LE GRAN CIRCUS PARADISE - CLTS 03

Não era uma manhã como as outras, alguma coisa estava errada. O café insosso desceu morno garganta abaixo, no pão, ele nem tocou. Saltou do pijama de flanela quadriculado para o uniforme de tergal, parecia vestir-se de plástico ao sentir o contato frio do tecido. Naquela beira de brejo, maio já era um mês bem gelado e Fábio munia-se de coragem para seguir rumo à escola, que era perto, mesmo assim montava em sua bicicleta pedalando firme desafiando o vento como uma andorinha solitária, nem os lábios queimados impediam seu sorriso.

Pelo caminho, a sensação inquietante tornava-se ainda maior, temia algum encontro inesperado, talvez um touro bravo. Não podia voltar, lembrava da avó com seus casos de presságios de mal agouro na ponta da língua, mas a mãe lhe daria uma lição com a embira murcha que mantinha como atrás da porta como alerta no caso de desobediência.

Avançando contra o desconhecido, pensava nas possibilidades. Poderia dizer que se sentia mal, seu estômago doía por culpa de alguma fruta estragada, afinal o pão era testemunha da falta de apetite. Distraído, não notou o quanto havia se distanciado de casa. Depois da curva passaria pela Várzea do Pescador, ponto de encontro nas tardes de algazarra, onde além da bela prainha de água doce criada pelas enchentes do ribeirão Sesmarias, tinha também o campinho que na maior parte do tempo servia de pasto aos bezerros do Seu Anésio, mas por obra da molecada foram colocadas duas balizas formando as traves do gol, dando os limites da arena esportiva do povoado.

Ao avistar o campo, o céu turvo tornou-se um pouco mais cinza, a vegetação coberta pela poeira contribuía deixando a paisagem desoladora, porém, contrastando com tudo aquilo, uma lona colorida forrava o gramado ressecado.

Fabinho parou subitamente quase caindo da bicicleta. Não entendia o que era aquilo. De uma hora para outra o campinho fora invadido, estava tudo modificado, aqueles seres estranhos não deveriam pertencer a este planeta.

Nas margens do ribeirão quatro cavalos brancos com listras pretas saciavam sua sede, onde antes era o meio campo, dois porcos gigantescos estavam acorrentados juntos, o mais engraçado era o fato de possuírem duas caudas, uma atrás e outra na frente, bem entre dois longos chifres recurvados que saiam do que parecia uma boca. Não houve vento frio que fizesse o menino se mover.

Um grupo de caminhões pintados de azul, vermelho e amarelo estavam parados ao lado da estrada, perto de uma grande mangueira. Dois homens tentavam pendurar uma faixa nos postes recém fincados que possivelmente demarcavam a entrada. Estendida, lia-se “LE GRAN CIRCUS PARADISE”.

Foram varias tentativas para distinguir tais palavras, uma vez que ele mesmo iniciava-se no beabá, por fim deduziu que aquelas pessoas haviam fugido da escola.

Encantado pela novidade deixou levar-se pelos devaneios, admirava cada uma daquelas criaturas desconhecidas, imaginava de onde teriam surgido até ser despertado pelo zunido irritante de um besouro que reluzia ao banhar-se com os primeiros raios de sol. Liberto dos sonhos, tentou acerta o inseto que investia contra seu rosto, o bicho prevendo o movimento, desviou-se ainda quase acertando sua cabeça na manobra, enfim se perdeu entre os arbustos.

Refeito da surpresa, benzeu-se com o sinal da cruz apresando-se em levar a novidade para o resto da turma.

A criançada não via o fim das aulas, queriam conhecer o circo após uma das professoras explicar do que se tratava.

Chegando à pequena ponte de tábuas sobre o rio, foram detidos pelo beato Tonzé, um mendigo maltrapilho de juízo imperfeito desde o nascimento. Sua mãe, viúva até tentou cuidar dele por um tempo, mas sem recursos deixou-o aos cuidados do pároco local. Tinha abrigo e alimento, de higiene não gostava, sua aparência medonha assustava as pessoas, certa vez, numa quermesse, ao soltar os fogo da aleluia, teve sua mão esquerda mutilada, perdeu três dedos e boa parte da audição. Proibido de frequentar a igreja sem antes tomar um banho, assistia as missas do lado de fora, por uma das janelas laterais, não precisava ouvir, sabia de cor todos os sermões do padre.

Apoiando-se num cajado retorcido, impedia o avanço da comitiva com palavras de alerta.

- A Besta esta solta. Ela quer a nossa alma. Ninguém vai se salvar.

Falava tanto sem se fazer entender, mesmo assim quem ousasse passar seria agraciado com uma bela porretada. Por algum tempo os meninos tentaram vencê-lo. Trocaram ofensas, até mesmo pedradas. O maluco conservava-se irredutível, nem as moscas a sua volta o incomodava.

Pior para Fabinho, aquele era o único caminho para casa. Teve que atravessar o leito mais raso do rio com sua bicicleta nas costas.

No outro dia, uma quarta feira seca, a lona estava armada. De longe as estrelas amarelas enfeitavam as listras coloridas. Cercando todo o local, uma barreira também de lona impedia o acesso de invasores, a entrada só era possível pelo portão principal, nem subindo na mangueira dava para ver os estranhos animais.

Na escola, as aulas corriam normalmente, a professora explicava o método da subtração. Uma música alegre precedeu os berros fanhos do apresentador atarracado:

- Senhoras e senhores,... Meninos e meninas,... Venham conhecer as maravilhas do Gran Circus Paradise.

- Mágicos, malabaristas, palhaços e muita pipoca... Não percam o fabuloso encantador de animais,... É nesta quinta... Às dezoito horas... Venham, venham todos... Assistam ao maior espetáculo já visto...

Enquanto os alunos corriam para o pátio, a comitiva ganhava distância deixando o som perder-se com o vento.

O circo voltou a ser o assunto do dia, não houve como retomar a lição.

Fábio voltando para casa encontrou a ponte desobstruída. Tonzé esbravejava mil maldições em frente à tenda principal.

Um homem de ombros largos, rosto comprido, queixo enorme fazia guarda, não permitia a invasão, dizia-se que ele era capaz de erguer até dez vezes o seu próprio peso. De trás da lona saiu um sujeito magro, braços finos e longos, tinha quase o dobro da altura do primeiro, parecia um gigante com seus cabelos pretos repartidos ao meio bem grudados na cabeça por uma espécie de resina ou creme. A discussão se agravou, um empurra-empurra teve início, se quisesse, o homem forte facilmente enxotaria o maluco. Fabinho nem se importou. Aquele doido merecia uma lição, enchia a paciência de todos, além de tudo o fez se molhar levando uma reprimenda da mãe. Riu da situação ao seguir seu caminho.

Naquela semana a cidade ficou agitada não só pela estréia do espetáculo, mas também pelo misterioso desaparecimento de Ritinha, uma menina tímida de olhar penetrante. A família estava desconsolada, a polícia não tinha pistas, a suposição mais plausível era de um acidente, poderia ter caído em alguma parte funda do rio, mas ninguém afirmava com certeza.

A noite de estréia chegou um tanto menos animada que esperado. Contrariando as previsões, o clima era morno enquanto a lua clara brilhava por entre as nuvens. Fábio estava empolgado com a possibilidade de conhecer as maravilhas anunciadas. Sua família não tinha luxo, mas com o desconto da estréia seu pai podia comprar os três ingressos necessários. Vestindo as roupas da missa, a família caminhou rumo à várzea onde o circo estava montado.

Oculto pelas sombras como alma de outro mundo, Tonzé espreitava. Saltou ligeiro segurando a mulher pelo braço, ela gritou desesperada. Fábio perdeu a voz. Num ímpeto de coragem, seu pai partiu contra o agressor arremessando a uns três metros de distância. Vendo o maltrapilho no chão, refeita do susto a mãe piedosa impediu o marido de investir contra o maluco que não conseguia se erguer.

Tonzé balbuciava algo indecifrável. Bater naquele traste seria covardia, melhor ignorar continuando o passeio. Deram-lhe as costas. Fabinho olhou para trás apertando a mão da mãe.

- Não vão, os animais comem as pessoas.

O maluco conseguiu atenção desejada. Incrédulo, o pai voltou-se ao homem caído ajudando-o a se colocar de pé. Ele continuou:

- Eles vão devorar todos nós. A Besta quer nossa alma. Vão nos dar aos animais.

Algumas mariposas circulavam o casal como se eles possuíssem um brilho sedutor.

- É um caso perdido,... Louco de pedra. Apresaram o passo com pena do pobre homem.

Ao lado da bilheteria, um cartaz exibia as atrações do circo. Entraram na tenda, tomaram seus lugares na arquibancada sob o repique dos tambores.

Uma linda moça vendia pipocas, Fabinho e a mãe ganharam um pacote, o pai não gostava desses mimos.

No picadeiro, Piolho e Zangão, dois palhaços coloridos esbofeteavam-se provocando risadas. Piolho era o anão de cabelos azuis, usava uma gravatinha borboleta e um sapato amarelo. Zangão tinha as calças largas presa por suspensórios, blusa listrada e cara sisuda. Em seguida, foram substituídos por quatro irmãos que saltavam uns sobre os outros. Formando um quadrado, arremessavam argolas alternadamente entre si, eram os melhores malabaristas jamais conhecidos.

O que mais impressionou naquela noite, foi o mágico com seus truques. Ele usava uma grande cartola, vez por outra enrolava o fino bigode com a ponta dos dedos, sua casaca terminava numa cauda partida como as asas de uma borboleta.

Aos poucos a luz foi diminuindo, concentrando-se numa grande caixa marrom, era de madeira, mas percebia-se uma pequena placa de pedra incrustada em sua tampa, o mágico a chamava de Magnífica Caixa da Metamorfose. Depois de tantos preparativos, o ilusionista tomou sua assistente pela mão, apresentou-a aos expectadores, pediu que entrasse no objeto. Delicadamente a tampa foi trancada. A caixa foi coberta por um pano branco, ele proferiu seus encantos girando-a por alguns segundos, enfiou algumas lâminas para susto da platéia, esperou um pouco para retirá-las, puxou o pano, abriu a tampa retirando lá de dentro uma linda gatinha branca. O animal foi exibido, enquanto o interior da caixa se mostrava vazio. O povo aplaudiu com entusiasmo.

O processo foi refeito. Agora quem saiu da caixa não foi a gata, para espanto de todos ali estava sua bela assistente. Admirados, a platéia aplaudiu de pé.

Durante a noite, o menino sonhou com as maravilhas presenciadas, a magia do circo o seduzia com suas criaturas inusitadas. Entre os amigos, ele agora era o mágico.

Voltando as aulas, nem sentiram a falta de Marcos, o valentão do primário. Só depois souberam do sumiço de mais uma criança, que desta vez para comoção geral desapareceu de sua própria casa tarde da noite reforçando a suspeita de rapto.

Tonzé fez um enorme alvoroço acusado o espetáculo mambembe. O delegado mesmo não acreditando, porém sem outras pistas, tentando satisfazer a pressão da família teve que investigar. Entrevistou os artistas, inspecionou as tendas, conferiu todas as jaulas certificando-se que ali não havia nenhum animal carnívoro. Com a certeza da normalidade desculpou-se com o proprietário que nada tinha recebendo ainda alguns bilhetes a serem distribuídos grátis aos colegas da delegacia.

Como sempre o velho demente causou mais um constrangimento.

No caminho para casa, Fabinho curioso parou diante daquele mundo encantado, pensou bastante na mãe que o aguardava, mas era uma oportunidade única, não poderia ser abandonada. Teria que ver de perto a caixa milagrosa. Escondeu a bicicleta numa moita de capim seco. Certificou-se de não ser observado, procurou um local discreto onde poderia se enfiar vencendo a cerca protetora até se ver diante dos enormes elefantes. Seus olhos cintilavam com tantas maravilhas. Cuidadosamente se esgueirava de um lado a outro até descobrir o camarim desejado.

Lá dentro se desenrolava uma discussão agressiva. O homem musculoso mantinha preso o maluco da cidade que se esforçava para escapar. O mágico se divertia com tanto desespero. Tonzé protestava, não queria ser devorado, quanto mais suplicava, mais prazer os brutamontes sentiam.

O louco foi enfiado na caixa. Fabinho tremia de medo enquanto pensava em fugir. Já era tarde, foi agarrado por alguém que chegou sorrateiro, o ar fugiu de seus pulmões num único grito de socorro, seu corpo foi amolecendo até perder a consciência.

Com os desaparecimentos a cidade se tornou sombria, uma nuvem negra encobriu a luz do sol, as mães não deixavam os filhos longe das vistas nem por um momento, as aulas foram suspensas, a alegria deixou de existir.

Sem espectadores, o circo até tentou funcionar, fez promoções, deu espetáculos de graça, mas ali já não era bem vindo, estava na hora de continuar viagem, outras cidades deveriam ser exploradas.

No fim da tarde o delegado estava na casa dos pais de Fábio, não tinha boas notícias. A bicicleta do menino foi encontrada quase na divisa do município, um caminho bem diferente do que deveria ter tomado. Despediu-se com um nó na garganta ao ver as lágrimas da pobre mulher. No portão foi atacado por um enxame de gafanhotos, afugentou-os como pode. Antes de entrar no carro, deu passagem à comitiva circense, o espetáculo deixava a cidade levando dali novas atrações.

Numa gaiola, três macaquinhos faziam bagunça, numa jaula grande, um velho orangotango acenava com sua mão deformada.

Ao dar partida no motor, o delegado pensava como não viu antes aquela horrenda criatura.

Tema: circo dos horrores.