Solitária

O Sr. J. marcou uma consulta comigo, por recomendação da Sra. H., uma antiga paciente. Ao adentrar o meu consultório, não me pareceu muito seguro de que fizera a coisa certa. Olhou com desconfiança para o grande espelho de corpo inteiro que ficava junto à minha escrivaninha, os cristais de sal-gema na bandeja de prata sobre a minha mesa, o queimador tibetano de incenso, feito de bronze, sobre um aparador de ferro trabalhado ao lado da porta de entrada.

- Esperava algo mais... ortodoxo... Sr. J.? - Indaguei, reclinando minha cadeira para trás.

- H. me advertiu que o senhor não usava métodos ortodoxos para curar seus pacientes... mas eu esperava ver aqui pelo menos um divã - disse ele, sentando-se em uma das duas cadeiras estofadas à frente da minha escrivaninha.

Abri as mãos, num gesto de desculpas.

- Eu não sou esse tipo de profissional, Sr. J.; e aliás, imagino que se veio até aqui, é porque já passou por algum deles, correto?

O Sr. J. era um homem magro, calvo, aparentando mais do que os seus 50 anos de idade. Tinha bolsas sob os olhos, pele flácida e amarelada como se não visse sol há muito tempo. Ergueu os olhos para mim, com ar de cansaço.

- Em verdade, não. Minha esposa recomendou-me várias vezes que eu fizesse terapia, ou procurasse um psiquiatra... mas eu não estou tão certo de que meu problema seja psíquico.

- O senhor é casado? - Indaguei protocolarmente.

- Há pouco mais de seis meses - revelou ele. - Estava viúvo há cerca de 10 anos, e faz um ano conheci F., minha atual esposa.

E, com um sorriso descorado, acrescentou:

- Ela é uma figura radiosa!

- Provavelmente... - condescendi.

A Sra. H. já havia me dado algumas pistas sobre a natureza do relacionamento do Sr. J. com F., e frente a ele, eu estava inclinado a concordar com as suspeitas dela. Mas, faltava ver a própria F. para confirmar a hipótese.

- Para ter uma ideia precisa sobre o mal que lhe aflige, precisarei que traga sua esposa na próxima consulta - anunciei. - É necessário que ela responda algumas perguntas para que saibamos como poderá ajudar no seu tratamento.

- F. ficará muito satisfeita em colaborar, doutor - declarou J. com alívio.

"Ao menos, verbalmente", pensei com meus botões.

* * *

O Sr. J. nao mentira. F. não era somente radiosa: era brilhante. Com cerca de 40 anos de idade, e aparentando talvez uns 5 a menos, fulgurava na penumbra relaxante do meu consultório, sentada ao lado do marido.

- Fiquei muito feliz quando J. me disse que viria procurar ajuda profissional para a sua depressão! - Exclamou ela num tom jovial.

Comecei a mudar a disposição dos cristais de sal-gema sobre a mesa.

- E como a senhora conheceu seu marido? - Indaguei.

- Foi numa festa! Uma amiga em comum nos apresentou!

Mostrou-me uma foto no celular: ela apresentava-se radiosa, como sempre, e J. parecia estar... bem... com uma aparência muito mais saudável e bem-disposta do que seu quadro atual. Comecei a alinhar os cristais em paralelo.

- A senhora já foi casada ou teve algum relacionamento longo antes? - Questionei.

- Mas o que isso tem a ver com o tratamento? - Indagou ela, surpresa.

- Apenas para conhecer melhor suas motivações - retruquei. - O que a levou a escolher o Sr. J. como esposo?

- J. é um bom ouvinte - atalhou ela. - Ele está sempre disposto a me ouvir... e isso realmente me fazia falta. As pessoas hoje em dia não sabem escutar... só querem falar dos seus problemas!

- Mas sobre ter sido casada...

- Sempre fui uma pessoa muito solitária! - Exclamou ela.

O consultório parecia estar ficando sensivelmente mais escuro, avaliei. E F. ainda mais radiosa. Sem deixar de encará-la, abri discretamente a gaveta superior da escrivaninha e puxei um grande cristal de quartzo que deixava ali para emergências. Segurei-o na mão direita, e perguntei:

- Diga-nos há quanto tempo você está solitária... numa escala de vida humana.

F. inclinou a cabeça e me olhou de banda, como um pássaro. Sim, era exatamente isso o que ela parecia agora: um pássaro. Não um pássaro qualquer: uma ave do terror pré-histórica. E o sorriso parecia repuxar para a frente, como um bico pontiagudo.

- Há muito tempo... mais tempo do que vocês vão viver - respondeu a criatura, abrindo o bico imenso e de bordas cortantes.

Neste exato instante, coloquei o cristal de quartzo sobre a bandeja de prata, junto aos bastões de sal-gema. Ouviu-se um estouro surdo e uma nuvem negra cobriu meus olhos. Quando consegui enxergar novamente, o Sr. J. me olhava atônito, afundado em sua cadeira:

- Onde está minha esposa? Onde está F.?

Balancei negativamente a cabeça.

- Lamento informar, mas o senhor continua viúvo e não se casou novamente.

E, reclinando-me na cadeira:

- Daqui por diante, tome muito cuidado com mulheres que conhecer em festas...

- [24-07-2018]