- O LIVRO DE JONAS - CLTS 03 - NÃO CONCORRENDO




De: Raul Miranda
Para: Levi Ricúpero

Olá, amigo.

 
Sei que você deve estar estranhando eu te mandar este e-mail, e já vou dizendo que nem precisa responder. Meu único objetivo é explicar o motivo que me levou a romper o noivado com a sua irmã.

Primeiro eu quero que vc diga que as joias que dei de presente são dela, foram dadas com todo o amor que sempre senti e sentirei, e que ela seja feliz com um homem bom que a mereça. Não posso mais casar com a Suzana e você vai entender tudo depois que eu lhe contar o que aconteceu.

Você me conhece e sabe o quanto eu gostava de frequentar sebos e brechós quando saía cedo do meu trabalho. Pois bem, há algum tempo parei de comprar coisas lá e a Suzi até estranhou. Na hora não quis contar, mudei de assunto, mas agora, para que você entenda e a convença a seguir a vida, vou falar porque não posso mais me casar com ela.

Desde que comprei o livro coisas estranhas têm acontecido aqui em casa. Você vai achar que estou louco, mas eu me sinto como se alguém me observasse o tempo inteiro. Os pecados sempre voltam, cara. Eu sei as coisas que fiz e agora não tenho mais o direito de me arrepender. Não quero envolver a Suzi nos meus problemas.

Na última vez que estive no sebo do Tobias, encontrei um livro vermelho que ele vendeu mais caro alegando que era muito antigo, e era mesmo.

Levi, eu devia ter desistido da compra, devia ter visto que o preço mais caro nem foi o que paguei para o vendedor, mas o de amaldiçoar toda a minha vida depois que ele passou a ser meu. Estou mandando um anexo contendo o conteúdo que tanto me assustou, julgue por você mesmo, amigo.

 

Nunca mais abri o livro. Tenho medo dos novos desenhos que encontrarei lá dentro.

Um abraço.
Raul.


Sem título



- O LIVRO DE JONAS-

Jonas, 1-15
"E levantaram a Jonas, e o lançaram ao mar, e cessou o mar da sua fúria."

“ Relatos Náuticos (página 135)
Daniel Guimarães Pires, Lisboa 1896 – Ano do Senhor. ”

…A tempestade nos alcançou na segunda semana de viagem. Sob nossos pés a madeira velha do assoalho vibrava ameaçando ceder ao peso do mastro.

Eu estava de pé junto à amurada, enquanto os tripulantes corriam puxando cordas, baixando velas, tentando manter a estabilidade do navio violentamente sacudido pelas gigantescas vagas.

Olhava ora para os marinheiros assustados e ora para a água negra lá embaixo. O escuro profundo do oceano me trazia um sentimento de morte e expiação.

 
Sabia o que precisava fazer para acalmar aquela tormenta, mas o desejo de sobreviver mais uma vez ao meu fatídico destino tolhia a minha coragem.

Sentia que o navio poderia se despedaçar a qualquer momento. Vimos uma onda nos atingir a estibordo com força brutal, arrastando vários homens pelo convés escorregadio e tememos que algum de nós fosse lançado nas águas revoltas. Não conseguia mais ficar ali, desci à cabine com os meus demônios e culpas atormentando-me a alma e trazendo recordações de como tudo começou.

Sabedor de que meu fim estava para chegar, deixei aqui o testemunho de meus crimes, e o desejo de que esta maldição pereça comigo.


 
Oito anos antes eu era um jovem médico casado, morando com minha esposa no velho continente. Havia me instalado num simpático sobrado em Lisboa, e arrumara o cargo de médico auxiliar no Hospital Real de Todos os Santos.
 
Sendo estrangeiro, jovem e principiante, não era raro que me mandassem atender nos sítios mais distantes e pobres, pacientes com doenças infecciosas que os médicos mais antigos se recusavam a tratar.
 
No último dia da semana do meu terceiro mês no hospital, fui designado para visitar uma senhora grávida no meio da tarde. Precisamente naquele dia eu estava bastante ansioso para me desembaraçar desta tarefa pois em seguida iria partir com a minha esposa para um passeio pelo campo.
 
Subi à carruagem às três horas e quinze minutos. O trajeto para o destino era longo, e o trabalho, inglório. A tarde não custaria a cair e a paciente me esperava em uma casa velha nos arrabaldes de Lisboa.

O cocheiro, creio que também estivesse bastante vexado, pois cobria o trajeto aos solavancos, tão rápido que em pouco tempo eu já podia sentir as grandes rodas de madeira girando sobre a lama ainda fresca devido à chuva matutina.
 
Era comum estradas sem revestimento nos caminhos que levavam às periferias. Consultava meu relógio de algibeira a todo instante, e mesmo correndo bem acima da velocidade usual, já se haviam passado três quartos de hora quando o cocheiro partiu me deixando lá.

A mulher ainda não estava no momento de parir, mas pelos pés inchados e a respiração ofegante, deduzi que seria um momento difícil, trabalhoso.  Fiquei um certo tempo ali e recomendei uma dieta sem nenhum sal até o parto. Saí com esperanças de que o cocheiro já estivesse para chegar mas me enganei. Fiquei parado na frente da casa por alguns minutos aguardando seu retorno, olhando os arredores para me distrair.

No fim do conjunto de residências havia uma casinha bem arruinada e fora do alinhamento. Não sei até hoje por qual motivo, ou se foi por puro impulso, o fato é que resolvi ir andando até sua porta e passar pelo pequeno portão de ferro carcomido pelo tempo. Penso hoje que se tivesse controlado a minha curiosidade teria detido o fluxo de horrores ocorridos na minha vida a partir de então, mas a vida é feita de escolhas, e naquele dia eu selei o meu destino.

A casa ficava nos fundos de um terreno sombrio, na parte alta do caminho. A terra era negra e mole, onde meus sapatos afundavam. O lugar ainda era composto por algumas lúgubres arvores ao seu redor, onde eram amarrados varais com lençóis brancos se agitando. O mato alto denunciava o descuido e se estendia até os muros rachados, com algumas trepadeiras entranhando nos corrimãos de pedra dos degraus.

 
Ninguém me recebeu à porta. Os cômodos imundos tinham um cheiro antigo e abafado. O bafio de doença me conduzia ao catre onde um velho agonizava. Apesar do calor naquele fim de tarde, o idoso tremia sob as cobertas. Quando cheguei perto foi que vi as bolhas estourando em seu rosto. O lençol estava manchado por pus e sangue, e as pontas dos seus dedos estavam escurecidas.

Reconheci as marcas da peste no homem. A doença que julgava estar debelada há mais de um século se manifestava inequivocamente naquele corpo degenerado. Retrocedi alguns passos. Mesmo para mim que era médico, a doença era ameaçadora, contagiosa, mortal. Fiquei ali parado sem saber muito o que fazer, ouvindo os gemidos do velho.

 
Sobre um criado-mudo um volume vermelho chamou a minha atenção. Era um livro. Pensei em tocá-lo, abrir suas páginas, mas não o fiz por receio e um certo nojo.
 
O homem estava morrendo. Sabia que não ia durar mais do que horas e teria que tomar uma decisão sobre aquele caso.

Cheguei a pensar em por água a ferver para lhe dar um banho, mas, chegando à cozinha, nada mais existia além de telhas partidas sobre um fogão rachado. Sem trempe, ou panelas, e até mesmo um pote com água que me salvasse.

 
Voltando ao quarto vi que o enfermo expirava. Pelo menos assim me pareceu naquele momento. Com a sua morte, e para evitar que a doença qse propagasse pela vizinhança, comecei a deixar uma ideia um tanto sinistra invadir os meus pensamentos. Uma ideia sombria e insensata.
 
Já havia acompanhado a incineração dos corpos de mortos por doenças contagiosas. Levavam os defuntos recolhidos pelas ruas e os jogavam em grandes fogueiras feitas nos terrenos sem vegetação. Estava convencido de que era o melhor a fazer naquele momento. Não dispondo dos recursos da municipalidade, eu mesmo me encarregaria do serviço.



Fui lá fora pegar os lençóis já enxutos e com alguns eu enrolei meus braços. Trouxe um galho firme que arranquei de uma árvore e com ele ergui os panos colados à pele pelo fluido do corpo do doente. Fui para trás da casa e queimei tudo. Deixei lá a fogueira e voltei para o interior da casa. Estendi um lençol limpo no chão, e com as mãos e braços revestidos, coloquei sobre eles o seu corpo torturado pela moléstia. Enrolei seu corpo inerte o máximo que pude e o arrastei até onde havia deixado a fogueira.
 
Todo médico faz um juramento, e por este promete fazer tudo ao seu alcance para o bem, mas aquele homem já não podia ser salvo, havia morrido. Queimando o seu corpo, poderia impedir que o mal contaminasse outras pessoas.
 
Eu cria realmente que o homem já havia dado o último suspiro quando o lancei sobre a fogueira, então, foi com enorme susto que vi, entre estalos e crepitações, o pretendido defunto remexer-se entre os panos, querendo se erguer.

Fiquei alguns segundos petrificado, puxei-o para fora da fogo com o galho que usara para levar os lençóis contaminados. Apaguei as chamas jogando areia sobre os trapos. A pele estava parcialmente colada no tecido e as chagas severamente queimadas exalando um fedor pestilento que me penetrava as narinas.

Quando o desembaracei, a custo, de parte do tecido que o cobria, ele estendeu o braço deformado tentando agarrar meu tornozelo, fitou-me com os olhos vazios e balbuciou alguma coisa que eu julguei ser uma frase em latim.

– Maledicti sunt!

Larguei-o no quintal, peguei minhas coisas e parti. Deixei o homem ao lado da fogueira sem olhar para trás. Não esperei que minha carruagem retornasse. Andei até encontrar um rapaz com uma carroça que em troca de algumas moedas, levou-me para casa.

 
Cheguei completamente descomposto. Subi para a casa de banho, sem cumprimentar minha esposa que preparava o nosso jantar com as criadas. Desci já com novas roupas e embrulhei as que usara para queimá-las no dia seguinte. Não conseguia tirar a imagem do homem olhando para mim.

Meu dever era comunicar o falecimento e o risco de infestação logo que pudesse às autoridades, mas não imaginava uma forma de explicar a minha atitude infeliz e suportar as consequências do ocorrido.

 
No dia seguinte acordei um pouco animado e fomos, como havia sido combinado, viajar para a quinta da família de um colega com o qual havia estreitado relações.

Quando retornei no início da semana, entretanto, a notícia que corria pelos corredores do hospital era a de um grande incêndio que destruíra o imóvel todo e se alastrara pelo mato que cercava todo o terreno, atingindo outras casas.

As novas complicações me desestimularam mais ainda a informar o caso e prestar esclarecimentos, apenas comuniquei que estivera sim, nas proximidades de onde o incêndio devia ter iniciado, mas que imaginava que este só havia começado após eu ter saído de lá. Creio que fui bastante convincente, pois nada mais me foi perguntado sobre o caso.

Os dias seguintes transcorreram tranquilos, e a rotina os fazia agradavelmente idênticos. A repetição me acalmava, afinal a vida sem sobressaltos com a qual eu estava acostumado estava de novo em minhas mãos.

Se a impunidade me dava alívio, a vida de casado me trazia alegrias. Sempre gostava de levar mimos para a minha esposa, surpreendê-la, fazê-la sorrir. Madalena se agradava com qualquer coisa, então sempre que podia, passava pelo comércio e levava algum presente para casa.

Na vitrine de uma pequena livraria achei algo que ela iria apreciar: um livro sobre flores inglesas com lindas gravuras. Comprei um volume e pedi para que fizessem um embrulho caprichado. A vendedora, entretanto, me informou que só estavam com o livro de mostruário, mas, antes do anoitecer, mandaria para minha casa um livro trazido da filial.

Quando, afinal, cheguei a nossa residência, a encomenda com o presente de Madalena já havia sido entregue. Minha esposa estava sorridente, como de costume, mas me olhava com um ar intrigado e apontou para o livro sobre a mesa perguntando:

– Tem certeza que isto é para mim?

Lá estava ele. Não o livro das flores inglesas, mas um outro: o livro vermelho da casa do homem que eu havia queimado vivo. Assim que o vi não tive nenhuma dúvida. A capa vermelha desgastada nas bordas, uma imagem de estrela dourada gravada na capa. Uma mancha marrom na parte direita superior e uma fita amarela saindo de suas páginas, marcando uma específica.

Não havia uma explicação racional para aquele fato. Soubera que tudo havia se queimado naquela casa, como, então, aquele livro havia chegado até a minha casa? O mais pavoroso era que o volume havia vindo realmente dentro da embalagem com o símbolo da livraria, e havia sido deixado, conforme questionei com nosso mordomo, pelo entregador daquela loja.

Imediatamente me ocorreu que alguém havia presenciado toda a minha atividade naquela sexta-feira e teria entrado na casa logo que saí e guardado consigo o livro. Talvez esta mesma pessoa tivesse, então, ateado fogo no imóvel e nas plantas e assim, provocado o incêndio na casa do meu paciente e nas cercanias.

Estes pensamentos me provocavam sensações conflitantes, pois, estando o meu raciocínio correto, eu não era, afinal, o responsável por todas as desgraças que aconteceram naquele dia. Por outro lado, eu fora observado. Alguém conhecia meu segredo e ainda mais grave: sabia onde eu morava.

Naquela noite não dormi. No dia seguinte voltei à livraria e a moça se desculpou dizendo que havia mandado o livro errado, e que mandaria o livro encomendado logo mais. Quis devolver o tal livro vermelho, mas ela falou que ele não fazia parte do catálogo da loja, que podia ficar com ele para mim. Percebi que não adiantaria insistir, e de mais a mais, já que estava sob meu poder, iria lê-lo.

Após a ceia fui até a biblioteca e o encontrei sobre a minha escrivaninha. Estava em mau estado, especialmente na capa. As folhas, contudo, estavam consistentes e as letras bem legíveis.

Era, simplesmente, a história do Profeta Jonas e de como havia sido engolido por um peixe gigante em razão de sua desobediência. Uma passagem assustadora da Bíblia que me causara pesadelos quando era menino. O texto não era igual ao bíblico, mas o seu autor o havia romanceado e o transformado num romance completo, com várias tramas.

Enquanto folheava suas páginas, curioso, vi algo que fez disparar o coração.
A figura de Jonas, ali retratada, tinha os traços muitíssimos parecidos com os do homem que eu havia atendido e assassinado, dias atrás. Não havia dúvidas. O mesmo rosto comprido e um tanto encovado, os olhos grandes e incisivos, aquela boca de lábios finos sobre a qual caía o nariz adunco e comprido.

Muitas explicações passaram em minha cabeça, a mais coerente foi que talvez o livro tivesse sido escrito quando o homem ainda fosse jovem, e este tivesse servido de modelo para o ilustrador. E assim, após o livro ter sido publicado, o rapaz, vaidoso de ter sido pintado, tivesse querido comprar um dos exemplares. Eis aí uma boa elucidação para o ocorrido. Larguei o livro ali e fui cuidar dos meus afazeres, já mais tranquilo.

Os dias transcorreram docemente e por um tempo minha vida correu sem tristezas ou acontecimentos estranhos. Alguns meses após o ocorrido Madalena me pediu para ir comigo ao hospital pois desejava se consultar com o seu médico de hábito.

Nos encontramos na hora do almoço. Ela me pediu para irmos a uma confeitaria muito conhecida lá perto. Estava radiante. Não foi difícil adivinhar o que seus olhos brilhantes me falavam: Minha Madalena ia me dar um filho. O dia foi maravilhoso para nós. Voltei ao hospital apenas para comunicar a novidade e que ia passar aquela tarde com a minha esposa.

Os meses passavam muito rápido enquanto Madalena preparava tudo para receber nosso bebê. A felicidade a deixava ainda mais bonita e a cada dia que eu chegava do trabalho vinha me mostrar bordados, brinquedos, e móveis que havia mandado fazer na melhor marcenaria de Lisboa.

Numa destas vezes ela estava no pavimento superior na hora em que cheguei. Ouviu minha voz lá de cima e veio descendo apressada quando ao chegar nos últimos degraus parou e segurou no corrimão da escada, muito pálida. Acorri de imediato até onde estava e a levei em meus braços até o sofá.

Ficou ali, aconchegada a mim sem forças para se levantar. Esta foi a primeira de muitas fraquezas que Madalena sentiu. Durante os eventos ficava tonta e pálida, sentia escurecimento das vistas e as pernas não a sustinham. Examinei minha esposa exaustivamente, mudei sua dieta muitas vezes, a submeti aos mais diversos tratamentos e a fiz tomar fortificantes, mas tudo parecia ser em vão.

Observei a mulher da minha vida definhar sem que eu nada mais pudesse fazer até que perecesse às vésperas do nascimento de nossa filha, a quem dei o nome de Aurora. Antes de dar seu último suspiro, Madalena voltou-se para mim com seus grandes olhos cor de mel, agora marcados por olheiras profundas, e segurando debilmente a minha mão direita entra as dela me fez prometer que salvaria nosso filho.

Assim que fechou os olhos pela última vez peguei meu bisturi e, entre lágrimas e soluços, tirei o bebê de sua barriga, mas a menina estava muito fraca, e morreu logo depois de sua mãe.

O universo e tudo o que eu amei havia se acabado naquele instante. Era órfão de pai e mãe e meus irmãos moravam no Brasil. Não sentia vontade de encontrar ninguém. Sequer voltei ao hospital para trabalhar. Após o enterro ficava dias e noites em casa, olhando os cômodos, chorando abraçado aos vestidos da minha esposa.

Dispensei os criados, passei a usar o dinheiro da minha herança já que não trabalhava mais. Deixei a barba crescer e me limitava a manter algumas camisas e a roupa branca limpa.

No início recebia algumas visitas. Colegas, chefes, parentes de Madalena, todos vinham a minha casa na tentativa de me trazer algum ânimo. Tentativas vãs de me tirar da tristeza em que repousava meus pensamentos. Depois de um tempo até os amigos mais chegados acabaram desistindo de mim.

Passei a beber. Em pouco tempo dei cabo de todo o estoque de vinhos da minha casa. O dinheiro que serviria para a aquisição de comida, servia então para adquirir mais garrafas. Começava a me embriagar assim que acordava e prosseguia pelo dia inteiro, até que caísse exausto sobre algum dos móveis da casa.

Certa tarde, ainda segurando a terceira garrafa do vinho barato que passei a comprar, e depois de ter acendido algumas velas pela sala, julguei ter visto um vulto caminhando em direção à biblioteca, o espectro de uma mulher. Um tanto hesitante segui seus passos até aquele cômodo e entrei. Lá estava ela: Madalena! Não como costumava ser, mas apenas uma sombra alva, quase transparente, de cabeça baixa, os longos cabelos espalhando-se sobre seu rosto pálido.

                                      

Chamei seu nome, gritei para ela, mas Madalena apenas olhava fixamente para algo sobre a mesa.

Olhei para o que ela observava e lá estava o tal livro vermelho. Tinha certeza que o havia guardado numa das prateleiras mais altas de uma das estantes. Virei o rosto para o canto onde o livro deveria estar e, no momento seguinte, Madalena havia desaparecido.

Andei até a mesa e o livro continuava ali, aberto em uma página sem gravuras e quase completamente em branco, exceto uma frase escrita nela:

– Maledicti sunt!

Meus olhos não acreditavam no que viam. Tudo o que aconteceu naquela desditosa tarde voltou de uma vez aos meus pensamentos. A lama, a casa, o homem, o fogo … Maldito seja … Afinal foram as palavras que o homem me tinha dito antes de morrer, eu havia sido amaldiçoado e para a minha maior desgraça a maldição recaíra sobre as duas pessoas as quais eu mais amava no mundo.

Pensei em jogar aquele objeto demoníaco na lareira, mas apenas me debrucei sobre a mesa, recostei minha cabeça sobre meus braços e adormeci.

Sempre havia filas de cobradores batendo na minha porta. Quando o dinheiro da herança acabou passei a vender a preços irreais as joias de Madalena, quadros, a prataria, a porcelana inglesa, e, por fim, quase todos os móveis.

Comecei a ser visto como uma pessoa desprezível, e até das tabernas mais imundas conseguia ser expulso.

Em dois anos estava irreconhecível. Estava extremamente magro e envelhecido. Não raro arrumava brigas que sempre perdia. O fundo do poço chegou no dia em que, voltando para casa aos tropeços, descobri que havia lá um meirinho segurando um rolo de papel que eu deveria assinar. E assim descobri que o meu sobrado tão rico de boas e más lembranças iria ser leiloado. Assinei o tal papel e gritei para que o homem fosse para a casa de satanás.

Dormi o dia inteiro e por volta das onze horas da noite havia tomado uma resolução. Iria embora para sempre. Fizessem o que lhes aprouvessem com os bens que me haviam restado.

Coloquei alguns trastes e dois livros dentro de um saco de pano e logo que amanheceu saí pelo mundo. Não ficava muito tempo em cada local, apenas o suficiente para arrumar dinheiro e viajar para mais longe. Trabalhei nos mais diversos empregos, sempre trabalhos manuais que me exigiam muito mais da força do que da inteligência. Já havia rodado por toda a Europa, uma boa parte da África e dois países da Ásia quando meti em minha cabeça a vontade de retornar ao meu país de origem.

Não fiz amigos, apenas companheiros nos alojamentos pouco higiênicos aonde conseguia dormir. Também não passei um único dia de minha vida sem lamentar o que havia feito com o homem que, involuntariamente, havia assassinado. A tragédia me perseguia por onde fosse. Em cada posto de trabalho que arranjava, deixava para trás um rastro de sangue e morte. Acidentes, incêndios, quedas, inundações, tragédias das quais eu sempre escapava milagrosamente. Com o tempo percebi que a minha maldição nunca me atingiria pessoalmente, mas a todos aqueles que de mim se afeiçoavam. Forçando-me a uma eterna solidão.

O livro vermelho estava lá entre as minhas roupas, em suas páginas a cada tragédia, iam-se desenhando os rostos daqueles condenados à morte por terem de alguma maneira convivido comigo. Sempre que abria as páginas daquela obra amaldiçoada, ia percebendo que suas páginas amareladas iam ganhando desenhos de novos rostos, o registro diabólico da sina que me pesava nas costas – a culpa indireta mas consciente por cada uma daquelas mortes.

Quando, ao fim de oito anos resolvi voltar para minha terra natal, levei o livro comigo e fiz uma promessa a Deus e a mim de que iria encerrar tudo aqui.

Usei quase todo o dinheiro que consegui juntar ao longo deste tempo e embarquei num grande navio com destino ao Brasil. Não contava encontrar com nenhum parente vivo, não contava sequer que meus pés voltassem a pisar no solo do meu país. Em meus planos esta viagem jamais será concluída, pelo menos para mim.

Encontro-me agora em meio à terrível tempestade. Li várias vezes o Livro de Jonas e há alguns anos sei que única solução para minha vida é acabar com ela. Tenho como certo que logo que me lançar sobre a amurada, a tormenta cessará e salvarei todos estes homens. Assim como ocorreu com o Profeta Jonas, serei engolido por um monstro do mar mas não terei a chance de recomeçar que ele teve. O livro vai comigo, o tenho bem atado a minha camisa. A ideia é que ele encontre seu fim junto com o meu.

Caso você o tenha encontrado, meu amigo, saiba que este livro sempre chega às mãos de quem deveria possui-lo. De uma forma ou de outra você o mereceu, e por ele pagará o preço devido, em cada dia de sua vida sobre a Terra.

Despeço-me, afinal, e que Deus tenha piedade de minha alma.”
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TEMA: MALDIÇÕES


Iolanda Pinheiro



Este conto faz parte do Concurso CLTS - 03 apenas para o recebimento dos comentários. A autora do texto participará sem que sejam atribuídas notas ao conto, e sem concorrer a uma colocação no resultado.