As crianças perdidas

Sofria de insônia há alguns anos. Terapias e tentativas diversas nunca funcionaram(acupuntura,meditação,oração, reza, TCC, psicanálise etc) . Em relação aos remédios, seguravam-me, no máximo, duas horas na cama, mesmo tomando o triplo do recomendado pelos médicos. Passei por vários, que sempre me diagnosticaram com um problema diferente. E, cada um deles, prescreviam um amontoado de pílulas. Tomava aos montes, estava viciada, especialmente num verdadeiro coquetel de benzodiazepínicos, que sempre estavam ao lado da minha cama. Não me faziam dormir, mas me acalmavam quando eu estava com raiva ou chateada com algo ou alguém. Apelei até para as mais bizarras alternativas. Cheguei a sacrificar animais a pedido de um pai de santo. De nada adiantou. Fui a uma praticante de vodun, que havia fugido da crise haitiana após aquele terrível terremoto do ano passado e vindo morar em nosso país. Era de uma tradicional família abastada de lá. Dinheiro e tempo perdidos. Nada me fazia dormir.

O motivo para a insônia que os especialistas, religiosos e curandeiros alegavam, variava de acordo com a especialidade e a crença deles: Os psiquiatras diziam que eu sofria de um distúrbio hormonal na produção de melatonina(hormônio necessário para o sono). Resultado de um defeito congênito na glândula Pineal(má formação) que a impedia de produzir o hormônio na quantidade e qualidade necessárias para as minhas necessidades. Os religiosos, em geral, incluindo curandeiros, padres, pastores, umbandistas e espíritas estavam de acordo: era um problema espiritual. Havia forças sobrenaturais atuando sobre mim e causando a insônia.

Certa noite, acordei com se ouvisse gritos de crianças. Fui ao banheiro, então tive novamente a impressão de que crianças brincavam pelo terreno da fazenda. Dei uma espiada por todos os lados da casa e seus arredores. Não havia ninguém. Acordei meu irmão:

- Carlinhos, Carlinhos, acorda:

- O que é dessa vez, Naninha? viu o Boitatá ou o Saci?

- É sério, Carlinhos.

- Pois diz logo, porque diferente de você, tenho a obrigação de dormir. Papai e eu temos que sair cedo para fecharmos um contrato para a venda de nossas uvas. Os preços subiram e quero dinheiro, e muito. Afinal, quem vai sustentá-la? sua aposentadoria mirrada não vale os presentes que vc distribui aos seus amantes, uma vez ao ano, quando aparecem por aqui.

- Acho que há crianças pela casa. Eu as ouvi. Elas estavam correndo e rindo. Conversavam também.

- Naninha, vá para a cidade. Termine os estudos e arranje um namorado , ou um macho qualquer pra te comer. Ou quem sabe uma mulher. Os tempos mudaram. Agora me faça um favor: saia do meu quarto e me deixe dormir.

Enquanto todos dormiam, eu perambulava pela casa, não parava de ouvir passos e vozes de crianças. Percebi de onde vinham os sons, os passos e as gargalhadas. Abaixo-me lentamente e saio rastejando até uma das janelas. Preparo a câmera do celular. Elevo-me subitamente, avisto as crianças e bato várias fotos. As crianças estão entrando na plantação de Uvas. Uma delas arranca vários cachos. Pelam praticamente as videiras da frente da casa.

Eu encaro uma delas e ela retribui com uma sorriso. Depois corre para dentro das videiras. Enfim, achava que havia registrado as crianças

- São crianças de verdade. Meu Deus! Carlinhos tem que ver isso.

- Carlinhos! Carlinhos!

- O que é Naninha? Jesus Cristo, me deixa dormir. Vai encher o saco da mãe ou do seu primo retardado. Preciso dormir, mulher.

- Agora é sério. Tirei fotos de crianças, elas estão nas videiras. Brincando.

- Espera que vou abrir a porta.

- Entra, diz Carlinhos.

- Olha, Carlinhos, aqui estão as fotos. Agora me diga se estou louca.

- Cadê as crianças? não vejo ninguém.

- Você além de burro e feio, é cego também? não está vendo esse garotinho de chapéu de vaqueiro? e essa garotinha com roupa de cigana?

- Saia do meu quarto, agora. Sua maluca. Aliás, vou acordar a mãe e falar com ela.

Carlinhos, dirige-se ao quarto dos nossos pais,furioso e mal humorado. Bate na porta a ponto de derrubá-la.

- O que é Carlinhos? o que aconteceu, diz sua mãe assustada.

- Dê um jeito na sua filha, agora. Além de passar todas as noites fazendo barulho pela casa, atrapalhando nosso sono, agora fica vendo coisas. Tô até com medo dessa doida.

- Feche sua porta, e não dê atenção a ela. Me deixe em paz também, diz a mãe deles.

- O que Carlinhos queria, Maria? pergunta o esposo

- Veio reclamar da Naninha. Diz que agora ela anda pela casa vendo coisas.

- Não bastasse passar as noites acordadas, agora está tendo visões. Mais um problema, mais dinheiro com consultas e remédios, diz o patriarca da família.

- Pois é, conversaremos sobre isso amanhã.

- Mas agora quero conversar com você sobre outra coisa.

- Nem venha. Estou com dor de cabeça e indisposta. Vá dormir

Depois de todo o alvoroço que meu irmão provocou, resolvi ser mais reservada. Não iria incomodar mais ninguém, nem minha mãe, que geralmente era mais paciente e compreensiva que todos(as) da família. Resolvi me refrescar fora da casa.

Sentei-me na cadeira de balanço na varanda. Preparei um cafezinho e um cigarro de Marijuana. Aqui em casa, e nas fazendas vizinhas, o uso dessa planta é disseminado, para os mais variados fins. Todos fumam, sobretudo como tranquilizante natural. Minha mãe também faz chá com suas folhas. A plantação é ilegal, mas tínhamos variadas espécies de Cannabis entre as videiras. Não gostava muito, mas me tranquilizava. Tinha um efeito semelhante ao meu coquetel de benzodiazepínicos.

Enquanto me refrescava ao sabor do café e da Cannabis, as crianças voltaram. Eu as observava de longe. Elas brincavam. Escondiam-se. Acenaram para mim e entraram na plantação de uvas. Eu resolvi segui-las. Entrei no labirinto das videiras. O campo de plantação era gigantesco. Tinha quilômetros.

Estava no labirinto, as crianças apareceram. Pareciam querer brincar. Peguei na mão do garoto e da garota e saí pelo mato, cantando e me divertindo com elas, até o dia raiar.

- Bom dia, Pedrinho!

- Bom dia, mãe!

- Cadê sua irmã?

- Não sei. Ela me acordou duas vezes de madrugada.Meu pai ainda está dormindo?

- Não.Está se arrumando para sair com você.

- Vá la fora e chame-a aqui?

- quem?

- A Naninha, Carlos. Quero conversar com ela.

Carlos vasculha o terreno da casa. Grita por Ana. Ela não responde. Ele observa suas pegadas em direção às videiras. Ele entra, chama por ela, mas ninguém responde. Ele entra mais a fundo nas plantações. De repente ouve vozes de crianças também. Elas riem.

- Será que a Naninha tem razão? parece que tem crianças por aqui.

Ele tenta saber o local que origina os sons. Vai em direção a eles. Lentamente, sem fazer barulho, observa uma cena estranha. Era sua irmã sozinha, cantando e rodando em meio às videiras. Mas ele continua intrigado com as vozes de crianças que continua escutar. Ele observa os lábios de Ana. Percebe que as vozes infantis são falsetes. São criações de sua irmã. Furioso, ele a pega pelos braços e a leva:

- Vamos, Naninha. Minha paciência se esgotou. A mãe quer falar com você.

- Espere, não deixe as crianças sozinhas, elas podem se perder.

Carlos leva Ana até a cozinha, onde todos estavam rezando.

- Ana chegou, mãe? gostaria de saber onde ela estava e o que estava fazendo?

- Que insolência, Carlos! interromper nossa sagrada oração matinal sem necessidade, diz o patriarca

- Desculpa, pai.

- Agora diga, onde diabos estava Ana e o que fazia? estava transando com algum dos agricultores, como é de costume?

- Não era isso não. Diga você mesmo, Naninha!

- Eu estava a brincar com um casal de meninos lá dentro das videiras.

- Você desse tamanho, Aninha, brincando com crianças em plantações? pergunta seu primo.

- Sim, não tinha nada a fazer. Eu as vi brincando e resolvi fazer companhia a elas.

- Isso é verdade, Carlos? pergunta a mãe.

- Que nada. A louca estava sozinha cantando e rodando no meio do mato, e com um agravante: a maluca imita vozes de crianças. Fala com ela mesma achando que conversa com crianças.

- Seu caso está sério, querida, diz seu pai.

- Vamos, Ana, imita aí a voz de uma criança! insinua Carlos

- Eu não estava imitando nada. Você que inventou isso!

- Estamos sem tempo, Carlos! vamos sair agora. Deixe sua irmã em paz. Deixe-a brincar com quem quiser, e imitar o que bem entender, desde que não traga prejuízos. Melhor brincar com crianças do que com adultos, porque estas últimas brincadeiras tem me rendido uma terrível dor de cabeça e uma grana preta. Esqueceu os abortos a que fui obrigado a arcar?

- Talvez se ela não abortasse os filhos, tudo melhoraria. Era teria ao menos o que fazer, disse a mãe.

- jamais! disse o pai esmurrando a mesa.

- Filha minha não tem filhos bastardos, não tem filhos em pai.

- Os garotos da cidade vem para os festejos e transam com essas idiotas. E os pais dessas irresponsáveis que arcam com o prejuízo.

- De saco cheio dessa conversa de sempre. Vamos embora, pai.

- Eu também, meu filho. Vamos sim, porque alguém precisa ganhar dinheiro para sustentar essa palhaçada toda.

- Vão, e demorem bastante, disse Ana, furiosa.

- O que é isso, minha filha? são seu pai e seu irmão.

- Eu sei, mãe. Eles me tiram do sério.

- E vc acha que não os tira do sério também?

- Só não me mudo para a cidade porque não gosto do estilo de vida urbano. Me acostumei com a tranquilidade daqui, diz Ana.

- Uma viagem poderia fazer um grande bem a você, meu amor.

- Vou pensar no assunto.

- Mas antes disso vou chamar o Dr. Wolff, para uma nova consulta.

- Aquele médico nazista nojento?

- Sim, ele mesmo. A preferência políitica dele não nos interessa. O que importa é sua competência como psiquiatra.

- A senhora quem sabe.

Tinha trinta e três anos quando as crianças surgiram na minha vida. No começo, apareciam apenas à noite. Mas aos poucos a presença delas foi se estendendo por todo o dia. Às vezes, quando acordava no meio da noite, elas estavam juntas a mim. Eu me levantava e as cobria como uma boa mãe deveria fazer. Bebiam café e conversavam comigo. Elas até me pediam para fumar. Mas não deixei, é claro. Um dia perguntei a elas:

- Por que só eu as vejo ?

- Nós também só vemos a senhora. Quem mora mais aqui?

- Meu pai, minha mãe, meu irmão e mais dois primos. E mais à frente na fazenda, depois do cercado, fica a moradia temporária dos agricultores. Eles ajudam a família na colheita. Depois voltam para suas casas.

- Não, nós não vemos ninguém. E naquela casa lá fora só vemos um homem. O que se veste igual ao meu irmão. Ele também conversa com a gente. Por que isso acontece?

- Não sei, minha querida.

- Deixa eu olhar bem para você, garoto. A roupa é igualzinha a dele. Ele se veste sempre assim mesmo. Que estranho!

- Vocês moram onde, crianças?

- Nós moramos entres as videiras. Crescemos com elas. Tem mais crianças lá. Muitas. Você não as vê?

- Não. Só vejo vocês.

- E quem são seus pais, meninos ?

- O chão é nosso pai e uma das videiras nossa mãe. Quer conhecer nossos pais, Naninha?

- Não, queridos, por enquanto não.

Era domingo à tarde. O pessoal estava no campo trabalhando, fazendo a colheita das uvas. A família estava reunida como de costume. E tínhamos uma visita: nossa prima Raquel. Era uma jovem inteligente e bastante divertida. Fazia residência médica em psiquiatria na Capital. Todos os meses nos visitava. Era a irmã dos dois primos que residiam conosco. Mas estava claro que sua visita tinha um propósito exclusivo: analisar meu caso a pedido dos meus familiares. Quando todos estavam à mesa, Carlos falou em tom de ironia:

- Raquel, você já se formou?

- Sim, Carlos. Estou fazendo residência médica agora.

- Vai ser médica dos doidos, não é?

- Não é bem assim, Carlos.

- Pois minha irmã está completamente louca.

- Cale a boca, Carlos!

- Não tia, deixe-o prosseguir. Não tenho tempo de sair espalhando a vida particular de ninguém. Meu tempo é curto, é quase todo dedicado à Universidade.

- A Naninha acha que cuida de duas crianças que nasceram nas videiras. Vê se pode isso! Tá louca de pedra.

Todos riram, inclusive nossa prima, que tentou até se segurar. Mas não deu.

- Mas é verdade. Eu vejo como se estivesse vendo a todos aqui.

- Verdade, prima?

- Sim.

- E melhorou daquela sua insônia?

- Não, continuo sem dormir, mesmo tomando o coquetel de medicações.

- Estou preocupada, prima. Conheço casos parecidos com o seu. Temos que cuidar disso antes que se agrave. Antes só não dormia, agora vê crianças. Isso pode progredir.

- Mais tarde quero conversar com você sobre tudo.Quem sabe posso ajudar.

- Ótima ideia, Raquel. Ana precisa de uma companhia feminina e de desabafar um pouco. Você ajudaria e muito se dormisse essa noite conosco.

- Eu ficarei, tia, não se preocupe.

- Vocês mulheres que se entendam, disse o patriarca, saindo com os outros para fiscalizar a colheita das uvas.

Já era tarde da noite. Umas 23h, talvez. Não sei precisar. Eu estava na sala assistindo a um filme com meus primos quando Raquel chegou acompanhada de uma jovem, vestida de branco e com uma bíblia na mão.Era uma médium espirita, muito conhecida pelos fazendeiros locais.

- Ana, preciso que venha até a varanda para conversarmos.

- Não pode esperar até o fim do filme? venham, podem ficar à vontade, vejam como é interessante.

- A médium não tem tempo. Precisa falar agora com você.

- Esperem uns dez minutinhos. Daqui a pouco chego à varanda.

Passaram duas horas e nada de Ana aparecer.

Carlos passa pela sala e vê os primos e a irmã vendo TV e pergunta:

- Que filme é este?

- Diário de uma paixão, diz um dos primos

- Filme de maricas. Um lixo, diz Carlos, de mal humor e com a cara cansada.

- Vocês dois não tem vergonha de assistirem a um filme tão idiota? a propósito Senhorita Ana, há duas pessoas que estão a um tempão na varanda esperando alguém. Receio que seja você. Estou certo?

- Meu deus, acabei esquecendo.

Ana levanta-se desesperada e vai à varanda da casa.

- Me desculpe, pessoal. Eu me esqueci completamente de vocês.

- Não tem problemas, Ana, a médium cancelou o compromisso que tinha para dar toda atenção a você. Agora vou dormir! boa sorte para as duas.

- Olá , Ana, Lembra-se de mim?

- Como poderia esquecer?

- Pois vamos direto aos fatos, meu anjo. Sabe o que está ocorrendo com você?

- Tenho insônia e estou, segundo os médicos, tendo alucinações.

- Nada disso.

- Você foi abençoada por Deus e pela natureza.

- Não me diga, é? e por quê?

- Porque mesmo tendo abortado seus filhos, eles cresceram e estão próximos a você.

- Como sabe disso?

- Raquel me contou tudo.

- E como sabe que são meus filhos?

- Pela descrição que me deram deles.

- Continuo sem entender.

- Vou lhe explicar um pouco sobre o mundo espiritual. Todos nós possuímos um alma antes mesmo de nascer. O corpo é apenas um receptor descartável. Vagamos por mundos e vidas num processo evolutivo. É a lei do progresso. Reencarnamos incessantemente. Mas há alguns espíritos que relutam contra esse inevitável processo. Querem permanecer vagando pela Terra ou no planeta onde desencarnaram.

- E onde entram as crianças nisso?

- Eu me lembro que Raquel me disse que as crianças afirmam terem nascido da terra e que a mãe seria era uma das videiras. Estou certa?

- Sim. Elas dizem isso mesmo. E dizem que só vê a mim e a um dos homens que trabalham na colheita?

- Agora quero que responda, Ana, sem mentiras. Você teve um caso com esse homem?

- Não só tive um caso como abortei duas vezes.

- E hoje, como é a relação entre vocês?

- Não nos falamos. Meu pai quase me mata e o ameaçou também. Mas durante a colheita anual ele sempre vem aqui trabalhar.

- E o garotinho é cara dele, não é?

- Sim, e se veste do mesmo jeito que ele.

- Ana, não se faça de desentendida. Você sabe que essas crianças são seus filhos.

- Mas como pode? eles só tinham dois meses quando os abortei.

- Ana, os fetos foram enterrados vivos. E eles captaram a energia dessas videiras e desse solo. Cresceram e estão vivos. É um raro processo de materialização. Eles são uma forma especial de vida. Estão na fronteira dos dois mundos. E nessas circunstâncias, só quem possui uma ligação direta sanguinea podem senti-los ou vê-los. Ou seja, seus pais. Você e o agricultor. Por isso as crianças veem os dois, ninguém mais. Nem eu, uma médium experiente, posso vê-los. Nem eles a mim.

- Queria ao menos uma prova do que diz.

- Mas não está óbvio. Não faz sentido para você?

- Pode até fazer, mas não me convence.

- Pois vou lhe dar uma prova definitiva. Sabe onde os fetos estão enterrados?

- Sim. Duzentos metros depois da primeira videira. A do meio.

- Quer ir até lá para eu lhe mostrar algo?

- O que é?

- Quando chegarmos lhe direi.

- Chegamos. O que tem aqui?

- Os seus fetos enterrados.

- E daí?

- Desenterre-os. Eles estão protegidos num vaso de vidro com álcool. Terá uma surpresa quando vê-los. Não arranque a videira. Vai matá-los.

- Minha nossa, o vidro está quebrado e não há nada aqui. Onde estão meus filhos?

- Eles não estão mais nos recipientes. Quando os enterraram, seus espíritos capitaram a energia da terra e da videira, que os alimentava. Os fetos cresceram numa forma material diferente. Uma espécie de corpo espiritualizado. Olhe a videira. As uvas carregam a semelhança de rostos. E ela não tem a vitalidade como as demais. Ela passou todos esses anos alimentando as crianças. Está quase perecendo. Quando ela morrer, as crianças terão de voltar ao mundo espiritual para reencarnarem, talvez aqui, ou em outro lugar, ou mesmo em outro planeta. Não sabemos. Um dia, elas irão embora para sempre. E nunca mais as verá.

- Agora eu acredito. São meus filhinhos de verdade. E a garota é minha cara.

- E o que eu faço, feiticeira?

- Não sou feiticeira, Ana. Sou médium.

- Desculpe.

- Cuide dessas crianças até o destino as levarem. E se case com o pai delas. Você ainda gosta dele, não é?

- Sim, mas meu pai jamais admitiria eu me casar com um agricultor.

- Converse com ele que tudo estará resolvido. Eu vejo um futuro glorioso para vocês.

A médium me deu um ar de esperança. Havia algo de racional acontecendo, então eu não estava louca. Saí satisfeita com as explicações e sugestões dela.

Enquanto a médium saía da fazenda, o patriarca a interpelou:.

-Venha cá, Bruxa de quinta, charlatã.

- O que quer, seu Jeca de terceira?

- Fez o trabalho direitinho com minha filha?

- Fiz de acordo com o combinado..

- Então pegue o seu dinheiro.

- Obrigado, seu brutamontes. Soque seu dinheiro onde bem entender. Não preciso dele. Vá pro inferno, seu hipócrita.

Amanheceu na fazenda. Os galos dão seu ar da graça.

-Bom dia, Ana. Conseguiu dormir?

- Não. Passei a noite pensando em como vou fazer o quarto das crianças?

- O quarto das crianças? pergunta Carlinhos, espantado.

- Sim, não sabia que as crianças que me acompanham são meus filhos? os que eu abortei por imposição de meu pai?

- Carlos se levanta às gargalhadas, e vai para o quarto. A mãe o segue.

- Carlinhos, o que combinamos?

- Mãe, juro que não se repetirá. Mas não me contive. É hilário, no mínimo. Por isso saí.

- Espero que isso não se repita.

A mãe volta ao lanche matinal.

- Tenho algo a dizer a todos: vou morar aqui com o Joel. O pai dos meus filhos

- Por mim tudo bem, minha filha. O problema é seu pai. Ele quem manda.

- Por mim, pode se casar até com um jumento e dizer que é seu marido. Já passou dos trinta anos. Depois dessa idade, para uma mulher que não é mais virgem, qualquer coisa serve, até o Joel.

- Obrigado pelas palavras de incentivo, papai.

- Hoje mesmo arrumo os quartos das crianças. Já chamei os decoradores, disse a mãe de Ana.

Joel veio morar na casa comigo. Senti um alívio. As gozações na família cessaram. Durante os seis meses posteriores, as aparições das crianças se tornaram mais raras. E a cada dia, elas apareciam menos. Eu engravidei novamente. E dessa vez não abortei dessa vez. As crianças sumiram. Não as vi mais. Voltei a dormir normalmente. O relacionamento com Joel durou dois anos. Conheci outro rapaz e deixei Joel. Case-me de verdade, na Igreja, como os meus pais desejavam. Enfim, depois de anos, voltei a ter uma vida tranquila e normal. Tomando café e fumando marijuana todas as noites.