mortuária de horror e agonia, que a todos assustava. Ele sabia agora qual seria o destino do seu espírito, disputado por aquela horrorosa horda demoníaca que se comprazia em dilacerar-lhe o corpo. Arrependeu-se de não ter tido filhos carnais. De jamais ter amado verdadeiramente uma mulher na vida, nem ter compartido seu afeto com outras pessoas.
 
Jamais não. Uma vez ele amou uma mulher. Mas nunca lhe dera filhos. Usou com ela todos os meios para evitar a procriação. Dizia que filhos se casam e trazem para a família pessoas estranhas. Ele não queria deixar seus bens para pessoas estranhas. Na verdade, sofria ao pensar que um dia toda a fortuna que ajuntara iria parar nas mãos de outras pessoas.
Por isso preferira desperdiçar seu sêmen em úteros de prostituição e com amantes a quem se achegava apenas pelo prazer.
E, no entanto, ele sabia que aquela mulher o amara. Mas ela também já morrera há muito tempo. De mágoa e tristeza por todo o mal que ele lhe fizera. Se pudesse voltar atrás, talvez fizesse diferente, mas agora...
Lembrou-se das palavras de um rabino, que ouvira na sinagoga, quando ainda era uma criança: “não há um homem, por pior que ele seja, que não tenha uma mulher que o ame: e seja qual for a soma dos seus pecados, se ele tiver uma única pessoa, viva ou morta, que faça para ele o ritual do tikun schovavin, a sua alma poderá ser salva.” 
Lembrou-se também de outro rabi que viveu há mais de dois mil anos atrás (considerado um marginal pela comunidade judaica ortodoxa), que disse que todo homem veria a salvação de Deus. Bastaria que se arrependesse de seus mal feitos, ainda que fosse no seu último lampejo de consciência. E para provar isso esse rabi, que para muitos era o Messias longamente esperado pela comunidade israelita, perdoou e levou consigo para o paraíso um ladrão que estava sendo crucificado ao seu lado.
Bem, ele estava arrependido. Mas de adiantaria o seu arrependimento? Jeová o perdoaria? Jeová sempre foi um Deus austero e impiedoso, que visita a culpa dos pais nos filhos e vice versa.
Esse pensamento foi o seu último lampejo de consciência. Essa consciência que ainda reside nas células de um organismo morto como resíduo de energia que fica em uma pilha descarregada. Essa energia que faz com que as unhas e os cabelos de um defunto ainda cresçam depois que ele foi sepultado.

     Foi no justo momento em que essa centelha de consciência sutil estava se apagando, que uma mulher entrou no recinto onde o corpo dele estava sendo velado. Ela tinha a cabeça coberta com um véu negro. Não se podia ver-lhe o rosto. Trazia nas mãos um pano preto com o qual cobriu a cabeça do cadáver. Despejou sobre ele um vidro de água fresca e depois rezou um salmo que dizia:
 
“Envolto em veludo – estais aqui?
Desfeito, desfeito (seja vosso encanto)
Não entrais e não saís.
Que não haja nada de vós nem de vossa parte!
Voltai, voltai, o mar está furioso, 
Suas ondas vos chamam. 
Mas eu me apego á parte sagrada.
Estou envolta na santidade do rei.”*
 
Quando o rosto do cadáver foi descoberto, todos se espantaram com a mudança que se operara nele. Agora ele era uma máscara de paz onde a dor e o terror desaparecera e a imagem da esperança estava estampada. E o ambiente, que antes exalava pestilência e maus presságios, de repente se aliviou. Uma corrente de ar fresco e bons odores pairou no ar. Os demônios, que antes enxameavam em volta do cadáver haviam se diluído como gotas de chuva.
Quanto àquela mulher vestida de negro, ela havia desaparecido e ninguém mais a viu, nem nunca se soube quem era ela ou de onde veio.
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  • Nota: os versos acima foram copiados do ritual Tikun Schovavin, transcrito por Moisés Zakuto, Veneza 1716- Fonte: Gerson Schollen, A Cabala e seu Simbolismo, pg. 176.