No osso
A Sra. G. havia marcado consulta comigo para que atendesse sua filha, N., uma garota bonita, de 16 anos, mas com aquela magreza translúcida e doentia de quem sofria de algum distúrbio alimentar. N. ficou ouvindo em silêncio, enquanto a mãe falava sobre as razões que a haviam feito procurar atendimento.
- Minha filha tem perdido peso de forma contínua nos últimos meses. Ela começou diminuindo as porções de comida nas refeições, depois passou para dietas líquidas, e nas últimas semanas, parece que está jejuando. Bebe apenas água!
A Sra. G. estava compreensivelmente alarmada.
- Isso procede, N.? - Indaguei.
N. me encarou, sem animosidade, mas também sem qualquer simpatia.
- Minha mãe está assustada à toa. Eu descobri que fazer jejum intermitente pode melhorar o metabolismo, apenas isso. Estou me sentindo muito mais alerta depois que comecei essa prática - defendeu-se ela.
- Jejum intermitente pode, de fato, trazer mudanças positivas ao metabolismo. Mas não deve ser utilizado por pessoas com distúrbios alimentares, muito menos sem orientação médica.
- Eu não tenho nenhum distúrbio alimentar - retrucou ela. - Nem estou preocupada com minha imagem corporal, se é isso o que vai dizer. Quero apenas melhorar meu metabolismo, ter mais capacidade de concentração.
O discurso fazia sentido, eu tinha que admitir. Isto é, se eu não estivesse olhando diretamente para ela e vendo uma vítima de anorexia bem na minha frente. Não, não havia nenhuma possibilidade de que fosse apenas aquilo que ela estava dizendo.
- Você disse que descobriu as vantagens do jejum intermitente... descobriu onde? - Questionei.
- Na internet - respondeu ela de forma evasiva.
Comecei a ajustar a posição dos cristais de sal-gema sobre a minha mesa, enquanto falava.
- Na internet é meio vago... - comentei, em tom casual. - Você não lembra de qual site pegou essas informações?
Ergui os olhos e vi gotículas de suor surgindo na testa de N.. O olhar dela também parecia acuado.
- Está calor aqui... - murmurou. - Pode abrir a janela, doutor?
- O ar condicionado está ligado - argumentei, continuando a mover os cristais.
E para a Sra.G:
- Está sentindo calor?
- Não... mas talvez fosse bom abrir a janela, doutor.
Ela estava ficando apreensiva com o suor, visível na testa diáfana da filha.
Levantei-me então, e em vez de abrir a janela, retirei o lençol que cobria um grande espelho de corpo inteiro, ao lado da minha escrivaninha.
- Poderia vir aqui e se olhar, N.? - Convidei amigavelmente.
- Não quero me olhar em espelho nenhum... eu estou gorda - retrucou com voz roufenha.
A mãe ergueu-se, assustada.
- Minha filha! O que é que você tem?
- Eu quero ir embora... - grunhiu a garota, levantando-se cambaleante.
- Ela está passando mal, doutor! - Gritou a Sra. G..
- Calma que já vai passar - adverti. - Traga-a para a frente do espelho, arraste se preciso for!
Precisei ajudar a Sra. G.. A criatura era mais forte do que eu imaginara, mesmo com todo o sal que eu havia colocado atrás da porta e da janela. Quando finalmente conseguimos segurá-la pelos braços e posicioná-la em frente ao espelho, gritou como um animal dessangrado, o rosto retorcido numa máscara de ódio.
- Gorda... gorda... porca - ela vociferava, babando e se contorcendo em nossas mãos.
A imagem refletida deformou-se como se uma nódoa de gordura se espalhasse pela superfície do espelho. Finalmente, com um último ronco, N. parou de se debater em nossas mãos e relaxou, embora não houvesse desmaiado.
Olhei para o espelho e a imagem refletida havia voltado ao natural. Peguei N. nos braços e a coloquei sentada na cadeira, cabeça inclinada para baixo. Depois, disse a ela que erguesse a cabeça, enquanto eu empurrava sua nuca para baixo. Repeti isso por três vezes, enquanto a Sra. G, acompanhava tudo com apreensão. Finalmente, cobri novamente o espelho e sentei-me em minha cadeira.
- Como se sente? - Perguntei à N..
Ela me encarou como se tivesse acabado de despertar de um sono profundo. Um pouco de cor já havia retornado às suas faces.
- Estou com fome... - respondeu. - Muita fome...
- [06-07-2018]