PROFANAÇÃO - CLTS 03

Era a décima terceira noite da quaresma e o Sertão à luz da lua cheia era profanado pelos ventos frios e agourentos. Carcaças secas de animais pelos cantos, alguns crânios pendurados em cercas e casas. Os morcegos dividiam o céu com as rasga-mortalhas que com seus voos inaudíveis facilmente capturavam os ratos e as cobras, enquanto as árvores e todo o restante da vegetação estava resistindo ao período de poucas chuvas.

Em casa, naqueles dias, éramos seis: o pai, a mãe, o vô, eu e os meus dois primos que vieram passar as férias aqui. Morávamos no interior, longe de todos, numa casa modesta em um grande terreno herdado, rodeado por cercas feitas com galhos secos e arames farpados.

Como de costume, quando dava seis horas da noite, a hora do anjo, segundo a tradição, a mãe ligava o rádio para todos rezarmos o terço no alpendre da casa. Eu, ainda criança, e meus primos já adolescentes, íamos rezar com os adultos a contragosto, pois o que queríamos mesmo era ficar brincando pelo enorme terreno.

Depois do terço, meu vô acendeu uma vela que fica ao lado do pequeno altar firmado na parede do alpendre. Logo em seguida, começou sua prece:

- Que o Senhor afaste todas as coisas do mal de nossa família. Que as criaturas da noite encontrem refúgio longe de todos nós, que os agouros peguem nas plantas e bichos antes de chegarem em nós e que esta quaresma permaneça em repleta paz. Amém.

- Amém – todos responderam.

Findado o terço e as preces, fomos todos jantar e logo em seguida, a mãe foi lavar os pratos; o pai e o vô foram para o alpendre ouvir rádio e conversar enquanto fumavam um cigarro de palha. Enquanto eu e os meninos descansávamos da janta, ouvíamos, mesmo sem entender quase nada, a conversa dos adultos:

- Soube o que aconteceu com o filho de José das Chagas?

- Soube, pai.

- Ele mereceu a punição que teve.

- O senhor sabe o que ele fez?

- Profanou a quaresma.

- Meu Deus!

- Pois foi. Esses jovens não respeitam mais nada.

- Os velhos usaram as cabeças de galo para resolver a situação?

- Sim. Não havia outra forma de resolver aquilo. Arrancaram os olhos dele com um punhal, colocaram cada um dentro de cabeças de galo, enfiados pelo bico e as deixaram no telhado à noite pra que a luz da lua os limpe e pra que de dia as cabeças e os olhos sejam comidos pelo carcará, a ave traiçoeira, pra assim acabar com a maldição da profanação.

- Ele ainda tá em casa?

-Tá. Graças à família dele que tomou as providências e depois chamou o padre. Se não tivessem feito isso, todos seriam amaldiçoados.

- Verdade. Não se pode brincar com essas coisas.

- Não mesmo, meu filho. Só os mais velhos sabem das coisas que se escondem nas sombras dessas terras, ainda mais na quaresma.

- Pelo menos fizeram o certo, o bem pra toda a família.

- Verdade.

Eu não sabia nem o que era profanação, mas com toda certeza não era uma coisa boa, mesmo assim, os mais velhos sempre nos diziam para respeitar os dias santos, pois nessas terras há coisas ruins que podem acontecer com quem faz o que não deve:

- Meu neto querido, há coisas tenebrosas abaixo de nós, nas sombras das árvores, nos crânios de animais pendurados nas cercas, nos céus e nas águas noturnas. Às vezes, as orações não são o suficiente para afastar essas coisas, nem mesmo as orações secretas: é preciso agir, e nem sempre essas ações estão livres da dor ou do sacrifício.

Depois de alguns minutos ouvindo a conversa dos adultos, mesmo com um pouco de medo, eu e meus primos decidimos ir para os fundos da casa para brincar, pois a luz da lua clareava quase todo o terreno, menos o chão sob as grandes e velhas árvores:

- Vamos brincar de esconde-esconde? – um deles propôs.

- Vamos! – respondi.

- Tá contigo!

- Pois tratem de se esconder bem porque eu conheço esse terreno – respondi muito animado, virando-me para começar a brincadeira.

Enquanto eles corriam e se escondiam no terreno, eu contava de olhos fechados ao lado da porta da cozinha, daquelas que podemos abrir somente a metade de cima se quisermos. Enquanto eu contava, consegui ouvir minha mãe falando com o pai sobre o caso da tal profanação da quaresma:

- Ave Maria! Quando foi que isso aconteceu, homem?

- Não tá nem com uma semana.

- E como descobriram a profanação?

Nesse instante meu pai baixou o tom e respondeu à pergunta de minha mãe:

- As roupas de baixo estavam húmidas e com cheiro imoral.

- Aquele menino é tão novo pra ter ficado cego - a mãe comentou com um tom penoso.

Nesse instante, o pai então firmou a voz e disse:

- Crime e castigo, mulher! Já esqueceu o que aconteceu com a neta de João Bernardo? Ela foi encontrada toda ferida e pendurada no lugar do espantalho.

- Eu lembro. Dizem que ela matou algum bicho de noite.

- Pois sim. Ela só não foi morta por que os mais velhos agiram a tempo, mas mesmo assim não acharam a criatura que fez aquilo com ela.

- Ainda bem que ela tá bem.

- Ela teve o que mereceu. Nós sabemos que as coisas da noite dessas terras estão além de nossas forças, por isso é preciso respeitar as tradições, caso contrário: crime e castigo.

Enquanto ouvia os dois, me perdi completamente nas contas, e o medo, já esquecido pela animação de brincar, voltou. Quando decidi enfim abrir os olhos, meu vô colocou a cabeça para fora da porta e chamou pelo meu nome. Quase morri de um susto, mas logo perguntei o que ele desejava. Lembro bem das suas palavras:

- O vento tá frio e é noite de lua, menino – falou com uma expressão séria de advertência.

- Mas a gente tá só brincando, vô.

- Não é bom que meninos brinquem no escuro. Faz mal.

- Mas, vô! A gente se comporta.

- Calado! E passe já pra casa!

Como ele insistiu, eu disse que só ia chamá-los de volta para casa. O meu medo assim cedeu lugar à chateação. Então fui procurá-los no fundo do terreno. Claro que aproveitei a chance para terminar a brincadeira, então os procurei sem fazer barulho. Logo meus olhos se costumaram com a luz da lua e comecei a enxergar melhor. Andei pelos matos secos sorrateiramente por alguns minutos, até que enfim ouvi um barulho vindo de trás do tronco da velha mangueira.

Arrodeei à distância para surpreendê-los pela frente, foi quando notei que eles estavam abraçados de uma forma estranha, não como se estivessem com medo de algo, mas como se estivessem abraçando a uma menina. Estranhei a situação, pois nunca tinha visto algo assim. Fiquei parado e observei sem entender o que acontecia. “O que eles tão fazendo?”. Com o passar de alguns instantes, quando eles desconfiados se afastaram um do outro, eu então os surpreendi:

- Achei, vocês!

Eles tomaram um tremendo susto. Percebi que ficaram um pouco sem jeito com a situação, talvez por serem surpreendidos tão rapidamente por mim, pensei. Em seguida contei para eles que o vô tinha mandado a gente ir para casa dormir. Eles também não gostaram das ordens do vô, mas vieram comigo. Então voltamos os três.

Já em casa, antes de irmos dormir, cada um de nós tomamos banho, bebemos um chá que o vô nos deu e rezamos. Rezar antes de dormir era um costume que a mãe não deixava passar em branco. Lembro que antes de se deitarem, quando todos estavam na cozinha tomando chá, meus primos se abraçaram novamente de uma forma bem diferente. Nesse momento, um deles olhou para mim, pensando talvez que eu estava dormindo, mas eu estava apenas fingindo e olhando a cena sem explicação para mim. Logo depois, eles e eu fomos dormir.

Quando já era bem tarde, o silêncio da noite quaresmal foi cortado. Acordei com um susto, ouvindo vozes de choro e discussão. “É a mãe”, eu pensei preocupado. Imediatamente me levantei e corri para a porta do quarto, foi quando ouvi minha mãe falando com o pai:

- Pelo amor de Deus! Não!

- Não há o que fazer! O pai tá certo, mulher!

- Por favor! Não!

- Você viu os calções dos dois? Sentiu o cheiro? Eu bem que disse que não queria esses meninos aqui!

- Eles não sabiam o que estavam fazendo!

- Profanação é profanação!

Ouvindo tais palavras minhas pernas congelaram e senti um aperto no peito, temendo e prevendo o que poderia acontecer. Quando as súplicas de minha mãe sessaram e apenas o choro era ouvido pela casa, enquanto eu estava parado no umbral da porta, meu vô apareceu na minha frente com uma expressão severa, os olhos vermelhos e lacrimejantes, segurando um afiado punhal numa das mãos e na outra quatro cabeças de galos pingando sangue. Meu pai apareceu então e me puxou pelo braço com força, levando-me para fora de casa. Eu, chorando e gritando, tentando resistir sem sucesso à sua força que me arrastava, tentava ajudar meus primos. Os meus gritos só não era mais terríveis do que o choro desesperado de minha mãe, mas nós dois sentíamos algo em comum naquela macabra noite: a sensação do terror e impotência.

Por fim, antes de meu pai conseguir de vez me tirar de casa, enquanto eu ainda me segurava com todas as minhas forças na porta da sala, meu vô virou-se para mim, e antes de entrar e fechar a porta do meu quarto com meus primos lá dentro, enquanto eles ainda dormiam sob o efeito misterioso do seu chá, ele chorando me disse:

- É melhor os carcarás comerem os olhos deles no telhado do que os demônios devorarem as suas almas no Inferno.

TEMA: MALDIÇÕES.

HENRIQUE SANTOS CE
Enviado por HENRIQUE SANTOS CE em 03/06/2018
Reeditado em 09/12/2018
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