Malefício

Era uma garota de apenas onze anos, tinha aquele corpo de menina que está entrando na adolescência. Um rosto com algumas poucas espinhas, seios ainda querendo despontar. Não era uma menina bonita, tampouco era feia. Tinha um jeito alegre, um pouco tímida talvez. Era uma típica adolescente. Seu nome era Joana, dado por sua mãe em homenagem a Santa Joana d’Arc.

Joana morava em um pequeno vilarejo no interior do Nordeste. Era filha única de uma mãe que não era bem vista por muitos na pequena cidade. A mãe de Joana era solteira e já tinha tido muitos homens, por causa disso sempre corriam comentários de que prestava certos favores sexuais em troca de dinheiro.

Certa manhã a mãe de Joana pediu que esta fosse pegar água no poço. No caminho para o poço Joana sentiu que tinha pisado em algo, parou, tirou o pé direito da sandália para verificar se não tinha machucado, poderia ser um espinho ou uma pedra mais pontiaguda. Não havia nenhum ferimento em seu pé, tampouco viu coisa alguma no chão de terra batida que pudesse ter causado aquela pequena dor que sentira.

Naquele mesmo dia já pela parte da noite Joana sentiu calafrios pelo corpo todo e febre. Sua mãe passou-lhe panos molhados pelo corpo para diminuir-lhe a ardência. Pela manhã Joana estava bem e nem parecia que tinha ardido em febre na noite anterior. Fez seus afazeres domésticos e brincou com as outras meninas da vizinhança. Quando chegou a noite a febre retornou e com ela uma intensa dor em seu pé direito. Sua mãe já desesperada com o choro de Joana chamou por sua vizinha, esta trouxe remédios e deram-lhe um banho gelado para diminuir a febre.

Com o passar dos dias a coisa foi ficando pior. Joana deixou de ter febre, mas em compensação as dores em seu pé tornaram-se mais intensas. Aos poucos a vizinhança foi tomando conhecimento da situação vivida por Joana e sua mãe. Todos que examinavam o pé de Joana viam que este não tinha ferimentos ou inchaços, nem se percebia qualquer tipo de alteração na pele . O que estava acontecendo? Todos se perguntavam isso. Aos poucos foram surgindo especulações sobre a causa daquelas dores misteriosas.

Na cidade não havia médico, quem precisava de um tinha que ir para uma outra cidade bem longe. Acontecia que só em último caso as pessoas iam atrás de recurso médico. Joana terminou sendo levada por sua mãe a um médico. Este não detectou nada de anormal no pé da menina e terminou receitando-lhe apenas vitaminas e recomendações para que modificasse o tipo de sapato e sandálias que usava.

Alguns dias após a ida ao médico as dores ganharam um novo e terrível componente. Certa noite e durante uma das crises de dor a mãe de Joana resolveu massagear-lhe o pé. Enquanto massageava assustou-se quando do calcanhar de Joana saiu um pequeno chumaço de algo que parecia ser algodão. A mãe de Joana chamou pela vizinhança aos gritos.

Todos que foram à casa de Joana puderam olhar com horror que

estranhas coisas saiam de seu pé.

- Meu Deus, o que é isso? Que coisas são essas que estão saindo do pé da minha filha?

- Parecem pedaços de algodão, papel picado e cabelo enrolado. – Dizia uma vizinha que com a ajuda de um pauzinho espalhava eles em cima de um lençol.

- Gente, o que é isso? Meu Deus ... - Os olhos da mãe de Joana só faltavam sair das órbitas.

Em pouco tempo a notícia de que havia uma menina que colocava coisas pelo pé espalhou-se pela pequena cidade. Pessoas passavam pela frente da casa humilde de Joana e ficavam olhando com curiosidade, outras evitavam passar perto porque tinham medo.

A casa de Joana não ficava mais vazia, era um entra e sai de vizinhos o dia todo. Muitos iam a casa movidos só pela curiosidade e outros com genuína vontade de ajudar. Quando chegava à noite acendiam velas e faziam novena. Muitas vezes entravam pela madrugada rezando. Tudo isso parecia não surtir efeito já que as estranhas coisas continuavam saindo pelo pé de Joana.

O estranho fenômeno continuava e do pé direito de Joana já haviam saído agulhas, pedaços pequenos de ferro, papel, lascas de madeira, chumaços de cabelo e algodão. Muitos já tinham olhado bem de perto na hora que as coisas saiam do calcanhar da menina. E todos diziam não ver buraco algum por onde pudesse passar algo, as coisas simplesmente saiam e não deixavam nenhuma marca. Era algo assustador. Após a saída dessas coisas as dores paravam. Todos os dias isso ocorria.

O medo e o assombro fizeram com que comentários de todo tipo começassem a circular. Um desses comentários ganhou corpo e terminou transformando-se naquele que as pessoas mais acreditavam: as coisas que saiam do pé de Joana eram um feitiço. Sim, para muitas pessoas a mãe de Joana havia sofrido um sortilégio e por algum motivo este terminou atingindo a sua filha.

Os dias transcorriam e tudo continuava na mesma. O desespero já tomava conta da mãe de Joana pois sua filha aos poucos começava a definhar. Joana emagrecia rapidamente, nem parecia mais a menina de uma semana atrás. Os vizinhos davam-lhe comidas com bastante caldo e verduras, mas nada adiantava. Em meio a esse clima uma das vizinhas da mãe de Joana lembrou que havia um índio velho que diziam que era um catimbozeiro muito forte. Quem sabe ele não dava um jeito?

- Tem um índio velho que faz catimbó. Quem sabe ele não tira isso da menina?

- Então traz esse índio aqui, mulher de Deus ...

- Ele mora muito longe daqui, mora lá para dentro dos matos. Meu filho sabe quem pode trazer ele aqui.

E assim foi feito. Dois dias depois o catimbozeiro chegou. Joana estava só pele e ossos, seu rosto estava tão descarnado que muitas pessoas tinham medo de olhar para ele.

- Cadê a menina? - Foi logo perguntando o catimbozeiro, que nem era índio de fato, mas sim alguém com, no máximo, uma ascendência indígena longínqua.

Quando viu o estado de lástima da menina ele arregalou os olhos e foi logo dizendo que tinham feito feitiço.

- Aqui tem feitiço, minha senhora. É feitiço bem feito. Gente que não gosta da senhora fez isso. Essa menina vai definhar até a morte se isso não for tirado dela.

O catimbozeiro tirou de um saco que trazia algumas folhas de Jurema e preparou uma defumação. Espalhou pela casa inteira a fumaça daquele preparado e até pelo caminho do poço onde Joana tinha dito que pisara em algo. Em seguida preparou da mesma planta um banho e pediu que banhassem a menina com ele. Tudo isso era feito ao mesmo tempo em que entoava orações católicas e cantorias indígenas. Esse ritual era repetido várias vezes ao dia.

As coisas continuavam a sair do pé da menina. Algumas pessoas pegavam essas estranhas coisas e tacavam fogo, outras achavam que era melhor jogar água benta em cima. O catimbozeiro não prestava muita atenção nelas, dizia apenas que quem fez o feitiço tinha usado aquelas coisas para maltratar Joana e que isso talvez fosse uma vingança.

Ao fim do segundo dia pediu que Joana ingerisse um preparado também feito com folhas de Jurema. Algo estranho se sucedeu após isso: Joana emitia sons estranhos, não parecia a voz de uma menina de onze anos que estava muito fraca e doente. Ninguém entendia o que ela falava. Alguns choravam porque aquilo era um malefício muito grande para uma pobre menina suportar. Outros falavam que o Maldito tinha se apossado da alma de Joana e que Ele é que falava através dela. O catimbozeiro seguia seu trabalho imune a essas coisas que a vizinhança dizia.

Ao amanhecer do quinto dia de trabalho do catimbozeiro qual não foi a surpresa quando se depararam com uma Joana com o rosto corado e sem emagrecimento algum. Onde tinha ido parar aquela menina que falava coisas horríveis que ninguém entendia e que estava só pele e ossos? Que maledicência era aquela? Todos se perguntavam com um medo no olhar. Joana estava de volta, saudável como se nada de ruim houvesse lhe acontecido.

Os dias passaram-se e todos puderam perceber que a menina não lembrava de nada. Joana brincava com suas amiguinhas, ajudava sua mãe nos afazeres domésticos, ia para a escola. Nada em seu comportamento demonstrava que esta soubesse o que tinha ocorrido consigo. Isto era um mistério que ninguém conseguia entender.

Um mês após os estranhos incidentes Joana e sua mãe foram embora do pequeno vilarejo. Isso foi alvo de comentários durante muito tempo. Ninguém viu quando elas se mudaram. Ninguém notou uma única movimentação na casa. Quando perceberam as duas já tinham ido embora. Um estranhamento total. Joana e sua mãe sumiram da cidade e nunca mais foram vistas por ninguém.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 02/04/2018
Reeditado em 08/04/2018
Código do texto: T6297650
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.