Leito 23
Mais um plantão noturno ocorria. Já era o oitavo daquele mês. Trabalho em uma enfermaria de clínica médica de um grande hospital. Diariamente lido com pacientes que apresentam as mais diversas patologias. É um trabalho sobre muitos aspectos difícil, mas com o qual estou acostumada, afinal já são mais de quinze anos lidando com isso.
Eu já havia lido o livro de ocorrências e passado visita em todo os leitos. Uma sonda trocada ali, um medicamento de horário mais adiante. Tudo corria na mais absoluta tranquilidade quando a acompanhante do paciente do leito 23 chegou na enfermaria.
- Enfermeira, meu marido está com muitas dores.
- Vou lá dar uma olhada nele já já.
- Mas não demore, ele está gemendo muito.
O paciente em questão apresenta rebaixamento do nível de consciência, tem um diagnóstico de diabetes associado a insuficiência renal, hipertensão arterial sistêmica e uma ferida diabética em membro inferior esquerdo. É um daqueles pacientes com “poliesculhambose” como dizemos aqui.
O paciente tinha medicação analgésica de horário para fazer. Apliquei-lhe a medicação prescrita e retornei para o posto de enfermagem.
Uma hora depois a mesma acompanhante retorna.
- Enfermeira, meu marido está respirando com muita dificuldade. Dá uma olhada nele, por favor.
O paciente estava em macronebulização. Verifiquei o nível de saturação e posicionei melhor a máscara no paciente.
As horas passavam. Eu e as técnicas de enfermagem víamos um desses programas de televisão que passam de madrugada quando novamente fui acionada.
- Ele continua sentindo muita dor e ainda está muito ruim a respiração dele... vá ver ele, por favor ...
- Vou ver ele já – Falei com um tom de voz levemente impaciente e sem tirar os olhos da televisão.
Deixei propositalmente alguns minutos passarem e me dirigi ao leito do paciente. Se ele estivesse gemendo demais eu acionaria o médico de plantão.
Ao chegar lá encontrei o paciente dormindo tranquilamente e sozinho. Não estava mais gemendo e nem com agitação motora. Retornei para o posto de enfermagem para continuar vendo o programa de televisão.
O telefone do posto toca.
- É da portaria. - Uma das técnicas atende e passa para mim.
- Você é a enfermeira responsável pelo turno?
- Sou sim. O que você deseja?
- Sou irmã do paciente Carlos Godinho, do leito 23. Tive problemas para poder ficar com ele hoje. Será que eu poderia subir e ficar com ele hoje aí?
- Já é madrugada, minha senhora, e o horário de troca de acompanhante é até as oito da noite – Respondi quase sem conseguir esconder uma certa irritação.
- Mesmo que pudesse fazer a troca não iria adiantar de nada porque ele já está com acompanhante.
- Quem está acompanhando ele aí?
- É a esposa dele quem está com ele.
- ...Esposa dele? Como assim que esposa? Ele não tem esposa ...
- Minha senhora, já é tarde. A hora de trocar já passou há muito tempo e ele já tem acompanhante – O programa de televisão passava e eu não conseguia ver direito.
- Enfermeira, é impossível ele estar com a esposa dele aí porque ele é viúvo há mais de dez anos ...
- O quê? Como assim?
- Não foi ninguém ficar com ele hoje. Eu estava viajando e quando soube que ele estava sozinho eu vim voando prá cá.
Senti o coração querer parar no meu peito. Uma sensação estranha atravessou minha alma. Larguei o telefone e só consegui dizer:
- Quem era a mulher que veio aqui várias vezes me chamar?