O Sítio do Vovô - CLTS 03

Eu era bem novo naquela época, mas mesmo assim ainda lembro que era um entardecer de sexta-feira quando cheguei no sítio do meu finado vovô. Depois de horas de viagem, eu já bem cansado só pensando em dormir na cama quentinha do quarto já arrumado para mim e assim só levantar no outro dia para começar a curtir minhas férias. Infelizmente, porém, não foi bem isso que aconteceu.

Na primeira madrugada, depois de ter jantado com o vovô, levantei assustado depois de ter escutado alguns ruídos estranhos pela casa. Mesmo com um pouco de medo, fui ver o que era, pois poderia ser o vovô precisando de ajuda e claro com o pensamento de aproveitar e beber água, já que a noite estava muito quente. Assim eu fiz: desci as escadas devagar silenciosamente para não fazer barulho. Quando cheguei na cozinha, tomei um tremendo susto e fiquei apavorado vendo, ao invés de um idoso sem sono, uma sombra aterrorizante com as mãos manchadas de sangue próxima à dispensa.

Eu nunca tinha visto algo assim na minha vida. Nem pensava que essas coisas existiam. De início pensei em sair correndo e gritando, logo depois, em ficar imóvel ou me mover lentamente sem fazer nenhum barulho, mas como o piso era de uma madeira bem velha, logo um rangido ecoou pela casa inteira, como se tivesse acabado de disparar com uma espingarda. Nesse instante, depois de fechar os olhos com o ranger do chão, quando levantei o rosto para olhar se a misteriosa sombra tinha sumido, meu avô apareceu descendo as escadas e sem perder tempo logo começou a me interrogar com um tom de preocupação:

- O que você faz acordado uma hora dessas? Já é muito tarde.

Tendo em vista que eu sabia que ele tinha alguns problemas de saúde e que o que eu tinha acabado de ver era algo surreal, decidi disfarçar meu medo, respondendo:

- Só levantei para beber um pouco de água.

- E está tudo bem por aqui? – perguntou com uma voz de desconfiança.

- Sim... É... – pestanejei.

- Está mentindo para o vovô? Isso é erado!

- Mas é que... não, deixa pra lá.

– Fala, menino, o que era? – ele perguntou preocupado.

- Nada não, vovô, é besteira da minha cabeça. Está tudo bem.

- Sei... Besteira – ele respondeu ainda com uma expressão desconfiada.

Para não incomodá-lo, nem para ele continuar com perguntas, eu cortei o assunto e disse:

- Vou indo dormir. Está tarde mesmo. Boa noite, vovô!

- Boa noite, meu filho. Deus te abençoe...

Confesso que naquela noite eu não dormi. Toda a vez que eu fechava os olhos a imagem daquela horripilante sombra aparecia na minha mente. Deixei uma vela acesa no quarto, mas evitava olhar para as sobras que ela fazia nas paredes e no chão. O copo que trouxe comigo logo secou, parece que o medo dá sede. A minha maior dúvida quando tentava dormir era se me cobria por completo com o lençol, como já fazia quando mais novo, ou se deixava pelo menos minha cabeça de fora para ver se alguma coisa se aproximava de mim. Essas dúvidas, o medo das sombras e a lembrança da estranha criatura sombria pairavam sobre minha mente até o raiar do sol.

Dei graças a Deus quando chegou a hora de me levantar. Era manhã de sábado. Logo desci para tomar café e me deparei com o vovô checando a dispensa como se tivesse procurando algo. Assim que me sentei, cumprimentei-o:

- A benção, vovô.

- Deus te abençoe, meu filho.

Curioso com o fato dele estar mexendo na dispensa, exatamente no local onde eu vi a sinistra sombra, eu perguntei como quem não quer nada:

- Vovô, o senhor já viu algo de estranho nessa casa?

Ele fez uma expressão curiosa, virando-se em minha direção e disse:

- Mas que pergunta é essa, menino? – ele perguntou com uma expressão de surpresa.

Eu, tentando disfarçar, respondi:

- Só queria saber mesmo se o senhor já viu algo estranho por aqui. Essa casa é tão grande e sombria à noite que faz é dar medo.

Ele se distanciou da dispensa e puxou sua cadeira para perto de mim e confessou:

- Para falar a verdade já vi coisas que não são nada normais desde que sua vó nos deixou.

- Como assim?

- Prefiro não comentar.

- Por favor, vovô, conta! – insisti.

Depois de um suspiro ele me fez uma proposta:

- Tudo bem. Eu vou contar, mas só depois que você terminar de tomar seu café e me ajudar na horta.

Eu aceitei a proposta e não insisti mais, já que isso poderia deixá-lo chateado ou mesmo triste por lembrar da vovó. Passamos o dia na horta. Foi um dos dias mais alegres da minha vida. De dia andei a cavalo e depois o vovô passou o dia brincando comigo, contando histórias engraçadas, confessando as travessuras que papai fazia quando tinha minha idade e muitas outras coisas. Como aquele dia foi feliz! Todo o medo da noite anterior parecia ter sumido da minha memória, esquecido pela alegria.

Logo pelo final da tarde terminamos os serviços na horta. Voltamos para casa rindo das histórias e brincadeiras do dia. E foi então quando eu ia subir para tomar um banho e me preparar para o jantar, meu vô, já com uma cara fechada e voz chorosa, me chamou e, sentando em sua cadeira de madeira, segurando um livro de capa preta, começou a falar:

- Lucas, eu preciso falar com você, pois está quase na minha hora.

Eu, pensando que ele se referia ao horário de dormir, disse:

- São 05:50 da tarde, vovô.

Ele olhou para mim com uma cara de quem tinha enxergado inocência no que tinha ouvido e me disse:

- Não, meu filho, não é isso... infelizmente não é isso.

- Então me conta o que é, vovô?

Ele fechou o rosto, olhou no fundo dos meus olhos e disse:

- Acho que já está na hora de você saber sobre o mal que aterroriza nossa família a gerações!

Imediatamente eu fiz uma cara de surpresa e questionei:

- Mal? Como assim? Maldição?

- Exatamente, meu filho.

- Do que o senhor está falando, vovô?

Ele abriu o livro e acariciando uma foto que nele tinha me respondeu com um olhar perdido:

- Eu sei o que você viu ontem.

Surpreendi-me com a revelação. Eu fiquei sem reação no momento e então ele continuou:

- Foi a sombra, não foi?

Balançando a cabeça positivamente eu perguntei:

- Como o senhor sabe da sombra?

- Aquilo não é uma sombra qualquer. O que você viu foi a maldição dessa família!

Notando sua expressão séria e pesada, eu disse:

- Maldição? Vô, eu estou começando a ficar com medo do que o senhor está falando!

- Eu entendo, mas é preciso que você saiba a verdade, na verdade, que saiba que aquilo que você viu era verdade, e não coisa da sua cabeça.

- O que aquela sombra queria, vovô?

Ele, depois de alguns segundos, olhou-me nos olhos com um olhar penoso e disse:

- Meu filho, não gostaria de dizer isso, mas muito menos mentir. Aquela sombra veio te pegar. É você que ela quer!

Após meu vô falar aquilo comecei a sentir calafrios. Imediatamente meus olhos lacrimejaram. Que criança não surtaria ao ouvir isso de seu próprio avô? O medo tomou conta do meu corpo e foi então que vi ele pegar uma faca. Naquele dia, naquela hora, eu vivi o pior dia da minha vida, vendo algo mais traumatizante do que a sombra que eu tinha visto na noite anterior.

Era exatamente seis horas da noite, quando o vovô, tirou a foto do livro, beijou-a – daí notei que era a foto da vovó – levantou-se, me beijou e se virou dizendo:

- Sinto muito, meu filho, pelo o que você vai ver.

Nesse instante ele sacou seu punhal que usava para trabalhar na horta e então cortou os próprios pulsos, vindo em seguida a agonizar. Eu não tive reação alguma. Tudo foi tão rápido. Só gritei quando vi ele cair no chão.

Corri para perto dele. Ainda lembro de seu olhar repleto de lágrimas e suas últimas palavras:

- É preciso, meu filho. Uma vida por outra.

Vendo inda sair sangue de seus pulsos, corri para pegar alguns panos para estancar o sangue, mas logo quando me levantei, vi aquele vulto maligno aparecer diante de meus olhos e passar por mim devagar e sinistro, indo em direção ao meu vô. Ao ver tal imagem de horripilante gritei:

- Vô!

Eu, já de joelhos chorando de desespero, após aquele meu berro de medo e pena, vi a maldita sombra cobrir meu vovô por completo e quando desceu ao solo, creio, levou a alma dele, deixando apenas seu corpo velho e frio.

Isso é o que me lembro. E foi assim, Pedro, que seu bisavô, o meu querido vovô, morreu.

- Pai! Pai! – grita a pequena Julia, descendo as escadas depois de ouvir escondida a história

- Por que essa pressa para descer as escadas, menina? Por que está chorando?!

- Papai, tem uma sombra no meu quarto!

TEMA: MALDIÇÕES