O Homem CLTS 03

"Como caíste do céu, ó Lúcifer, tu que ao ponto do dia parecias tão brilhante?"( Isaías 14,12)

Abriu os olhos, viu o mesmo de sempre. Paredes mofadas, sem cor, o armário velho, com a madeira descascando. No canto ao lado, o criado mudo, com uma moringa vazia e um copo embaçado, sujo, com marcas de dedos.

No teto, teias de aranha e um ventilador que não funcionava há um bom tempo, mas que ninguém tirava de lá.

Fechou os olhos novamente. Tentou dormir. Rezou, pensou nos cinco comprimidos que tomara, na esperança de apagar, pelo menos por uma noite.

Estava exausta, massacrada pelas madrugadas a fio que passava de olhos abertos, olhando para aquelas mesmas paredes nuas e cínicas, que pareciam esperar que ela fechasse os olhos para tudo recomeçar.

Débora já não lembrava exatamente de quando tudo havia começado, pensava em meio ao caos que desde que se entendia por gente vinha sendo atormentada por “ele”, o habitante daquele quarto, da casa onde ela nascera, há exatos trinta e um anos.

Chegava a sentir saudade do tempo em que pensava que o homem, a mulher velha, o moço na cadeira de rodas e a menina eram apenas ( como diziam), amigos imaginários.

Sim. Imaginários, como explicara o psiquiatra do hospital onde esteve, numa de suas inúmeras internações. E aquela sensação tão conhecida, um misto de alívio provocado pelas drogas (pelo menos dormia e não via, nem sentia o que “faziam” com ela), e uma sensação de fracasso, de ser a eterna doente que via o que ninguém mais via, ouvia o que não estava lá, na escuridão.

“Imaginários”, dissera o doutor. Apenas imaginários. Diagnóstico concluído. Débora era esquizofrênica.

Tinha vinte e oito anos na época e a família ficou até aliviada, principalmente porque ela passou seis meses internada, sossego para todos em casa.

Olhando para o teto, lembrava-se do primeiro contato com o “Homem” - era assim que ela se referia ao que parecia ser o líder da legião demoníaca.

Um homem grande, estranhamente grande, sempre vestindo um sobretudo preto e usando um chapéu que ocultava seus olhos e nariz, deixando aparecer a boca de lábios finos, repuxados.

Quando sorria, cínico, mostrava dentes pontiagudos, que oscilavam entre o podre e o brilhante (ela até achava isso bonito, quando criança), e falava com voz rouca, numa linguagem ininteligível, uma espécie de código, que só os dois compreendiam.

Viajou no tempo, lágrimas rolando pelo rosto cansado.

Certo dia estava brincando no quintal de casa, quando escutou alguém chamando: “Débora, venha cá, venha falar comigo!”.

Inocente e um pouco assustada, a criança circulou toda a frente de casa, lentamente, sabendo que a voz partia dos fundos.

É. Só podia ter vindo de lá, o canto mais escuro e abandonado da casa, onde o pai tinha feito uma espécie de quartinho de ferramentas. Lá se encontrava de tudo, de chaves de fenda à poeira, aranhas e coisas que só ela, Débora, podia ver.

O quarto. O lugar onde ela era proibida de entrar, mas a voz era insistente, parecia conhecê-la tão bem, melhor que ela mesma se conhecia. Hipnotizava.

E ela seguia ao encontro da voz gutural, que chamava cada vez mais alto o seu nome.

De repente todo o pátio escureceu e uma ventania vinda não se sabe de onde levou as roupas do varal, fez voar folhas, sacudiu fantasmagoricamente os galhos das árvores, que pareciam braços finos e retorcidos, querendo arrastá-la para as profundezas do seu maior pesadelo.

A menina, aturdida e lutando contra o vento, levantou os olhos e olhou para o quartinho: vinha de lá uma estranha luz, uma luz que não iluminava, não brilhava - mas aquecia. Ela suava frio.

Caminhou na ponta dos pés. Parou em frente à porta, pensando se entraria mesmo lá, trêmula. A voz, cada vez mais exigente, mandando entrar.

Então, sentiu o sangue gelar no horror mais delirante. Sem entender o que estava acontecendo, apertou os olhos e viu as pernas compridas e finas, a calça preta, os sapatos marrons de bico fino, que batiam no chão com uma paciência calculada.

O ser devia ter mais de dois metros, pois quase alcançava o teto – notou, apavorada.

Débora resolveu dar meia volta, correr para casa, chamar a mãe, dizer que um intruso estava na casa.

Mal pensou em fazer isso e sentiu, de costas para o quarto, a mão gelada nos seus pequenos ombros. Paralisada de medo não conseguiu emitir nenhum som, ou correr. Queria desmaiar, acordar, talvez fosse um pesadelo. Mas não, o homem a levou para dentro da pequena oficina, seus pés debatendo-se no ar, num esforço inútil para libertar-se.

A menina podia sentir o bafo do Homem, um cheiro estranho que ela não conseguia definir -cheiro de morte - de algo de muito longe e além do tempo e espaço, que ela não vivera, mas que num misto de pavor e entrega, ansiava por descobrir. E ao mesmo tempo, fugir.

Viu a boca imensa e fétida aproximando-se da sua, enquanto o Homem inspirava, como se estivesse roubando sua alma. Desmaiou.

Acordou sem saber quanto tempo havia se passado, se fora sonho, ou realidade. Olhou em volta: somente os objetos de seu pai, o quartinho de ferramentas de sempre.

Correu e se escondeu em casa, contou para a mãe, que não acreditou, pensou que fosse brincadeira de criança.

O tempo passou, tudo foi retornando ao normal, Débora sempre sendo considerada estranha. Cresceu, saiu de casa, fez faculdade, correu o mundo, um dia voltou.

Nunca se recuperou completamente do que aconteceu naquela distante tarde de sua infância. As vozes jamais deixaram sua cabeça, os vultos nunca deixaram de segui-la.

Débora apenas existia, sobrevivia.

Um dia estava lendo na sala de casa, quando ouviu uma voz chamando.

Vinha da oficina. A oficina que não saía de sua memória, o pesadelo que ela vivia tentando banir de suas lembranças.

Caminhou até os fundos. Débora chorava assustada, tentando lembrar de alguma oração, mas não, não conseguia pensar, não podia balbuciar uma palavra, os próprios pensamentos perdidos no abismo do pavor. O frio gélido da oficina amortecia seus reflexos, pensava na mãe, na história que os de casa comentavam em voz baixa, sobre rituais de bruxaria praticados pela avó, pela bisavó e pela trisavó, que segundo diziam, havia sido até mesmo queimada na fogueira.

Família de bruxas... tentava juntar as peças de um cenário macabro do qual ela fazia parte..

Em sua mente confusa, cenas vividas aos quatro anos de idade, na casa da bisavó, um pentagrama, sangue e palavras que ela não entendia, podia ouvir um “receba Débora como oferta...”..

Depois, mulheres dançando nuas e a pequena Débora no colo daquilo que parecia ser um bode gigante.

Risos, bebidas e as palavras, noite afora, até que a pequena adormeceu.

No dia seguinte acordou, julgou ter sido tudo parte de um sonho nefasto. Contou tudo na escolinha.

“Débora é louca” – ouviu uma vez a mãe de um coleguinha sussurrar para outra mãe. Riram-se.

Agora, a mesma voz da infância insistia, a voz satânica e insistente, vindo da oficina.

Parou em frente à porta. Tensa, acendeu a luz e entrou. Débora riu de si mesma, não havia nada ali, é claro – pensou.

De repente a lâmpada estourou e foi agarrada pela mão áspera, parecia couro gasto, escorregadia como pele de sapo. Tentou virar a cabeça em direção ao ser pavoroso que tocava seu queixo, foi erguendo o rosto, vagarosamente.

Tomada pelo pânico viu o sorriso podre, os dentes afiados e o grunhido: “Olá, Débora. Como tem passado?”.

Débora perdeu o chão, perdeu o controle, perdeu o pulso por alguns instantes, e usando de toda a força de vontade que podia ter, gritou pela mãe.

Sem forças, foi ao chão, enquanto olhava a figura horripilante. Braços com aspecto de cobras, mãos imensas e unhas afiadas, em cima dela. O bafo, repugnante, no pescoço. Gritos alucinantes de alguém invisível, vindos de um canto escuro tornavam tudo ainda mais apavorante.

Débora sentiu que estava sendo possuída pela bizarra criatura, sentiu nas entranhas a dor lancinante, quando foi penetrada pelo membro diabólico.

Tudo foi perdendo o foco. Desmaiou. Acordou no quarto.

Olhou em volta e o que viu foi a mãe, chorando, terço nas mãos. Ao seu lado, um desconhecido, provavelmente médico, dizia que a jovem tivera uma crise, que com remédios tudo iria se resolver.

O médico despediu-se e aguardou no corredor. A mãe abraçou Débora, murmurou palavras de perdão, pediu que ela aceitasse a palavra de Deus, que tudo terminaria bem, que nada era mais forte que o poder da fé.

Levantou-se para levar o médico até a porta. Débora, em pânico, não conseguiu falar, não conseguiu pedir que ficasse ali com ela, porque no canto do quarto, ao lado do guarda-roupa, estava o mesmo ser horripilante, que a sodomizara na oficina, horas antes.

O mesmo homem de anos atrás, quando era uma simples menina. Aquele homem com aspecto de cobra e olhar de que era seu dono - ameaçador e confiante, como se a conhecesse de outros tempos.

“O demônio”, Débora pensou, enquanto seu olhar esmagado pelo terror encarava o ser abjeto e deformado, que pedia silêncio, com o dedo indicador sobre os lábios.

Posicionou-se atrás da porta e ali permaneceu, enquanto Débora, em estado de choque, apenas chorava, na cama.

A mãe trouxe um copo de leite, deixou na mesinha ao lado.

A figura demoníaca ali, ao lado da mãe, que agia como se nada de anormal estivesse acontecendo, sentada na poltrona no canto do quarto da filha.

O pai sentou-se no pé da cama, fez massagem nos pés da filha. Dirigiu à mulher palavras duras, palavras que falavam de culpa, de um maldito passado que estava cobrando a conta. A mulher mandou que ele calasse a boca, que tinha certeza que tudo terminaria bem, dessa vez. No canto do quarto, a criatura infernal permanecia.

Finalmente os pais acharam que estava tudo sob controle, e resolveram dormir. A mãe se levantou, apagou a luz do abajur, passou a mão em sua cabeça, colocou uma Bíblia na mesa ao lado, disse que ela descansaria e amanhã seria tudo diferente. Tudo normal.

A mãe não viu, mas o Homem acenou para ela, e deu um sorriso em direção à Débora, que tremia, sob os lençóis.

A jovem não sabia mais o que fazer, mas dessa vez o Homem não estava sozinho, outros seres infernais passeavam por todo seu quarto, falando coisas desconexas e fazendo ameaças.

Tentou gritar para os pais, pedir ajuda, dizer que figuras grotescas passeavam pelo teto, rindo e mostrando a língua, sumindo e reaparecendo nas cobertas, bem perto dela. Mais perto, mais perto, podia sentir o hálito horrível que vinha da boca daquelas coisas inomináveis.

Estranho, ouviu a mãe dizer “boa noite, amor!” enquanto fechava a porta, na semi- escuridão do quarto. Atrás da porta, o homem e o sorriso brilhante no escuro, um brilho esverdeado, que não iluminava. Aquecia.

Tentou gritar, a voz não saía. A mãe, lentamente, fechou a porta, enquanto a criatura que ela apelidara de “O Homem” pedia silêncio, sempre silêncio – indicador sobre os lábios, lábios que ela não podia divisar, em meio aquele tanto de carnes putrefatas, asquerosas.

Rezava para que tudo não passasse de um terrível, o mais terrível pesadelo que alguém já tivera… mas não, podia sentir pelas batidas do coração que estava desperta, e que todas aquelas criaturas iriam finalmente realizar as maldades que há tempos – ela intuía – vinham planejando.

Agitou-se na cama, e na agitação olhou para o lado: na penteadeira a figura de uma senhora de seus oitenta anos, vestida de preto, com um broche de rosas preso ao peito, penteando lentamente os cabelos, alheia a tudo.

Sentindo-se observada, girou lentamente o corpo na direção da moça, que apavorada, esperava pelo pior.

A velha a encarou durante um tempo que Débora não pode precisar, mas não teve medo, olhava espantada o rosto agora sem olhos, nariz e boca, somente uma superfície brilhante e mais nada – cabelos muito lisos e brancos, presos com um grampo de strass, braços muito enrugados, mãos trêmulas e terrivelmente finas. Olhava fixamente para Débora, e esta para o homem, parado no mesmo lugar, ao lado da porta, rindo, gargalhando cada vez mais alto.

Em meio à loucura a senhora da penteadeira começou a gritar. Um grito aterrador, estridente, que vinha das entranhas e parecia querer arrebentar os nervos abalados da garota, que pensava, aturdida e apavorada, como é que a mãe e o pai não escutavam o que acontecia ali.

O quarto foi tomado por labaredas e a velha senhora sem rosto continuava gritando. O homem, o primeiro a aparecer, rodopiava pelo quarto como se estivesse num baile, e criaturas amorfas, apavorantes, passeavam pela cama, pelo tapete, pelas paredes, pelo corpo de Débora.

Tentou levantar. Caiu. E no chão, ao levantar a cabeça, viu sandálias de couro, viu pés inumanos, pés de lagarto calçando sandálias, empurrou a cabeça entre os ombros, pedindo, voz quase inaudível: “Não, não, por favor…”.

Ouviu uma pancada na janela, sons de vidros quebrando, sentiu que os espelhos da penteadeira quebravam também. Chegou a sentir os cacos de vidro caindo sobre seu corpo, sentiu a vibração e ouviu todos os vidros possíveis sendo estilhaçados.

Por um segundo o tempo parou. Olhou a janela, o espelho da penteadeira. Tudo inteiro, mas quando girou nos calcanhares para fugir tropeçou num jovem numa cadeira de rodas que gesticulava implorando por socorro, tentando dizer algo que a mente de Débora, confusa, não podia compreender.

Ela só queria, nesse instante, sumir, simplesmente. Implorava aos céus para que alguém entrasse no quarto, e se fosse um sonho que o barulho a acordasse, enfim, e tudo estivesse igual: levantar, tomar banho, caminhar pelas redondezas, sobreviver, mas não, o pesadelo não terminava, nunca.

Com muito esforço agarrou-se nos lençóis, sacudindo as mãos, que tocavam os seres infernais na cama, levantou tateando as paredes, procurando pela porta do quarto. A porta não estava lá, o quarto estava todo lacrado, não havia mais porta e entre soluços e gemidos, conseguiu finalmente voltar para a cama, passando bem perto do moço na cadeira de rodas, que a olhava de um jeito estranho, entre curioso e ameaçador, como se ela fosse culpada de algo que ela desconhecia.

Escondeu-se debaixo dos lençóis. E esperou. Esperou. Desesperou.

Silêncio. Apenas o tiquetaquear do relógio era ouvido, de vez em quando o cachorro do vizinho latia, confirmando que ela não estava louca, nem dormindo.

Quanto tempo passou Débora não sabia mensurar, mas tentou se apegar aos últimos resquícios de coragem, e pouco a pouco abaixou o lençol.

Esperou os olhos acostumarem-se com o escuro, olhou em volta. Nada.

Nada de errado, nenhuma criatura rastejante sobre a cama, nada de homem, velha ou moço na cadeira de rodas. Respirou, fechou os olhos, convenceu-se de que tudo não passara de um pesadelo. Só isso: um pesadelo.

Levantou-se e foi até o interruptor, e no mesmo instante sentiu todo o seu corpo se arrepiar, sentiu um roçar de barba no pescoço, a voz - aquela voz maligna, ali, junto ao seu ouvido, dizendo seu nome: “Débora”.

Apavorada, virou-se rápido, e o homem estava ao seu lado. Olhou para a penteadeira, a velha sem rosto estava lá, quieta e distante, penteando os cabelos, que agora caíam.

O moço na cadeira de rodas berrava palavrões, girava a cadeira, sem parar. O abajur acendia e apagava, acendia e apagava, até que explodiu.

Débora estava absolutamente paralisada, mais uma vez era incapaz de balbuciar, pedir socorro.

Correu, tropeçou nos próprios pés. Escorregou no tapete e pode ouvir o homem rindo alto, enquanto puxava suas pernas e mordia seus tornozelos, com dentes pavorosos.

Agitou-se e libertando-se das mãos subiu na cama.

Em meio ao desespero, olhou para o lado – e lá estava ela: ela mesma. A então menina Débora, quatro anos, sorrindo candidamente e cantarolando a mesma canção do dia em que vira pela primeira vez o homem nefasto, no quartinho que servia de oficina para o pai.

Sentiu tudo rodar, olhou para o homem, sentado na cama, para a velha, para o moço enlouquecido na cadeira de rodas que não parava de girar, buscou o crucifixo na parede, num espanto percebeu que ele estava de cabeça para baixo.

Tremia, imaginou que talvez tivesse morrido. Quem sabe, afinal, o que nos espera depois dessa vida que julgamos conhecer?

Todo pensamento ocorreu à jovem que, prostrada pelo medo, ouviu a menina, que era ninguém mais, ninguém menos que ela mesma aos quatro anos, dizer: “Débora, não tenha tanto medo… agora nós seremos seus amigos para sempre. e você não tem como fugir, docinho”.

Tentava sair pela janela, mas a doce voz de criança desapareceu, dando lugar a um brado vindo das profundezas, como se todas as vozes daquelas criaturas no quarto gritassem a um só tempo: “Nem tente, sua puta!”

Débora viu de relance o homem sobre ela, puxando sua camisola, penetrando-lhe brutalmente, grunhindo, pesando sobre ela. Aquela forma animalesca, dizendo que ela era dele, promessa da mãe de sua mãe, da mãe de sua avó. Presente para ele.

A partir daquele dia Débora não saiu mais do quarto. Olhos distantes, um corpo abandonado pela alma, cada vez mais magra, cada vez mais frágil. Irreconhecível. Profundas olheiras e marcas de arranhões e cortes por todo o corpo.

Cortes que ela mesma provocava - dissera o psiquiatra.

Ela simplesmente transitava entre o pânico e a ausência, dopada pela imensa quantidade de remédios que tomava, desde aquele dia.

Após a última internação Débora chegou a tomar choques elétricos e vivia dormindo. Quando acordava, era sempre visitada, aterrorizada e violentada pelo terrível grupo, até que recebeu alta, e voltou para casa.

A mãe preparou o quarto, colocou flores, pintou as paredes, arrumou um pequeno altar num cantinho. Ainda esperava que a filha se recuperasse do que ela acreditava ser uma doença.

“Filha, fique tranquila, descanse. Nada vai te acontecer”.

Débora, cabeça rapada, olhos fundos, um esqueleto ambulante, olhou para a mãe quase com dó, e tudo o que pode dizer foi: “Obrigada.”

Deitou na cama, dormiu. Dormiu. Acordou quando a mãe trouxe um chá com torradas, que ela mal tocou, voltou a dormir. Dormiu.

Às três horas da manhã abriu os olhos, e a primeira coisa que viu foi o altar. Arrumado pela mãe com muito carinho, e nenhuma fé: a cruz, ao contrário, e na frente do altar, mãos unidas, como se orasse, o homem.

Gritou pela mãe, quando tudo no quarto começou a voar, os lençóis, os objetos, tudo arremessado por mãos invisíveis contra as paredes, a cruz girando sem parar, enquanto o homem ria, transformando-se num verdadeiro demônio que, por sua vez, transformava-se na menina, na velha, no moço da cadeira de rodas e novamente no homem.

Os pais, no corredor ouviam os gritos, mas não conseguiam abrir a porta, por mais esforço que fizessem.

O pai esmurrava a porta, enquanto a mãe, com as mãos no rosto, chorava e balbuciava alguma oração, que ela nem sabia que conhecia.

De repente, tudo silenciou. Um clique, a porta se abriu, rangendo… os pais entraram no quarto e se depararam com a filha levitando. Nas paredes algo que era muito semelhante a sangue, com as palavras ela é nossa, não adianta lutar, malditos.

O silêncio durou poucos minutos e tudo recomeçou. A ventania, os objetos sendo jogados nas paredes, gritos horripilantes, e a moça, sendo arremessada da cama para o teto repetidamente.

A cruz, que girava sem parar na parede, soltou-se e atingiu o rosto do pai de Débora, fazendo-lhe perder os sentidos, enquanto sua mãe tentava agarrar o corpo da filha, que já não sabia se vivia, tal era a violência das pancadas, quando subia e descia, batendo no teto.

Chorou, gritando desesperada, tentando chamar o marido, que recobrava aos poucos a consciência.

Descobrindo-se impotentes, os dois sentaram-se num canto e choraram juntos, assistindo àquele espetáculo macabro.

Enfim, Débora caiu pesadamente sobre a cama. Tudo silenciou.

A mãe correu para a filha, e entre lágrimas, verificou que a filha estava viva, respirava.

Apertou o corpo magro e exausto da moça entre os braços e ficou ali, como se ninasse um bebê, enquanto o pai chorava alto, encostado no armário.

Naquela mesma noite foram visitados por um padre.

O padre Nilo tinha muito boa vontade, é verdade, mas foi muito honesto ao expor seu ponto de vista: Débora precisava de um exorcismo, porém seu estado de saúde era tão delicado que ela, provavelmente, não aguentaria todo o ritual.

Porém – frisou – “sua alma estaria nas mãos de Deus, ao contrário do que se passava agora, em que um corpo cansado era continuamente torturado por algozes espirituais e a alma padecia, na antessala de um inferno sem fim”.

Os pais, sem saber o que fazer, pediram um tempo para pensar, agradeceram muito ao representante de Deus, que se retirou, deixando - os pais e a moça – entregues ao desespero.

Subiram as escadas, foram até o quarto da filha. Estava tudo calmo e a moça dormia, sob efeito dos sedativos.

Foram para o quarto, dormiram bem naquela madrugada, como há muito não dormiam.

No dia seguinte, a mãe foi ao quarto de Débora, empurrou a porta lentamente, não viu a filha na cama.

Caminhou até a penteadeira e encontrou um bilhete, onde se lia: “Eu sempre fui todos. Eu sempre serei todos eles. Somos um só. E estarei com eles para sempre. Adeus”.

Caminhou apreensiva até a janela, e o que viu se transformou em um grito de pavor, que ecoou por toda a casa: no jardim o corpo de Débora – morta - trajando um vestido preto de renda, ao lado de uma cadeira de rodas e uma boneca de louça. Os olhos muito abertos para a imensidão do céu, vendo o que somente ela vira, durante toda a vida.

Tema: Maldições.