DCUW 01 - O CONTADOR DE HISTÓRIAS

“É sabedoria popular dizer que: por vezes, verdades se tornavam

lendas, outras vezes, as lendas se tornavam verdades”.

Vejo o saber popular como uma herança, que é passada de geração em geração. Assim, tenho registrado em minha mente as histórias contadas por meu avô, que para mim são como um tesouro. A forma que tenho de respeitar a sua memória é prosseguir contando para essa nova geração as histórias que ele me ensinou.

Meu avô morava na pequena Itambé, uma cidade interiorana da Bahia onde a pecuária era a uma das maiores fontes de renda, além disso, tinha as fazendas de cacau e café onde muitos que viviam ali trabalhavam em suas plantações e colheitas. Por muito tempo o meu avô foi um destes sofridos trabalhadores; entretanto, com muito esforço e sacrifício conseguiu economizar e comprar um pequeno sítio. Logo começou a cultivar frutas para fabricar doces e geleias que vendia para pequenos comerciantes em sua cidade e municípios vizinhos. Foi assim que conseguiu com muita luta o sustento para sua esposa e seus três filhos.

Os anos se passaram, os filhos ficaram adultos e constituíram suas próprias famílias, indo viver na cidade de Vitória da Conquista, a mais próxima dali, onde buscavam melhores condições de emprego, moradia e escolas.

***

Todavia, com as férias chegando, sabíamos que o destino certo seria o sítio do meu avô. Meu pai sendo o primogênito, era de lei passar pelo menos duas semanas no sítio, sabíamos que meus avós nos esperavam ansiosos e sentíamos felizes em poder estar com eles.

Na época que eu tinha doze anos, tudo naquele sítio tinha um enorme significado para mim. Aquele ventinho gostoso das montanhas que nos refrescava de manhã cedo quando uma leve neblina encobria todo gramado ao redor da casa. Acordávamos com o canto de canários, sabiás e bem-te-vis; melodias que acariciava nossos ouvidos com leveza e paz, substituindo o barulho do despertador que acostumava nos acordar para irmos à escola. Nestes dias podíamos ainda sentir o delicioso aroma de café fresco e de pão assado no forno à lenha.

No fim de tarde, eu e meus primos corríamos pelo pomar. Adorávamos subir nas árvores e comer as frutas colhidas na hora. Era tanta variedade: tinha muita jabuticaba, goiaba, laranja, caju, pitanga, jaca e manga. São recordações que carrego comigo e sei que me fizeram ser um melhor homem hoje, pois, consigo dar valor as coisas simples da vida e, sobretudo, à família.

***

Nas noites de sábado, nos reuníamos na varanda.

Essa era a parte que mais gostava, pois nossa avó Marta se empenhava em preparar quitutes para gente. Tinha uma enorme mesa de madeira ao lado do fogão de lenha. Sentávamos à sua volta, olhando minha avó preparar a massa, enrolar os biscoitos e os assar. Para ela aquele ritual era sagrado e não deixava nenhum de nós ajudar. Era tão bom vê-la retirar as formas de biscoitos saindo fumaça; nós os comíamos na mesma hora, bem quentinhos com café.

Simplesmente não víamos o tempo passar quando estávamos ali e por vezes ficávamos até de madrugada ouvindo meu avô João, que nos distraia contando suas fabulosas histórias.

Lembro-me com saudade do som grave de sua voz. A voz do velho contador de história de Itambé. Era muito emocionante quando todos ficavam em completo silêncio e o ecoar de cada palavra que o velho falava no seu linguajar simples de sotaque baiano do interior, fazia-nos sentir como se estivéssemos vivendo a história contada. Nada se compara a essa emoção.

E de todas as histórias que meu avô contou, tem uma que achei incrível. Não sei bem o porquê ela me impressionou, talvez seja pela confusão de sentidos que ela causa em alguns. Na época soube-se que a história foi passando de “boca a boca”, por isso, pode ter ocorrido confusão dos acontecimentos. Desta forma, alguns dizem que foi assim, outros dizem que não foi, entretanto, meu avô afirmou que tudo aconteceu do jeito que ele contou, em uma única noite... E assim, só posso dizer que é uma das minhas histórias prediletas.

***

Em 1930, Itambé era uma cidade bem modesta, suas ruas eram calçadas de paralelepípedos onde transitava gente simples. Muitos andavam a pé, alguns tinham cavalos e poucas famílias dispunham de carroças. A praça central era repleta de jardineiras com cravos e rosas multicores, pequenos arbustos, gramas e debaixo das frondosas árvores havia bancos com mesas para o pessoal jogar cartas e damas. Em seu centro tinha um coreto. Ali nos dias de festas o prefeito discursava e os seresteiros tocavam violão e sanfona para alegrar o povo.

À frente da praça havia uma pequena igreja católica e ao seu lado direito um casarão que era usado como prefeitura, seguido do bar e mercearia do Pedro. Do lado esquerdo da praça havia a farmácia do Manuel, a barbearia do Antenor e o açougue do Adão.

Jorge, uma figura muito conhecida e querida por todos da cidade, num fim de tarde seguia andando tranquilamente pela praça principal em direção ao açougue. O açougueiro Adão doava para o amigo um saco cheio de muxiba e miúdos sobrados dos cortes do dia. Jorge pegava aqueles restos para alimentar seus cães que tinha em casa. Ele nutria forte paixão pelos bichos, era aposentado e dispunha de muito tempo livre, podendo assim se dedicar ao mundo canino, por isso, decidiu criar um canil.

Sempre que via um bichinho largado pelas redondezas ele o levava consigo, tratava, dava de comer, medicava e a maioria deles doava, mas boa parte ele próprio adotava. Alguns, o elogiavam dizendo que era nobre esse cuidado que ele tinha com as criações, outros criticavam:

— O dinheiro que ele gasta com estes cachorros, poderia ajudar o asilo, ou orfanato da cidade. — Mas, ele nem dava ouvidos a estes falatórios.

Desta vez, se estendeu um pouco mais em prosa com os amigos na praça, o sol se punha lentamente no horizonte, achou interessante aproveitar um pouco mais o ar fresco e decidiu sentar-se para descansar as pernas por mais um tempinho, e notou ao lado do seu banco um cachorro preto deitado. Não sabia fazer outra coisa senão pensar em ajudar os animais abandonados. Reparou que o cachorro era muito bonito, parecia um lobo! Resolveu dar um pouco de suas muxibas para ele comer, mas o cachorro não se moveu do lugar, continuou enroscado como um caracol, nem dava para ver direito seu focinho. Então, instintivamente estendeu a mão para acariciá-lo e foi surpreendido pelo rosnado do cão.

O animal todo raivoso avançou para atacar Jorge, seus olhos negros reluziam como sinal de fúria e mostrava seus dentes afiados. Foi tudo muito rápido, abocanhou com uma enorme mordida o braço de Jorge. Por sorte não prosseguiu com o ataque, saiu disparado pela rua afora e ninguém mais achou o danado do cachorro. O barbeiro que estava na porta de sua loja viu tudo dali e se apressou em acudir o amigo que estava com o braço ensanguentado.

Acho que vai ter que chamar o doutor para costurar... — falou preocupado Antenor ao dar uma olhada no ferimento.

— Não carece, foi só uma mordidinha à-toa, já estou acostumado com estas coisas, esqueceu que lá em casa tem cachorrada? — falou Jorge sorrindo.

— Sei bem de sua valentia homem! Mas, vamos até a barbearia lavar a ferida e passar um álcool. — Assim, o barbeiro o conduziu até seu estabelecimento e lhe prestou os primeiros socorros.

— Agora sim, está tudo certo. Viu que não é grande o corte? Foi uma mordidinha de nada! Agradecido ao compadre pela ajuda, mas agora preciso ir embora para alimentar meus cachorros.

Descrente de qualquer coisa pegou seu pacote de muxibas e foi embora, era tarde e Dona Tereza e seus animais o estavam esperando. Pensou com carinho na esposa, a pobre nunca reclamava de nada, tudo que falava com ela, estava bom. Como não tinham filhos, o marido resolveu fazer ao lado de sua casa um abrigo para os cães.

Abriu o portão e entrou em casa chamando por Tereza.

— Tetê, cheguei! A janta está pronta? Estou com muita fome...

Era hora que a esposa servia o jantar, no entanto, com a demora repentina de Jorge, ela resolveu retirar a mesa e esperá-lo na sala. Ao entrar pela porta Jorge pôde vê-la envolvida com os feitios de seus bordados a mão. Virou-se para o marido e o respondeu calmamente:

— Jorge, você demorou hoje...Tinha feito o jantar mais cedo.

— Atrasei, porque estava conversando com o compadre Antenor e me distraí das horas.

— Pela sua demora, imaginei que ficaria no bar jogando cartas... Mas, não se preocupe. A brasa do fogão não apagou, logo esquentarei sua comida. Enquanto isso, porque não trata dos cachorros?

— Tudo bem. Assim que estiver pronto você me chama. — respondeu desanimado, mas não tendo mais nada a fazer ali, seguiu para o canil com o pacote de miúdos em um de suas mãos.

Jorge possuía uma casa no alto de uma colina, ao lado dela tinha um terreno que também lhe pertencia. Ali preparou moradia exclusivamente para os animais e procurava manter tudo muito limpo e organizado. O piso era de cerâmica, tinha grades de proteção, bebedouro, comedouro para ração e canil separado para eles dormirem.

Todo dia cedinho ele lavava o local, dava banho nos animais uma vez por semana e os alimentava três vezes por dia. A satisfação pessoal era maior que as tarefas que realizava para cuidar dos cães, fazia tudo com muito amor e dedicação, e naquela noite não seria diferente, abriu o portão e seguiu para o canil, na entrada soltou um assobio alto e forte.

— Fiuuu!...

Logo juntou a bicharada, era uma matilha completa de uns vinte cães de vários tamanhos, tinha: pretos, brancos, pintados, malhados. Todos os cercaram latindo com alegria, parecia até que eles queriam fazer uma saudação, os rabinhos abanavam ao mesmo tempo em ritmo dançante anunciando a festa seguida de um banquete.

Abriu o depósito onde armazenava os alimentos e suplementos para os animais, retirou da prateleira o saco de dois quilos de ração. Carregou até as vasilhas dos cães e despejou a ração, em seguida o saco de muxiba por cima, misturou tudo com uma colher imensa de pau e foi verificar se tinha água. A vasilha estava pela metade, resolveu completar. Os cães o aguardavam em euforia atrás do portãozinho de madeira que separava o local onde eles se alimentavam. Assim que terminou de abastecer, abriu o portão e eles entraram rapidamente, como um arrastão seguiram apressados para os comedouros, e agora a presença de Jorge era quase invisível para a maioria deles.

— Que alegria! Todos vão ficar de barriguinha cheia, hein!? — Passou a mão em Bolinha. Era uma cadelinha vira-lata de sua mais alta estima.

Ao contrário dos demais, ela ficava dando pulinhos de alegria e lambia os pés de Jorge sem parar. Ficava ali o cercando e somente comia quando ele a ordenava. — Come Bolinha! Come Bolinha!

O estômago estava roncando, lembrando que era hora de se preocupar com sua barriga vazia.

— Jorge! Jorge! — Da cozinha gritava Dona Tereza.

— Oi! Já estou indo! — respondeu num só grito e apressado saiu do canil, o trancou e voltou para o portão de sua casa, pôde ouvir satisfeito à resposta de Tereza:

— O jantar está servido! Venha logo, e não se esqueça de lavar as mãos!

Após terminar a janta, foi-se banhar e quando tirou a blusa percebeu o braço avermelhado, viu o inchaço no lugar da mordida que começava a roxear, mesmo assim, resolveu não falar nada para Dona Tereza, não queria a preocupar com besteira. Banhou-se, vestiu o pijama e logo bateu o sono.

— Essa minha andança hoje, deu mesmo canseira. Tetê! Já vou deitar, estou com uma abrição de boca danada.

— Eu ainda vou lavar as louças... Depois vou também! — respondeu Dona Tereza.

***

Enquanto isso, no centro da cidade o comércio encerrava o expediente, o barbeiro conferiu o relógio de parede que marcava dezenove horas. Apagou a lamparina e fechou as portas, hora de ir para casa. Seguiu seu trajeto costumeiro, assim que vira a primeira curva encontra o cachorro que mordeu o Jorge... O cachorro deitado num beco escuro, com o focinho escondido entre as patas dianteiras. Antenor o olhou e não o reconheceu, continuou andando distraído. De repente, pisou em um graveto e o barulho despertou o cão.

O cachorro levantou a cabeça e logo rosnou. Rum... Levantou-se, saindo da sombra do beco e partiu raivoso em direção ao barbeiro; assustado Antenor deu um pulo para trás, e ele pode ver aquele bicho que parecia mais um lobo com os olhos brilhantes e enormes dentes afiados, espuma saia pela sua boca e aquela visão demoníaca o fez gritar:

— Sai de reto satanás! — E preparou as pernas já bambas para correr, mas o grito foi tão alto e forte que o cachorro reagiu latindo, foi latindo e espumando pela boca, tanta espuma que o fez engasgar... E caiu no chão dando espasmos. Por mais que o bicho quisesse atacá-lo não conseguia se levantar.

— O que é isso? ... — Deu mais uma olhada de onde estava e pôde ver, o cachorro estava mesmo caído no chão e dando um tipo de convulsão, continuava saindo muita espuma pela boca... — Mas, veja isso! O bicho está com raiva!

Então, Antenor pensou no seu compadre, e rapidamente resolveu mudar seu trajeto. Iria subir o morro e verificar como estava às coisas na casa de Jorge; afinal se preocupou, o cachorro estava raivoso e na cidade não tinha recursos médicos.

— Ai, ai, ai... Coitado do compadre!

Chegando a frente da casa do amigo, bateu palmas com força e chamou: — Compadre Jorge! Dona Tereza!

Logo pareceu Dona Tereza da janela, com a mão na cabeça e os olhos esbugalhados de tanto espanto e de lá mesmo gritou:

— Ah! Graças a Deus! Minhas preces foram ouvidas! Ainda bem que você chegou compadre Antenor!

— Pai amado, Deus de misericórdia, acode meu Pai! — falou o barbeiro, fazendo o sinal da cruz, com medo de que a notícia fosse coisa ruim.

Veio Dona Tereza abrindo o portão chorando:

— Vem pra cá, estou precisando de muita ajuda. O homem ficou doido!

— Ah! Como assim?

— Ele jantou, tomou banho e reclamou que estava com sono e disse que iria se deitar para dormir. Respondi que iria depois que lavasse as louças... Passou algum tempo e eu ainda não tinha terminado. De lá da cozinha ouvi quando me chamou: — Tetê me traz um copo d´água, tô com muita sede! — Está bem! Vou levar... Respondi e me apressei para levar a água, quando cheguei lá... — Parou a narrativa e começou a chorar.

— Fala comadre, tá me deixando aflito!...

— Com a lamparina em uma das mãos e o copo na outra, apareci na porta do quarto e falei: Jorge trouxe sua água... Ele não me respondeu, fazia um barulho estranho, parecia que estava rosnando. Assustada o chamei: Jorge, o que foi? Está passando mal? Ele respondeu: — Estou com calor, muito calor! Abre a janela pra mim... – Coloquei a lamparina em cima do criado mudo para eu poder ir até à janela pra abrir como ele me pediu. Mas quando a lamparina iluminou o rosto dele.... — Novamente parou de falar e começou a chorar...

— Vamos Comadre! Conte logo o que ouve, onde ele está?

— Tive que trancar a porta do quarto, ele está lá dentro. Mas a chave está comigo, o tranquei por fora! — falou em prantos.

— Não estou entendendo, nada!

— Quem não está entendendo sou eu! Assim que a luz da lamparina o clareou, olhei para ele, estava com os olhos vermelhos em brasa viva, a boca cheia de espuma; suas mãos numa tremedeira danada, que não conseguia acertar a boca, derramou toda água na cama e gritou com olhos de ódio:

— Está fazendo o que aqui me olhando? Quem é você?

— Eu, heim homem? Sou eu: Tetê! — falei.

— Não chega perto de mim!... Eu quero comer carne! — Continuou gritando. E começou a querer levantar da cama com os olhos arregalados para mim e boca espumando... Antes dele conseguir se levantar, peguei a lamparina e sai correndo dali, passei a chave na porta e o tranquei lá dentro, por sorte a janela tem grade de ferro por fora e não tem como ele fugir. Então ele começou a gritar:

— Ai tá queimando, tá queimando!... Quem é você?... Me largue?.... Me largue?... Tô com fome! Quero comida... — E começou a quebrar os móveis todos do nosso quarto, só ouvi o barulho da quebradeira...

— Puxa vida! Que coisa triste... — falou o barbeiro. — Não imaginei que já estivesse neste estado...

— Fiquei sem saber o que fazer. Pensei, será que ele virou vampiro? Então, tive uma ideia - fui à nossa dispensa e pequei uma réstia de alho... Acho que tinha umas cinquenta cabeças. Coloquei na ponta de uma vassoura e joguei por cima da porta - pela greta debaixo da viga do telhado. Fiquei ali um tempo parada em frente à porta ouvindo o barulho dele rasgando e mastigando o alho. Pareceu que comeu tudo como um lobo faminto, quando terminou de comer, começou a uivar... Fazia uns barulhos que me fez arrepiar da ponta dos pés até a cabeça, fiquei morrendo de medo.

— É comadre, o caso é mais sério que pensei. A senhora falou que estava parecendo um lobo. Pois, foi isso que vi lá na Rua Quatorze agora a pouco... Antes de ir embora o compadre Jorge esteve na praça batendo papo com a gente, eu vi quando ele se aproximou de um cachorro desconhecido, foi brincar com o bicho e o danado lascou uma mordida no braço dele!

— Ai, meu Deus! Porque ele não se queixou quando chegou? Não me falou nada!

— Mas a pior parte eu não contei...

— Pior que já tá! Não sei o que mais?...

— É que o cachorro estava espumando pela boca, parece que está com raiva. Agora à noite quando saí da barbearia, vi o bicho largado na rua num beco escuro. Ele parecia que ia avançar e me morder, mas não conseguiu se levantar, se estrebuchou no chão e ficou lá caído.

— Ai, meu Deus! Então o Jorge vai morrer? Não, não! Meu Deus, não pode ser! Ele não pode ficar neste sofrimento! O coitado não para de gritar! Vamos até a porta do quarto para você escutar.

Assim, colocaram o ouvido na porta, aparentemente estava quieto e Dona Tereza disse:

— Será que ele dormiu?

— Ou morreu? - respondeu com voz trêmula o barbeiro.

Chorando Dona Tereza falou:

— Não acredito que vou ficar sem meu Jorge. Isso não!

Na mesma hora, ouviram um barulho de algo sendo arrastado lá dentro, parecia que era a cama virando, em seguida ouviram o barulho de algo caindo e depois um uivo...

— Misericórdia! — disse o barbeiro fazendo novamente o sinal da cruz.

— O que iremos fazer? Se a gente o soltar, ele morde a gente e ficaremos com raiva também. — falou Dona Tereza.

— Eu não chego perto! Desculpa dizer, mas sabe que o destino dele é a morte, é triste porque ele vai sofrer muito... Dizem que o coração acelera como uma bomba atônica e explode como um granada.

— Não! Isso não pode!... Jorge sempre foi tão bom. Nunca gostou de ver nenhum de seus cachorros sofrerem! — respondeu com voz chorosa a esposa.

— Quero uma arma, estão tentando me pegar... Não se aproximem de mim! — gritava Jorge de dentro do quarto.

— Olha só que tragédia, se a gente chegar perto pra tentar ajudar ele, pode morder a gente... Se soltá-lo, ele tendo alucinações pode atirar na gente. — falou o barbeiro.

— Não quero meu Jorge sofrendo!

— Coitado do compadre! — respondeu Antenor muito triste por imaginar o destino do amigo.

Para Tereza, Jorge era um marido amado e companheiro de uma vida toda, os dois viviam há mais de trinta anos uma linda história de amor. Seu pensamento era só um, de alguma forma não vê-lo sofrer; e querer aliviar a dor de seu companheiro. Mas, é claro que era uma decisão difícil, porém, não via outra solução, praticaria por amor ao esposo a eutanásia...

— Compadre. No sótão têm estricnina que compramos para matar os ratos, eu não queria isso não, mas ver Jorge sofrendo assim. Prefiro vê-lo morto.

— Eu também acho, o compadre era tão bom para todo mundo.

— Mas, eu não sei o que fazer? Como dou isso pra ele?

— Você não deu para ele o alho, e ele o comeu?

— Ah... Na dispensa tenho mais uma réstia de alho da última safra, vamos pegá-la e misturar o veneno, dar para ele e ver se ele come.

Assim foi feito, pegou a alho e o misturou com a estricnina, colocou na ponta da vassoura e jogou por cima da porta como da outra vez e ficaram escutando... Jorge, como um lobo selvagem devorou todos os alhos que jogaram, só ouvia o rosnado, o barulho dos dentes destrinchando os alhos do outro lado da porta.

Dona Tereza, não tendo mais nada a fazer pegou o terço e acendeu uma vela nos pés da Santa Maria e começou rezar a Ave Maria pela alma do pobre.

— Comadre eu sinto muito... Vou até a praça para chamar nossos amigos, não se preocupe que iremos providenciar o enterro. Eu não demoro. Mas para sua segurança, não abra a porta. Deixe passar a noite, assim, amanhã cedinho acudiremos à senhora.

Emudecida pelas lágrimas, ela nem sequer respondeu, apenas acenou com a cabeça e continuou sua reza, da Ave Maria já passou para o Pai Nosso. Depois que o compadre foi embora, ficou rezando até adormecer nos pés da santa.

Ao descer a serra o barbeiro chorava, lamentando a perda do amigo, chegou à praça, entrou no bar e toda a turma do baralho de sexta estava lá. Cumprimentou todos e logo anunciou a má notícia:

— Pessoal houve uma tragédia, hoje à tarde aqui na praça um cachorro mordeu o compadre Jorge e ele morreu. — Ninguém pareceu acreditar naquilo.

— Mas não é possível! Ele saiu daqui bem, conversou bastante com a gente hoje à tarde. Tinha ficado até de voltar à noite para jogarmos baralho! — falou Pedro, dono da mercearia.

— É fato, estava lá na casa dele com Dona Tereza e a coisa ficou feia, virou um lobo bravo e queria morder a gente. A viúva ficou com medo e deu comida com veneno para ele.

— Meu Deus! Vamos chamar o padre para encomendar a alma dele! E também vou chamar o prefeito, ele tem que ajudar a viúva, como é que ela vai fazer com aquela cachorrada? — falou o farmacêutico Manuel que estava com o pessoal do baralho.

— Coitado, gostava tanto de cachorros, foi morrer logo com uma mordida de um! — Pedro fala com voz chorosa, lamentando de seu amigo e cliente fiel que mantinha conta mensal na mercearia.

Então Rita, a balconista, soltou: — Eu sempre falava para ele largar de lado essa cachorrada. São bichos traiçoeiros!

— Não falem besteira! Vocês não ouviram o que falei? Não foi nenhum dos cachorros dele, foi um cachorro estranho que apareceu na rua hoje. Vamos deixar essa conversa de lado, daqui a pouco vai amanhecer e temos de chamar os demais para irmos acudir a comadre Tereza.

***

Logo ao amanhecer estava o grupo reunido em frente da igreja no centro da praça, uma procissão seguia em direção a serra onde ficava a casa de Jorge, todos cabisbaixos em marcha fúnebre e vestidos de preto. Na frente o Prefeito e o Padre seguido pelo barbeiro Antenor, Pedro, Manuel e a turma do baralho. Chegando à frente da casa bateram palma e chamaram:

— Dona Tereza! — gritou o barbeiro Antenor.

Apareceu então a comadre na janela com a cara toda amassada, de quem não teve uma noite nada boa. Veio abrir o portão para o povo entrar.

— Então comadre, como andam as coisas? — questionou o barbeiro.

— Do mesmo jeito compadre, ele não fez mais nenhum barulho... Desde daquela hora está tudo em silêncio. Eu fiquei na sala, de joelho no pé da Santa pedindo misericórdia a Virgem Maria.

— Então? O que vamos fazer? — perguntou o Padre.

— Estou com meu terno de linho, não irei mexer no defunto! — respondeu o Prefeito.

A confusão estava armada na porta do quarto, a falação continuou... Um falava que não entraria no quarto nem se pagasse mil contos de réis. Outro dizia “eu tenho filho para criar e se ele tiver vivo e me atacar?”; todos com medo de entrar no quarto e dar de cara com um lobo uivante, ou melhor, alguns achavam que ele tivesse virado lobisomem. Porque, tudo aconteceu na noite de sexta-feira treze e todas as sextas-feiras treze aconteciam coisas estranhas na cidade.

— Chega! Chega! — gritou o barbeiro – Ele era meu compadre, devo a ele obrigação. Então não tem conversa, abrirei a porta.

— Tetê! Tetê! — Chamou uma voz distante... Dona Tereza arrepiada falou:

— Oh meu Deus! Estou ouvindo vozes do além. Parece à voz do meu Jorge, está me chamando. Acho que estou tendo delírio!

— Não comadre, eu ouvi também! Psiu! Façam silêncio pessoal. — E o barbeiro colocou o ouvido na porta do quarto, de repente, ouviram nitidamente.

— Tetê, abre para mim a porta, estou com muita fome, quero tomar café, mulher!

— Gente do céu! Aconteceu um milagre! — afirmou eufórica Dona Tereza.

— Não pode ser, demos veneno ontem para ele. — falou o barbeiro!

Olharam uns para os outros, muitos assustados com o ocorrido, mas estavam em maior número resolveram abrir a porta. Antenor como havia prometido destrancou a porta e ao abrirem todos ficaram boquiabertos! A visão era de espantar! O Jorge estava como veio ao mundo, totalmente pelado, ele tinha achado que não tinha ninguém por lá!

— Meu Deus! Que horror! — disse o padre.

— Eu não entendo o que vocês fazem aqui na minha casa? — falou Jorge.

— Nós que não estamos entendendo nada... Chamaram-nos para o seu velório e você aparece vivo e pelado? — falou em tom de desaprovação o Padre.

— Compadre seu braço tá curado! — falou Antenor ao perceber que o braço do amigo só tinha uma marca de um círculo pontilhado - como uma tatuagem seca e cicatrizada.

Dona Tereza pegou um lençol e cobriu Jorge, mas foi logo falando:

— Parem todos, por favor! Não quero que façam mais bagunça! Eu prefiro fazer uma missa para homenagear minha Santa, pois atendeu minha petição e o milagre aconteceu. Ontem dormi aos pés da Santa e clamei com todo meu coração: “Por favor, minha santinha não deixe de me estender à mão. O Jorge é o que tenho na vida, não deixe o diabo levá-lo não! Tu és santa mãe querida, faz pra mim este milagre, pois, a ti sempre sou devota. Atendei-me mãe querida...” Adormeci, pude ver em sonho, uma luz no rosto da santinha, em seu redor estava nossos cachorrinhos. Ela me dizia:

— Acho justo teu pedido, Jorge é o protetor que designei para os bichinhos perdidos. Que cuidou de todos com tanto amor e alento, foi mordido e envenenado pelo ódio e pela dor. Pedi ao meu filho: O salve Cristo é meu amigo, recebe seu clamor de fé. Retribuiremos seu fervor.

— Assim que acordei, rezei um Pai Nosso com mais ferver e vocês chegaram. Como podem ver, realmente é um milagre!

— Então, nós vamos celebrar uma missa para anunciar o milagre! — falou o padre já todo empolgado, pensando nos dízimos e nas ofertas de gratidão. O prefeito também argumentou:

— Isso será formidável! Irei fazer uma convocação para uma assembleia extraordinária e decretarmos este dia aqui em Itambé como santo. Porque tem muito tempo que não se tem milagre por estas bandas.

A Dona Tereza pegou uma roupa e mandou Jorge se vestir, assim que ele terminou, correu direto para cozinha, pois estava com tanta fome o coitado:

— Traz comida Tetê! Na verdade não estou entendendo nada do que vocês estão falando. Só sei que, agora parece que estou com um buraco no estômago como se estivessem dias sem comer nada. Mas, a única coisa que me lembro, foi um sonho que tive. Sonhei o seguinte: Estava com muito calor e vi uma cachoeira, resolvi nadar, então, tirei a roupa e pulei na água para me refrescar. Não me lembro de mais nada... Só sei que agora estou com fome e quero comer!

Dona Tereza foi até a dispensa e com toda alegria e satisfação, pegou: queijo, biscoito de polvilho, tapioca, farinha de beiju e broa de fubá. Correu para o fogão e passou um café fresquinho. Logo, todos estavam na mesa da cozinha comendo e rindo de tudo que aconteceu.

No domingo foi feita a missa e toda cidade compareceu para ver o curado pela santa. O prefeito aproveitou a presença de todos e anunciou que depois da missa iria ter festa na praça e lá anunciou que todo dia treze de junho seria feriado santo, proclamado então: “o dia dos milagres”.

***

Se este causo é verdadeiro ou não, não sei dizer. O que sei é que, por muitos e muitos anos acreditei fielmente que as histórias que meu avô nos contava eram verdadeiras. Até que um dia, quando eu já tinha dezoito anos, recebemos a notícia que meu avô tinha sofrido um acidente.

Ocorreu quando ele se aventurou em subir numa mangueira para colher seus frutos, escorregou de um dos galhos e caiu de uma altura de mais de três metros. A idade já avançada não favoreceu sua recuperação, as costelas tinham sido quebradas e consequentemente comprimiu os pulmões, como ele já tinha problemas cardíacos o quadro evoluiu para um edema pulmonar. Quando ainda estava em seu leito de morte. Meu avô João mandou me chamar em seu quarto e me falou:

— Roberto! De todos meus netos, você é o único que herdou de mim o gosto de contar histórias. E sei que conhece bem de nossa cultura, nossos costumes e lendas. Por isso, quero passar para você um tesouro. — Tirou um anel de prata que tinha no dedo e colocou no meu dedo indicador da mão esquerda, prosseguiu:

— A partir de hoje, você é novo contador das lendárias histórias de Itambé.

Meus olhos ficaram rasos de lágrimas e meu coração se apertou. Não consegui dizer nada, apenas com um gesto de amor abracei fortemente meu avô. Que terminou dizendo:

— Prometa para seu velho avô, que não deixará de contar às novas gerações as lendas de Itambé. Confie no seu dom e no anel, este anel foi meu pai que me deu. Ele tem um encanto que faz com que toda noite em visão algum personagem te visitará e contará uma nova história. E isso é um segredo só seu e não poderá revelar a ninguém. Exceto para o seu descendente direto, quando no futuro não puder prosseguir contando as histórias e você deverá delegar um sucessor. A responsabilidade da existência da lenda de Itambé de agora por diante é sua.

Misteriosamente a partir daquele dia, tudo que meu avô falou se tornou verdade em minha vida. Os personagens ficaram tão vivos em minha mente, que suas vozes ecoavam diariamente dentro da minha cabeça, então, percebi que a única forma de me libertar, era contando as histórias.

Assim, quando conto uma história me sinto leve e as vozes se calam por um momento, e só posso dizer que essa é minha verdade. Nunca perco a oportunidade de contar as histórias lendárias da cidade de Itambé. E o mais engraçado, é que até hoje não sei dizer se são verdadeiras, ou apenas mais um dos tantos contos fantásticos que meus personagens imaginários me contaram.