O orfanato dos espíritos

O jovem passava todas as noites pela mesma rua, mesmo horário, de bicicleta e trajando uma jaqueta de couro, que o protegia da poeira e da chuva. Nas suas constantes passagens noturnas pela rua, despertou o interesse e a curiosidade de uma senhora solitária, que morava num velho prédio. O marido faleceu há 12 anos, vítima de um câncer no pulmão. Fumava ópio de forma compulsiva, fato que o levou a desenvolver um câncer avassalador. Viciou-se quando visitou um bordel próximo a um bairro chinês. A prostituta o induziu à dependência. Na euforia da bebida e do sexo, ela sempre oferecia ópio a ele. Foi uma experiência incrível. Aquilo lhe deu a tranquilidade e a virilidade que nunca experimentou na vida. No quarto dia, ele pede a droga e o cachimbo para fumar. A prostituta responde que drogas no bordel são oferecidas apenas nos três primeiros dias, como boas vindas. A partir de então, teria de pagar por elas, se quisesse.

Além de gastar com bebida, cigarro e o programa, teria que arcar também com o consumo do ópio. Abandonou o bordel e estreitou relações com o fornecedor da droga no bairro. Nada mais o interessava. Passou três meses fumando compulsivamente até que teve uma parada respiratória. Foi levado ao hospital, onde diagnosticaram o câncer. Além disso, o ópio que fumava continha um ingrediente altamente cancerígeno. Na internação, constataram que a causa do súbito aparecimento do câncer foi devido a essa substância, usada por traficantes para ludibriar os usuários.

A velha assistiu a tudo passivamente. Já sofria com o alcoolismo de seu esposo há anos. O vício do ópio não fez diferença. Já tinha desistido. A morte era uma questão de tempo. Os filhos nem apareceram no funeral. já que estavam estudando fora do país e só apareciam no Natal.

Vivia de sua aposentadoria. E passava o dia vendo TV e trocando conversa com suas vizinhas, a maioria com o mesmo perfil: solitárias e idosas. Havia algumas crianças estranhas pelos corredores do prédio. À noite, gostava de sentar-se à janela de seu apartamento e observar o movimento da rua. Nada de interessante acontecia. Aqui e acolá um garoto correndo da polícia, ou pichando muros. Mas algo chamava sua atenção: um jovem de bicicleta passava todos os dias pela rua, sempre no mesmo horário, com os mesmos movimentos. Parecia seguir um padrão. A idosa especulava sobre a vida do rapaz e tentava a todo custo reconhecer seu rosto. Certo dia ela desce e espera o jovem passar. Vai tentar conversar com ele. O jovem, coincidentemente, não aparece. Ela espera a madrugada inteira. Nada acontece na rua. No dia seguinte, ela o vê. Grita por ele. O jovem segue normalmente, não a ouve.

Isso se repetiu por alguns dias. Ela o chama. O jovem não responde. Ela decide descer novamente. Mas ele não aparece. Ninguém passa pela rua.

Chovia. Trovejava. A vontade de ficar em casa era imensa naquela noite. Além de tudo, era a final do campeonato de futebol, seu esporte favorito. Mas ele quer a promoção no trabalho a todo custo. Não pode faltar nem se atrasar. Dois de seus superiores morreram e um foi demitido. Há três vagas e cinco pessoas no páreo. Ele é uma delas. A relação dos promovidos sairia dentro de um mês.

Ele veste a jaqueta e o capuz de couro. Monta na bicicleta e parte para o escritório da empresa. São sete quarteirões de sua casa à empresa. Faz alguns atalhos, dentre eles a de uma rua abandonada, com casas e prédios interditados. Para ele, ninguém morava naqueles escombros, cercados de lixo. Tinha medo de passar por lá. Mas era o atalho mais rápido. Não olhava nem para os lados tamanha a pressa e medo.

- Que curioso. Essa rua é um breu total. Mas aquele apartamento está sempre com a luz ligada. Devem ser viciados ou ladrões. Tenho que tomar cuidado. Mas por que só aquele escritório? tantos apartamentos, tantas casas. E não nunca vi movimento nenhum nesta rua. Melhor não encucar, pondera o jovem.

Prossegue sua jornada com mais pressa. Cai da bicicleta mais à frente, em meio à chuva e à escuridão. Não se machuca. A corrente arrebenta. Agora teria de ir andando. Ele vê ratos e cobras escondendo-se da chuva. Roedores e guaxinins, cães sarnentos e gatos esfomeados. Para ele, os únicos residentes daquela decadente rua.

No caminho, enquanto empurra sua bicicleta, escuta uma eco, uma voz meio que distante: "filho, o lanche está na mesa, levante-se". Ele olha para trás, nada vê. Um guaxinim o encara. E bem à frente ainda avista o prédio com a luz acesa. Pensa em correr, mas logo desiste da ideia.

- O que foi isso? deve ter sido o som da chuva com o ruído dessa bicharada toda. Mas me pareceu tão clara essa voz. Deixa pra lá. Melhor me apressar antes que eu me atrase.

João chega à empresa pontualmente. Tira a jaqueta e o capuz. Já está com o uniforme da empresa. Seu chefe o cumprimenta. Ele corresponde.

- Parece pálido e assustado, João?

- Com esses trovões e relâmpagos, quem não ficaria?

- Mas nunca o vi assim antes.

- Sabe chefe, é aquela rua interditada. Acredita que a corrente da bicicleta arrebentou mesmo ali? fiquei apavorado. Tive que andar metade da rua empurrando a bicicleta.

- Não se preocupe. Bandidos não acostumam atacar ninguém em tempos de chuva. Gostam de vida boa. Hoje em dia, segundo o delegado da área, todos os assaltos ocorrem durante o dia. Poucos à noite. E nenhum à madrugada. E nessa rua que você costuma passar, há anos não há ocorrência. Nada acontece por lá

- Sabe se alguém ainda mora por lá?

- Só os ratos. Impossível ter alguém por lá. A área foi evacuada faz tempo. E os moradores clandestinos todos retirados. A polícia faz vistoria todos os dias à procura de foragidos.

-Quando passo por lá sempre tem um apartamento com a luz ligada. O mesmo, todos os dias.

- Passo todos os dias ali também. E, como sou curioso, olho para tudo. Não vejo nada aceso.

- Talvez acendam tarde da noite.

- Pode ser.

Continua depois...