O SOM DOS LAMENTOS - CLTS 03

Dona Graça era a mais conhecida parteira do pequeno lugarejo de Campo das Oiticicas.

Todas as mulheres prestes a parir sentiam-se seguras quando a experiente matrona chegava tranquila com suas bacias de alumínios bem polidos e seus paninhos sempre muito alvos. Sinal de boa hora, como diziam.

Acontece que Dona Terezinha, uma mulher já madura, beirando os quarenta anos, não teve tanta facilidade para pôr seu pequeno no mundo. Foram mais de cinco horas de sofrimento em uma cama esperando o descanso que tardava a chegar. Dona Graça tentou de tudo, pedia força para a mulher, empurrava a barriga de um lado para o outro, mas nada.

– Não perca as esperanças, minha filha, você há de conseguir. Força, bote mais força. – Dizia Dona Graça, tentando encorajar a mulher, mas em seu íntimo, já estava totalmente desacreditada.

– Não consigo mais Dona Graça, dói muito. Sinto que vou desmaiar... Me acode, meu Deus... – Suplicava a mulher numa agonia excruciante.

– Calma, mulher, olha lá, está coroando. Seu filho vai nascer agora. Tenha fé e bote mais força. Arlete, Ceiça, Maria, me ajudem aqui.

– Estamos contigo, Terezinha, não esmoreça, pode apertar a minha mão com toda a força que tiver. – Dizia uma das mulheres que acompanhavam o parto, enquanto as outras, mudas e assustadas, limpavam cuidadosamente o suor do rosto da parideira.

A alegria da parteira ao ver sinal da criança durou muito pouco. Logo ela percebeu que ali não era a cabeça do nascituro, mas as nádegas. Não quis acreditar naquilo, não sabia o que fazer. Tentou disfarçar, mas tremia de desespero. “Pobre Dona Terezinha, talvez não sobreviva”. Pensou em desalento. Quis segurar o choro, mas um nó formou-se inoportuno na garganta e uma lágrima rolou teimosa.

Todavia, não havia tempo para sentimentalismos, sua obrigação era continuar encorajando a mulher, e seja lá que fim desse, tinha que dá um desfecho para aquilo.

– Vamos, mulher, tá nascendo, tá nascendo.

Assim que pode, a experiente parteira, agarrou as ancas do bebê e puxou-o com todo o cuidado possível. Terezinha apertou forte as mãos das ajudantes a ponto de estalarem seus dedos e soltou um grito insano, que pode ser ouvido por todo o vilarejo.

Nádegas, pernas e braços rasgaram as carnes da mulher. A última parte do corpo a sair foi a cabeça com o cordão umbilical envolto em seu pescoço. Com o rosto já roxo, a criança arregalou os olhos e fitou-os inquisidores em Dona Graça por dois segundos. O menino, que era robusto de dar gosto, soltou um suspiro rouco e morreu. A mãe, desfalecida de cansaço, exauria-se em uma enxurrada de sangue. As mulheres se entreolharam em um silêncio sepulcral, sabendo que ela também não sobreviveria. Benzeram-se. Do lado de fora as pessoas fizeram o mesmo sem nem ao menos saberem o que ali se passava.

O pequeno foi enterrado em um terreno que fica ao lado da cidade, o tal campo das oiticicas, que dá nome ao lugarejo devido à abundância dessa árvore na região. A ênfase para o nome do povoado se deu mais especificamente por causa deste terreno, onde cinco oiticicas resolveram crescer juntinhas e suas copas entrelaçadas davam a impressão de serem um sombrio mausoléu. É ali, naquele lugar peculiar, que as pessoas costumam enterrar seus pagãos, aqueles que não tiveram a chance de receber a luz.

Depois desse parto, a idosa decidiu que já era hora de se aposentar. Foi requisitada várias outras vezes, mas recusou a todos os pedidos. O olhar daquele menino lhe feriu o coração e fez sangrar uma ferida há anos cicatrizada.

***

1912, quarenta anos antes.

Graça era uma moça garbosa, que fazia jus ao seu nome. Todos os rapazes da cidade se engraçavam nas graças de Graça. Era fogosa e muito a frente do seu tempo. Não se limitava às convenções da sociedade, ela queria a liberdade de uma vida de prazer. Jamais quis casar, em vez disso, namorava soturna aos pés das oiticicas sob o luar do sertão. Era a vida que desejava até a morte.

Porém, nem tudo foram flores. De meses em meses a moça era surpreendida com um reboliço incômodo na barriga. Tratava logo de tomar uns chás e botava o indesejado para fora. Os restos dos fetos descartados, alguns até já bem formados, eram enterrados na surdina ao pé da mais antiga e longínqua árvore do terreno. Foram tantos abortos que ela perdeu as contas de quantos. No entanto, apesar do falatório das alcoviteiras, ninguém jamais teve a certeza de que alguma vez na vida Graça tivesse embuchado.

Mas a medida que amadurecia, um peso na consciência lhe consumia. Para tentar aplacar a culpa, resolveu virar parteira e ajudar crianças vindouras a verem a luz do dia. Começou como ajudante de uma senhorinha já calejada da vida e herdou dela por definitivo o difícil ofício. Agora, pensava ela, como forma de redenção, dava graças à vida!

***

A morte do pequeno mexeu com ela de tal forma, que resolveu isolar-se em seu casebre, que ficava aos fundos do terreno dos sepulcros. Dona Graça chorava sem parar, debulhando-se em lágrimas lamentosas.

Seu pranto, contudo, despertou os fantasmas de sua mente. Ao final do entardecer, quando saía para respirar um pouco de ar puro fora de casa, começou a ouvir gemidos baixinhos, que não conseguia distinguir de onde vinham. A mulher passou a perambular o vasto campo das oiticicas à procura da criatura que emanava aquele sofrimento, porém nada encontrava.

As súplicas, no entanto, só aumentavam. Eram choros de crianças; uns sussurrados, outros esganiçados. Todos expressavam dor, lamento, medo, angústia, tristeza, desespero. Sua surpresa foi ainda maior quando, no início de uma noite estrelada, percebeu que todas aquelas lamúrias vinham de baixo da terra.

“São os bebês, meu Deus, são os bebês rejeitados e sofridos que clamam pelo afeto de suas mães. Meu Deus, meu Deus, eu não quero ouvir, não quero ouvir...” Rogava a mulher refugiando-se em seu lar.

No dia seguinte, a desolada senhora resolveu pedir ajuda ao padre da região. Este, seguido de uma legião de fiéis e curiosos, direcionaram-se ao local para benzê-lo a fim de afastar todo mau agouro que por lá pudesse existir. Ninguém ouvia nada. Mas Dona Graça não tirava as mãos dos ouvidos, pedindo para que as crianças parassem com aquele choro medonho.

Durante muitos dias o lugar recebeu vários visitantes. Alguns até acreditavam que aquelas almas pagãs pudessem, na verdade, serem anjos, que logo passaram a ser venerados.

Graça, no entanto, isolou-se cada vez mais. Não saía mais de casa, nem mesmo para respirar durante as suas rondas vespertinas. Acreditava que aquilo era uma maldição devido aos muitos erros cometidos durante à sua vida de luxúria desenfreada. Era ela que os sôfregos queriam, era ela que eles desejavam que dormisse junto a eles debaixo daquela terra maldita. Os vizinhos, passaram a levar-lhe comida e água, que a mulher, agora descabelada e com forte odor de sujeira, recebia trêmula, com a porta entreaberta, temendo ser arrastada para os confins do infernos pelas crianças demoníacas.

Todos na cidade comentavam a situação daquela miserável criatura, e penalizados, pensavam em tomar algum tipo de atitude para que a pobre senhora pudesse ter um pouco de alento.

Em um dia de noite enluarada, Dona Graça recebeu a comida e achou que esqueceu a porta aberta. Quando, encolhida ao canto da sala, comendo de forma animalesca com os próprios dedos, deu fé do terrível deslize, já era tarde demais. Várias sombras negras entravam sorrateiramente pela brecha e avançavam em sua direção. Um vento frio assolou o ambiente e os tocos de velas que tremeluziam fracos apagaram-se violentamente. Em vez de choro, ela agora ouvia risadas sarcásticas de ódio e de desprezo. As sombras malévolas agigantavam-se e rodopiavam zombeteiras por sobre a sua cabeça. Nessa noite, a pequena cidade ouviu bramidos horripilantes de puro horror. As pessoas, temendo por suas vidas, trancafiaram-se e rezaram. Ninguém ousou sequer espiar por uma fresta de janela.

Após a noite temerosa, a população rumou para a casa da ex-parteira. As portas da frente e dos fundos, bem como todas as janelas da casa, estavam aferrolhadas. Com dificuldade, homens tiveram de destelhar o imóvel para entrar. Encontraram-na jogada no chão, despida, com as roupas estraçalhadas ao lado. O corpo estava inteiramente arranhado, como se tivesse sido torturado por garras de um animal feroz. A velha casa abafada, que exalava urina, fezes e vômito, estava completamente revirada. Suas mãos, ainda fechadas, seguravam chumaços de cabelos por entre os dedos enrugados. Um fio de sangue escorria por uma de suas narinas. Nenhum sinal de arrombamento. Apenas uma mulher inerte e ferida. Quando os homens abriram a porta, as pessoas exclamaram um sonoro “ah!” de lamentação. Mães taparam os olhos de seus filhos pequenos com as mãos...

***

Hospital Psiquiátrico da capital:

“Paciente: Maria das Graças Silva Paixão.

Enfermidade: loucura obsessiva compulsiva.

Periculosidade: autoflagelação.

Tratamento: choque elétrico, pílulas e calmantes injetáveis para dormir.”

Já fazem cinco anos que Dona Graça foi internada. Por vezes, ela aprecia andar descalça pelos jardins do hospital. Gosta de contemplar as flores, gosta da luz do dia. Até se engraçou com um enfermeiro jovem e atencioso, ao qual, em seus raros momentos de lucidez, conta-lhe fatos da sua história. O solícito rapaz, que já abandonou à própria sorte algumas namoradas prenhes, estremece ao ouvir tais relatos.

Quanto à Graça, é ainda ao final de alguns crepúsculos que começa a sua sina de agonia. Quando não está dopada, a idosa continua a ouvir as lástimas suplicantes, e então, urros estridentes ressoam pelos alvos corredores da ala em que ela se encontra até que os profissionais cheguem, amordacem-na, prendam-lhe na camisa de força e lhe apliquem mais uma injeção.

O simpático enfermeiro que afeiçoou-se àquela senhora desafortunada, temeroso, se compadece e reza durante as suas crises. Ele jura, embora não ouse contar para ninguém, que escuta gemidos baixinhos vindos do fundo do corredor.

Temas: maldição e hospital