FORMIGAS NÃO MORREM JAMAIS - CLTS 03

Quando Anton José voltou do coma, antes mesmo de conseguir abrir os olhos, percebeu que as formigas ainda estavam ali. Sentiu o caminhar de pequenos e contínuos passos subindo pelos tornozelos externos, atravessando diagonalmente os membros inferiores, canelas e coxas, como a faixa de proibido na placa de trânsito por que passara pouco antes do acidente, proibido ultrapassar, vira de relance quando já estava forçando a ultrapassagem sobre um carro que vinha devagar à sua frente, julgou que conseguiria e só se descobriu equivocado quando já era tarde demais, Jane gritou, Anton gritou, a buzina do caminhão gritou, os pneus gritaram, e, depois do tonitruante trovão, o silêncio, dois corpos inertes em posição nada anatômica, quem testemunhasse a cena os julgaria mortos, julgaria correto o caso dela, o mesmo não se pode dizer deste homem em quem a faixa diagonal agora se reproduzia sensorialmente no deslocar das formigas, como a lhe tatuar na carne o julgamento errado, a caminho do entrepernas que o avental da terapia intensiva pouco cobria e nada impedia a progressão das trabalhadeiras em marcha, escalando-lhe as rugosidades do sexo flácido, transpondo-se através da floresta de pelos pubianos e entrando, por fim, a contrafluxo, por onde lhe descia urina. Por fim é modo de dizer, decerto esse não era o destino final das formigas, mas como a sensação tátil da movimentação não se reproduz internamente e como não se as viam sair por outra parte, era impossível prever onde, em seus dentros, se estavam concentrando. Como não existem bifurcações nas vias urinárias inferiores ou superiores, pode-se assumir que subiam por uretra, bexiga, ureteres e rins, ou pararam em algum ponto, não para descanso, que formigas não são dadas ao cansaço, andam distâncias que em escala humana equivalem a voltas ao mundo, mas por não lhes saber o objetivo de entrarem a Anton José. Tentou chamar enfermeiro, médico, fisioterapeuta, alguém, por favor, vejam, não é concebível que isso aconteça dentro de um hospital, tampouco fora, mas em unidade de terapia intensiva, sob supervisão contínua da equipe de plantonistas, é que não. Um tubo pelo nariz e outro pela boca o impediam de falar, mas a agitação de estar acordado e sentir os insetos passeando por fora e dentro de si lhe alterou de tal forma os sinais vitais que todos os aparelhos de monitorização se puseram a apitar ao mesmo tempo. Leito Dois está acordando, quem o disse não estava em seu campo visual, Anton José assumiu ser a enfermeira, e acertou, costumam ser os que primeiro chegam à situação problema, chamem o doutor Herculano. Em poucos instantes sua beira de leito estava povoada por toda a equipe de plantão, agora sim, bastava-lhe discretos movimentos de pescoço e os podia ver todos, discutiam o que fariam, se tirariam tubos, sondas, cateteres, se a medicação seria essa ou aquela, se teria alguma sequela neurológica, enquanto o que mais impressionava Anton José era o não se importarem com a evidente trilha de formigas que lhe subia do pé ao púbis, e adentro sabe-se lá até onde.

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Estamos no ponto mais alto da Digital Data Tower, o nome em inglês é resquício de um passado distante em que a empresa britânica instalou a antena que até hoje é responsável por retransmitir todos os sinais eletromagnéticos de televisão, rádio, telefonia móvel e internet para a cidade que dorme e acorda quase duzentos metros abaixo, e vemos um homem sentado à borda do edifício, com os pés flutuando no abismo. Se lhe for perguntado o porquê de ali estar sem qualquer equipamento de segurança, e se ele estiver com vontade de responder, o homem há de contar sua história, e com toda certeza você o julgará mentiroso ou louco, mormente louco, por estar a ponto de cair de uma altura a que lhe seria impossível sobreviver. Tudo começou há cento e trinta e três anos, ele diria, quando sofri um acidente de carro que vitimou minha noiva, e o estranhamento já se estabelece desde o princípio, o rapaz tem ares de recém-saído da adolescência, na faixa dos vinte e poucos anos, e fala de mais de um século atrás como se fosse possível que estivesse vivo, ele, e não seu bisavô. Subíamos a serra eu e Jane para um fim de semana a dois que tinha tudo para ser uma antecipação da lua-de-mel. O casamento estava marcado para dali a poucas semanas, e os preparativos estavam quase todos concluídos. Faltava apenas contratar o fornecedor dos doces, e isso, para mim, era fundamental, outros serviços podiam ser menos que perfeitos, não os doces. Trazíamos no carro algumas caixas de amostras dos doceiros mais famosos da cidade, e Jane estava inquieta por prová-los. Pedi-lhe que esperasse, estamos quase chegando, não tardará mais meia hora até o hotel, mas a ansiedade e a vontade de comer foi maior que a prudência, e, uma vez aberta a caixa, eu também quis experimentar, ora, por que não. Foi quando comecei a sentir as formigas. Formigas estão a um instante de qualquer lugar, daqui, inclusive, não lhes basta mais que uma migalha de açúcar a lhes despertar os sentidos para organizarem o exército em busca do troféu. Subiam-me pelos pés e pernas e braços e rosto e me entravam pelos orifícios e me impediram de tomar a decisão certa quando foi necessário, a meia hora que nos faltava era muito tempo, estava entrando em desespero e tinha de chegar o mais rápido possível para me livrar delas, acelerei, forcei a ultrapassagem, e dei de frente com um caminhão. Saia da borda do edifício, por favor, vamos descer, tomar um café, sem açúcar, se assim o quiser, você diz, temendo que um movimento em falso lhe faça cair, lembre-se, no entanto, que o diálogo é retórico, porquanto está sozinho Anton José, assim se chama o rapaz, sentado a fitar o que as nuvens permitem que da cidade se veja, e o narrador apenas observa e relata, sem qualquer ingerência sobre o que Anton vai fazer ou deixar de fazer, sem possibilidade de evitar que abra os braços, incline o corpo para frente, desprenda as nádegas do concreto e se lance em queda livre no abismo.

Não se faça de surpreso, ninguém é colocado à beira de um precipício se não for pular, é quase um equivalente à espingarda de outro Anton, este um escritor russo de sobrenome Tchekov. Surpreendente mesmo não é o ato de se atirar, não é a queda em si, cai como qualquer outro corpo de mesma superfície de atrito com o ar, desce em posição horizontal, como se dormisse em uma cama que não há, os braços abertos, as mãos espalmadas; surpreendente, sim, é esborrachar-se Anton José ao chão sem atingir qualquer pedestre que por ali passasse, e em seguida levantar-se como se nada tivesse acontecido, como se não fora mais que um tropeção numa irregularidade da calçada, espanar com as mãos o que de poeira lhe sujou a roupa, e seguir seu caminho por entre a multidão assombrada, pensando, isso não há quem o saiba se não o disser o narrador, ainda não foi dessa vez. E assim como não há quem lhe ouça os pensamentos, não há tampouco quem lhe veja as visões, no meio da aglomeração Anton José distinguiu um rosto que outras pessoas não enxergavam, felizes os que não o enxergam, a visagem os traumatizaria para sempre, a moça de tez lívida e órbitas profundas segurava com a mão a cabeça fragilmente presa ao pescoço por um delgado feixe muscular e, à sua maneira peculiar, o encarava triste e interrogativa, ainda não foi dessa vez, compartilhou o pensamento em voz alta para que ela o soubesse, ela sabia, ao longo dos anos já o ouvira tantas vezes dizer estas mesmas palavras, depois de se dar um tiro na têmpora, de mergulhar em alto-mar sem equipamento de salva-vidas, de se cortar as artérias do antebraço, de se intoxicar de monóxido de carbono trancado na garagem, de atear fogo ao colchão em que estava deitado, de segurar sem proteção aos cabos de alta tensão, de tomar três caixas de barbitúrico com bourbon, de se acidentar, onde estão as aspas quando delas se precisa para apontar que de acidente não teve nada, de se acidentar, pois, com um arpão de mergulho, toda vez que os sucessivos atentados contra sua vida falharam o espectro de Jane sempre aparecera a observar e ouvira, ainda não foi dessa vez, quando então será, creio eu que nunca.

A Anton José só restava voltar para casa, seria uma caminhada significativa, mas lhe apraziam longas distâncias, tinha muito em que pensar, o que fizera de errado e o que poderia fazer de diferente da próxima vez, e pouca pressa de chegar. Pensamentos, no entanto, não são fermento a que o tempo adicione ovos, farinha de trigo, chocolate, manteiga, leite e açúcar, e, mexidos, batidos, assados, transformem-se em um delicioso bolo; não, muito pelo contrário, é improvável que o tempo adicione ingredientes certos em proporções adequadas, mais provável que da receita advenha uma maçaroca intragável, difícil de ser digerida e assimilada. O devaneio alternava aleatoriamente três imagens de Jane: no momento em que a viu pela primeira vez e se apaixonou imediatamente, estava na escola e os colegas o tinham chamado para jogar futebol, ele recusara, não, obrigado, se mudar de ideia, estaremos no campo de baixo, estava concentrado na divisão de trabalho quase socialista de um grupo de saúvas ocupada em destrinchar pedaço a pedaço o cadáver de um besouro que, mesmo cortado em partes, três pares de patas, dois pares de asas, antenas, tórax e abdômen, se recusava a entrar no buraco do formigueiro, como esse cara é esquisito, diziam entredentes os meninos como se Anton José não fosse capaz de escutar, quando ouviu a doce voz às suas costas, o que você está fazendo, nada de mais, virou-se, levantou os olhos e percebeu a menina de cabelos cor de fogo e olhos cor de céu com a mochila às costas, tinha certeza de nunca a ter visto, você é nova por aqui, é meu primeiro dia, seja bem vinda, e se apresentaram um ao outro, eu sou Anton, muito prazer, eu sou Jane; dez anos depois, quando a viu com vida pela última vez, imediatamente antes do acidente, ao se deparar com o caminhão no sentido contrário, em um momento exalava uma felicidade esfuziante, e, no momento seguinte, uma mudez ensurdecedora, acorda, meu amor, teve tempo de dizer, antes de cair ele também em coma profundo, sem saber que o estado dela era mais profundo que o coma; e o fantasma de cabeça pênsil que lhe aparecia de quando em vez e cuja imagem estava fresca em sua memória, recém o tinha visto após a última tentativa frustrada de morrer. Outro pensamento a que podia se dedicar por horas era o porquê de sua faculdade, se já nascera incapaz de morrer, pouco provável, papai tratou do diabetes por uma década antes de o infarto fulminá-lo aos setenta e dois anos, mamãe se consumiu com as dores ósseas excruciantes provocadas pelas metástases do câncer de mama que a levou aos cinquenta, ninguém em sua família chegou perto dos cento e cinquenta, e, que se saiba, ninguém no mundo, ou se algum momento lhe fora impingida a maldição, tinha suas razões para crer na segunda opção, e achava que o tal algum momento estava de certa forma ligado ao acidente, se até aquele momento tivera o aspecto compatível com a idade, e, dali em diante, simplesmente parara de envelhecer, por que motivo, sabe-se lá, mas há de ter a ver com os achados bioquímicos que o médico não soube explicar durante sua internação.

É um caso raro, uma recuperação formidável, disse o doutor Herculano para a equipe e para os alunos reunidos ao redor do Leito Dois, as pupilas reagem, os quatro membros apresentam movimentos espontâneos e o rapaz só não fala porque os tubos ainda o impedem, o que o senhor pensa dessas feridas, professor, era uma aluna a lhe perguntar, a secreção está mais esverdeada, parece-me infectada, muito boa observação, é de fato bastante interessante o aspecto das feridas, nunca vi picadas de formiga tão extensas e profundas como as deste paciente. No dia seguinte, já sem os tubos, capaz de narrar por si só o que lhe tinha acontecido, Anton José se viu acusado de estar dirigindo embriagado no momento do acidente, como o senhor explica que o nível de álcool em seu sangue esteja mais de dez vezes acima do valor máximo, não explico, não sou médico, não sou bioquímico, mas lhe juro pela minha própria morte, não podia adivinhar quão irônica seria esta jura, lhe juro pela minha própria morte que não tinha bebido, não tenho como explicar de outra forma, redarguiu doutor Herculano, pois se vire, defendeu-o a mãe, que a tudo assistia sem muito lhes entender os jargões, não admito que chame meu filho de mentiroso. Tempos depois o médico se desculpou, é possível que o veneno das formigas ainda estivesse no sangue à hora da coleta, ele disse, e tenha alterado o resultado do teste. No fígado, o ácido fórmico sofre dupla redução, primeiramente a formol, em seguida a metanol, e, sob essa forma, pode ser confundido com etanol, álcool com um carbono e dois hidrogênios a mais, numa dosagem sanguínea pouco específica. Isso não existe, você diz, eu conheço fisiologia humana e sei que isso não existe, o narrador pode até concordar com a opinião do leitor, embasada por estudos em bioquímica básica, mas só lhe cabe que se lhes conte os fatos e os dizeres e os pensares, e foi realmente assim que os fatos aconteceram, e que se disse o que foi dito, e que se pensou o que foi pensado, ademais o leitor deve se questionar se o que é verdade para a população dos estudos também é verdade para Anton José, nunca se soube de outra pessoa que fosse imortal. Para dirimir qualquer dúvida, enfim, seis meses mais tarde, as feridas já cicatrizadas não podiam mais ser usadas como desculpa para o resultado, Anton José ofereceu o braço para nova coleta, e o inexplicável se repetiu, o laboratório acusou uma dosagem vinte vezes acima do suficiente para matar um ser humano, de ambos os álcoois, etanol e metanol. Daí em diante, voltava ao hospital uma vez por ano para colher exames e, em todas as vezes, o mesmo resultado, doutor Herculano tinha razão, o veneno da formiga agora fazia parte de seu organismo. Doze anos depois, o médico morreu em num acidente de automóvel, Anton José foi ao velório com seu rosto pós-adolescente, esse mesmo rosto com que o vemos caminhando para casa, e nunca mais procurou outro médico, imagina se contasse tudo por que passara, ninguém acreditaria.

Foram quase duas horas de caminhada até que chegasse à sua casa, cansado e desesperançoso. Anton José não recebia visitas há décadas, desde que perdera a mãe, o pai e raros amigos, quem mais apareceria assim sem avisar, quem contestaria a transformação arquitetônica que ao longo dos anos tinha conferido à casa o aspecto de lar, doce lar, e não apenas um dormitório, um lugar com a sua cara, feito pelo seu gosto, para as suas necessidades, suas e de mais ninguém, logo à entrada um longo corredor sinuoso com saídas laterais para diversas galerias, a terceira à esquerda era o escritório, e, encostado à parede, diante de uma estante repleta dos mais fantásticos livros escritos nos últimos séculos, o sofá, tudo que queria era sossegar e pensar em nada, como se fosse possível. Recostou-se, fechou os olhos e quis dormir, mas não conseguiu. O pior da solidão é estar acompanhado de si mesmo, o inconsciente integral como um rato a lhe roer as vísceras, a se fazer, ao mesmo tempo, de réu, júri e juiz, promotor e defensor em causa própria. E agora o tribunal inteiro se encontrava a portas fechadas enquanto a audiência aguardava o veredicto, seu rosto multiplicado em vinte, trinta rostos na galeria, torcendo cada um por resultados diversos, todos ansiosos pelo anúncio do magistrado, em minha defesa, foi um acidente, nenhum dolo pode ser demonstrado, e ainda que se comprove alguma culpa, o sofrimento do réu já se estendeu além das penas perpétuas mais prolongadas, enquanto por outro lado, como promotor, fez questão de mostrar ao júri o propósito no ato, não do acidente em si, mas de toda a relação entre o acusado e a vítima, baseada no conhecimento mútuo da fantástica condição de formiga, desde tão pouca idade, e, para confirmar minha posição, chamo para depor o Sr. Jonas, quando o senhor notou que seu filho não era normal, objeção, meritíssimo, em momento algum ficou estabelecida anormalidade de qualquer tipo em meu cliente, ora, que normal é completar cento e cinquenta e três anos com ares de vinte, Sr. Jonas, responda à pergunta, e, respondendo, era estranho quando o pequeno Anton José atraía centenas e centenas de formigas para seu berço como um líder agregador de multidões em discurso para uma platéia atenta, isso aconteceu algumas vezes antes dos três anos, muito nos assustando, a mim e à mãe dele, Teresa, que Deus a tenha, papai, papai, por quê, cala a boca, o juiz não autorizou que o réu se manifeste, por quê, pergunto eu, meu filho, por que nunca me avisou do meu diabetes descontrolado, eu tomava os remédios e acreditava, sim, estar me cuidando bem, até que o infarto me levou, e você, sabendo que minha glicose estava alta, o que fez, a próxima testemunha da acusação, por favor, Sra. Teresa, jura dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade, sim, o que a senhora sente pelo seu filho, amor, muito amor, mas sobretudo medo, conheço as pessoas, sei do que elas são capazes, mas Anton José é diferente, nem ele próprio conhece os seus limites, se é que os tem, e o que mais, senti-me abandonada na doença, quando meu único filho se recusou a me acompanhar nas sessões de quimioterapia, mãe, acredite em mim, eu não conseguia assistir àquele veneno lhe invadindo o sangue, quieto, ouviu novamente, e na qualidade de advogado de defesa tentou uma estratégia diferente, leitora de Garcia Marquez, pode-se dizer que a senhora estivesse habituada a um mundo de estranhezas, sim, ela respondeu, mas ler Macondo e viver Macondo no dia a dia são coisas inteiramente diferentes, chegava a vez do Dr. Herculano depor, o que ele haveria de ter contra mim, ora, este menino ingrato, meu paciente por dez anos, recusou-se consulta após consulta a autorizar a publicação do relato de caso, uma raridade médica que me tornaria histórico, capa da Nature, uma ruptura com o paradigma científico moderno, anotações prontas, com gráficos e figuras, revolução enterrada comigo após meu acidente de automóvel, gostaria agora de contar com o depoimento da Srta. Jane, vitima fatal do acidente pelo qual o Sr. Anton José está sendo julgado, até você, meu amor, Srta. Jane, poderia apontar um motivo para o acidente, para mim isso está claro, as formigas, enciumadas pelo meu relacionamento com Anton, acreditando estarem perdendo um aliado, uniram-se para dar fim a um poderoso concorrente, o amor, premissa falsa, se o Meritíssimo Juiz me permite, pois a natureza de Anton José sempre pertencerá a elas, não pude resistir a um exército tão numeroso, tão organizado como aquele, e paguei o preço de me meter no meio dessa aliança, decerto involuntária, bastante sui generis.

O tempo é um pas de deux infinito que nem Prokofiev ou Tchaikovsky teriam os culhões de compor, dois ponteiros, bailarinos tropeçando em 5/8, repetindo-se em looping vinte e quatro vezes por dia, e nesse balé sinistro não houve um só dia que Anton José não se julgasse, muitas vezes absolveu-se, outras tantas, a maioria, condenou-se por tudo que acontecera a todos que conhecera durante a vida. E, por isso, agora preferia viver só, sem novas amizades, sem novos relacionamentos, sem pessoas a quem acompanhasse o envelhecimento enquanto permanecia imutado. Abriu os olhos. Aos seus pés, sentada no sofá, estava Jane, o espectro pálido com a cabeça pendurada para trás, dessa vez não a segurava com a mão, como uma mochila de escola, como a mochila que usava às costas no dia em que se conheceram. De pé, o pai, a mãe, o médico, as múltiplas cópias de si que assistiam ao julgamento e torciam para resultados diversos, materializados em seu escritório, não para lhe fazer companhia, mas para prosseguir a inquisição, culpado pelo acidente, culpado pela morte da noiva, culpado pelo descontrole da doença do pai, culpado pelo abandono da mãe durante o tratamento do câncer, culpado pelo insucesso na carreira de seu médico, culpado, culpado, culpado.

Sentiu a temperatura subir. Era como se um vento quente invadisse a casa por sob a fresta da porta; não parecia, era exatamente isso. Um vento de cheiro estranho, corrosivo, ácido. Não se lembrava de já o ter sentido antes. Sua primeira reação foi de evitação, como eu faço para impedir que entre em casa, seguido, quando entendeu o que acontecia, por um misto de medo e alívio, é a desinsetização passando lá fora com sua pestilência, é a calefação trazendo o veneno para a santa paz do meu lar, é o nariz enchendo-me o sangue de DDT, é o inseticida apagando em série cada uma das suas células como as luzes depois da natal, é a consciência se perdendo, é a impressão de que finalmente estou morrendo, é a certeza ao rever Jane à minha frente, não mais como um fantasma, Jane, Jane, como você está, meu amor, como passou todo esse tempo, tantas novidades, tanto a te dizer, você acompanhou tudo que eu fiz para te reencontrar, me beija, minha pequena, é a morte me levando, não acredito, depois de algumas dezenas de tentativas de suicídio, consigo morrer sem precisar me matar, uma forma que eu tanto adiei, tanto temi por envolver essa química maldita, bendita, pois foi o que me trouxe a você, Jane do meu coração, senti saudade do seu sorriso, da sua pele de algodão, dos seus olhos por quem os céus se envergonhavam, de tão azuis, e também de coisas que só eu podia reparar, a covinha pouco acima do lábio superior que se abria em suas gargalhadas de cócegas, em como seus olhos se fechavam nessas horas, os seus arrepios de frio a qualquer temperatura, sempre querendo uma coberta, oh Jane, quanto tempo, chega mais perto.

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Onde estou?

Você quase morreu, meu jovem! Veio trazido para o CTI do Hospital São Patrício ontem à noite, e deve agradecer sua vida ao rapaz da empresa de desinsetização, que ouviu seus gritos e devaneios, e viu, ao entrar em sua casa aos pontapés, quando, entre uma e outra crise convulsiva, você perdeu a consciência.

Isso quer dizer que eu estou vivo?

Graças a Deus, meu filho. Fizemos tudo que pudemos para sua recuperação. Mas agora que acordou, responda a algumas perguntas, por favor: como podemos entrar em contato com sua família?

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