EM LETRA E CARNE  
 
Ao fim de mais um cigarro, o escritor conclui o último parágrafo do romance que lhe arrancou meses de dedicação. Sopra a névoa acre pelo nariz como quem se alivia de um imenso devaneio. Mantém os olhos na tela do computador, mas pensando em como voltar à realidade. Salva o arquivo e o remete ao editor que não parava de lhe cobrar a obra pronta. O escritor suspira fundo e puxa mais um cigarro do maço sobre a escrivaninha. Ergue-se e caminha à janela do quarto que dá de frente à rua mais movimentada do bairro formado por um conglomerado de classe média, entre um subúrbio precário e o centro metropolitano. Olha pelo vidro embaçado, por conta da poluição, esfrega-o e mira o início de dia abaixo, pois o escritor mora no terceiro andar de um prédio recém-construído, do qual ainda paga o financiamento de quinze anos.

O escritor resolve filar algo saboroso na geladeira. Desce bem devagar, dois lances de escada, não deseja acordar o mau humor da mulher. Passara a noite escrevendo e o estômago lhe cobra um bom retorno pela escassez prolongada.

Vasculha o íntimo dos armários que escondem as guloseimas, em regra disfarçadas em caixas diversas do conteúdo. Essa estratégia é usada pela esposa do escritor que se preocupa com a diabetes dele, mas o objeto da preocupação sempre encontra um jeitinho para, quando sente saudades, afundar os ânimos e desânimos no açúcar dos bolos, biscoitos recheados, sucos prontos e afins.

No escoar do último biscoito, ouve o barulho dos passos arrastados da mulher descendo os degraus. Rápido, o escritor se livra dos vestígios de seu crime e limpa a boca ainda untada de creme de leite e açúcar cristalizado.
“Já acordou amor?”, a loira esbelta se achega de um modo insone. Parece sonâmbula, como toda vez em que acorda antes das oito da manhã.
“Acordar, bem? Eu não dormi.”, o escritor diz beijando-a na face.
“De novo, bem?
“É, mas fique tranquila. Terminei o livro.”
“Puxa amor. Até que enfim!”, cruza os bracinhos e faz uma cara sapeca.
“Agora você vai ficar um pouquinho comigo?”, envolve o tronco do escritor pelos bracinhos urgentes.
“Linda... desculpa”, aplica um selinho na mulher e a encara meio desconfiado.
“Desculpar o quê?”, ela solta um olhar carente.
“Eu vou ter que sair agora, mas volto rapidinho. Tudo bem?”
“Ah, não. Sair de novo?”, distancia-se do esposo e franze o aspecto, como se firmemente decepcionada.
“Mas tenho uma notícia boa pra você, linda!”, fala e mete uma mão no bolso da calça. “Olha”, puxa e exibe o suvenir que a esposa ama. “Esse aqui é todo seu, um cartão com limite de dez mil reais, que tal?”

A loira segura o queixo com as mãos e enche o escritor de beijos e abraços. Afirma que irá se arrumar para fazer novas compras, sem hora pra voltar. O escritor diz o mesmo e ambos se despedem, como o casal mais feliz da Via Láctea. Não fazem sexo há algum tempo, mas para ele isso não é motivo de pânico, já que o tabaco e a diabetes lhe diminuem o interesse pelo hábito. A esposa do escritor é muito bonita e bem mais jovem do que ele, mas para ela o verbo comprar é como uma extensão do substantivo orgasmo.
O escritor dirige retirando abstrações do exterior que se referem à direção e forma como os veículos andam e acerca do céu azul que não é azul e agradece ao mesmo céu o privilégio de ter uma mulher especial. Para no sinal e sente um movimento estranho que não discerne se vem do carro da rua ou dele mesmo. Percebe-se em uma espécie de distração provisória por conta de uma iluminação mental que deságua num pedido vindo do lado de fora, alguém bate num dos vidros fechados. O escritor se assusta e tenta acelerar, mas é impedido pela mão que rompe o invólucro por uma barra de ferro que golpeia o escritor na cabeça. Ele nota a perda gradual dos sentidos que ascende e descende entregando-se a um local onde nunca esteve em corpo, mas certamente em espírito.

Logo que abre os olhos, estala-lhe a conexão entre o local onde se acha amarrado a uma cadeira e o cenário de uma das cenas mais altas do romance que acabara de escrever. Esbugalha o rosto e a imaginação ao que virá a ele após o hiato em curso. O escritor observa a disposição das grandes caixas metálicas e das pilhas de material reciclável onde ocorreu o auge do morticínio em sua obra mais sangrenta. A cena se desenvolve num enorme galpão abandonado que funcionara como reduto para a transformação de lixo em algo reaproveitável. Ocorre que (ele sabe) se desenrola a iminência da realização do exato oposto: aproveitamento humano se transformando em lixo. Mas longe de querer lançar algum juízo de valor à própria obra, o que ele mais precisa é se desvencilhar das cordas que o atam a uma cadeira pesada de madeira, tipo as de balanço, bem antigas, onde as avós ninavam seus netos. O escritor age como quem nina a si mesmo na tentativa de não surtar, já que está às portas do destino da próxima vítima. Ele impulsiona o corpo para frente e para trás até tombar no chão de barro poeirento que exala um cheiro inominado, entre a morte e a vida, mas certamente incluso no registro de aromas intragáveis. Sem saber de onde tirar as forças, mas confiante na desenvoltura da personagem que ele entende encarnar, consegue desatar as amarras nos pulsos e faz o mesmo com as que lhe impedem os artelhos. Ergue-se meio desnorteado, mas logo segue ao barulho como de quebraduras, oriundos de uma porta bem iluminada, na extremidade oposta do enorme galpão.


O escritor caminha se arrastando, pois ainda sente a invasão de algumas vertigens luminosas que lhe assaltam e deixam e à medida que se aproxima do acesso suspeito, rememora os acontecimentos de seu livro. Pensa se há a possibilidade da criação superar ao criador ou se isso não passa de algum clichê popular elaborado para a superstição dos inconformados à inexorável razão de existir. Em resumo, indaga-se sobre a probabilidade de sair da própria obra com vida.
O barulho como de algo se rompendo torna-se olfativo. O escritor inala uma mistura de animalidade e indigestão, como a dos açougues, mas remexida por uivos de desespero que surgem um pouco antes das batidas, a princípio encharcadas e, em pouco tempo, secas.
Esgueirando-se para não ser notado, o escritor se deita no chão e põe somente o olhar para dentro do cubículo fedorento. Vê o que, por alguma ingenuidade típica da natureza humana, achou poder evitar. Embora os atos em fluxo sejam os mesmos que elaborara por um raciocínio dedicado ao pavor, jamais imaginou tê-los tão de perto. Sim, o escritor observa (paralisado de assombro) a personagem criada para o maior pesadelo de seus leitores. O mesmo indivíduo, que o acertara com a barra de ferro, agora decepa a carcaça de uma senhora que, embora defunta, ainda emana a aparência invadida pelo trauma de ter sido castrada da vida por um machado certeiro e insensível. O desconhecido, que o escritor conhece bem, separa as mãos dos braços e os artelhos das pernas, retira os dedos para o vazio e (como num clímax programado) arranca a cabeça do tronco desvalido, que trepida aos baques do machado em riste pelo indivíduo alto e forte de aspecto indefinível, sem camisa, adornado por um avental branco onde espirram os jatos de sangue durante os cortes. Como se não bastasse tanta disposição relaxada para esquartejar, o elemento (criado à imagem e semelhança do autor?) suspende a cabeça avulsa da mulher, pelos cabelos grisalhos, e enfia um dedo nos olhos dela até retirá-los das órbitas, em sequência larga a cabeça na bancada viscosa - onde há uma mistura de vísceras e órgãos humanos - e leva as castanhas esferas à boca. Mastiga-as até estourarem, como obtendo uma recompensa satisfatória. À medida que gargalha uma substância, negro-rubra e pastosa, lhe escorre pelos cantos dos lábios nervosos. Em seguida ele ergue a outro cadáver que estava rente à bancada, dessa vez o de uma criança pálida e sem os cabelos...

O escritor não suporta. Abandona o campo de visão e retorna para onde estava quando amarrado à cadeira. Lembra-se de algumas lonas que cobriam algo e se decide pela confiança nas próprias saídas que inventara nas entrelinhas dos recursos literários, ao quais nem todos têm acesso. No percurso é novamente invadido pelas vertigens, mas dessa vez mais intensas. Entende que deveria ter tomado a insulina, conforme as recomendações médicas e da esposa. Mas, desde que vira as consequências do trabalho de uma vida, o escritor tem dificuldades de discernir o que seja a vida ou a não vida dentro de um contexto preciso. Sente o peito acelerar e uma das pernas adormece, mas prossegue e se mantém firme ao propósito de não dar o seu personagem ao mundo. Demora alguns minutos para concluir o trajeto, mas consegue. Puxa, com alguma dificuldade, uma das lonas que abriga a um amontoado de galões de gasolina. Do bolso traseiro da calça retira o isqueiro, sempre a tiracolo para fumar, acende-o e, soltando um gozo demoníaco dos olhos, joga-o nos galões.

A esposa do escritor adentra a rua onde mora. Dirige bem feliz, assobiando uma música romântica que brota da internet de bordo. Quando dilata os olhos, antes semicerrados, estranha. Freia o carro e sai. Não acredita. Segura o queixo com as mãozinhas trêmulas enquanto admira a movimentação em sua residência. Há bombeiros isolando as imediações do prédio e inúmeros curiosos formando uma nuvem humana, menor apenas do que a nuvem de fumaça avassaladora oriunda da convulsão fervente no edifício. Ela volta ao carro e envia uma mensagem para o melhor, e mais íntimo amigo, que a consola durante o choro. Ela se preocupa muito com o apartamento e os demais bens que acumulara pelo labor do marido, mas ao mesmo tempo sente alívio, pois não terá a necessidade de continuar mentindo.


TEMA: MALDIÇÃO