A ilha no fim do mundo CLTS 03 (conto revisado e com o final alterado)

I - O naufrágio

O Capadócia já navegava há vários dias, levava uma carga variada que ia de refrigeradores chineses a ferramentas agrícolas. Não era um navio grande, mas já tinha feito dezenas de viagens e era considerado bastante confiável. Era de bandeira grega, mas com uma tripulação composta por gregos, franceses, espanhóis, alemães brasileiros e mexicanos, todos acostumados com o trabalho duro e ansiosos para, dentro de alguns dias, receber seu gordo pagamento.

Há treze dias que eles estavam no mar. Navegavam em uma rota remota do Oceano Indico por onde pouquíssimos navios passavam. Era uma noite em que o mar estava calmo e sem apresentar grandes agitações. Alguns membros da tripulação jogavam cartas e outros fumavam enquanto conversavam sobre qualquer assunto. Todos perceberam quando a temperatura baixou subitamente.

- Caramba, de onde veio esse frio desgraçado? Não era para estar tão gelado aqui nessa época do ano – Stephanós falou isso já percebendo que iria precisar de roupas mais adequadas se quisesse permanecer no convés.

- Está muito frio mesmo. Vamos descer ou a gente vira sorvete – Schmitz nunca gostou de frio na sua vida e não era agora que iria gostar. O frio sempre lhe fazia lembrar de uma infância de miséria e privação.

Todos desceram e foram continuar o carteado em um lugar mais quente.

Estavam todos entusiasmados com o jogo de cartas quando perceberam de súbito que o navio deixara de se locomover e ficou às escuras. Isso pareceu muito estranho para todos. O que houve com a eletricidade do navio? Porque eles não navegavam mais?

Em pouco tempo todos ficaram sabendo que as máquinas do navio simplesmente deixaram de funcionar. O pessoal encarregado de operar as máquinas não estava conseguindo fazer funcionar nenhum motor e o que é pior, não sabiam dizer o que motivou o blecaute total do navio.

O Capadócia encontrava-se agora totalmente parado em uma noite escura e sem poder estabelecer comunicação com ninguém. Dentro dele dezoito homens assustados tentavam entender o que estava acontecendo.

Após mais de cinco horas com os motores parados e sem um mísero watt de energia algo muito pior aconteceu: o navio começou a fazer água.

Sem que a tripulação conseguisse identificar por onde a água estava entrando o navio começou a adernar rapidamente.

Em pouco mais de uma hora eles afundaram. Foguetes de sinalização foram lançados, mas haveria algum outro navio próximo para ver? Olhos apavorados contemplavam a escuridão do mar e uma pergunta atravessava o coração de cada tripulante: quem iria socorre-los naquele fim de mundo?

Atônitos e desesperados seus dezoito tripulantes mal conseguiram arrumar dois escaleres com provisões, água, umas poucas coisas e se afastarem do barco que afundava. À sua frente restava apenas um mar escuro e assustador.

A manhã seguinte encontrou os dois barcos salva-vidas com seus tripulantes se perguntando o que havia acontecido com eles.

- Que maldição foi essa que aconteceu? – Hector Benitez, que era o capitão do Capadócia demonstrava todo o seu estupor.

- Juro que não sei ... nunca vi nada igual. Tudo parou de repente. Mais um pouco e todos nós estaríamos mortos – Bertrand, um dos operadores das máquinas falava isso e olhava para a pequena ilha que se descortinava a frente.

- Pelo menos não vamos ter que ficar vagando perdidos no mar. Muita sorte essa ilhota estar tão perto de nós ... – Continuou Benitez, já elaborando mentalmente como é que eles iriam ficar naquela ilha longe de tudo.

II-A pequena ilha

Os náufragos ficaram na praia no primeiro dia. Todos estavam muito abalados com o naufrágio para saírem explorando a ilha. Era notório que todos deparavam-se com a sombria perspectiva de não serem encontrados já que sequer um pedido de SOS fora enviado.

O segundo dia mostrou que a ilha não era muito grande, talvez pouco mais de três quilômetros quadrados. Era composta por um pequeno morro, um número variado de árvores, muitos coqueiros, dois pequenos riachos de água doce. Apenas o contorno da ilha foi explorado sem que os náufragos adentrassem o seu interior.

Andrade, o imediato do navio, amante de topografia e que tinha uma habilidade impressionante para lidar com cartas náuticas, decidiu percorrer todo o contorno da ilhota para desenhar um pequeno mapa do local.

Quando o esboço de mapa ficou pronto uma surpresa surgiu no rosto de todos: a ilhota tinha um formato que lembrava uma cruz ...

III – Ruínas

Decidiu-se que um grupo ficaria na praia e um outro iria explorar o interior da ilha. O grupo encarregado da exploração da ilha estava quase atravessando-a de ponta a ponta quando se deparou com algo completamente inesperado. Entre árvores meio que escondida os náufragos encontraram ruínas de uma antiga construção.

- Que coisa! Quem iria construir algo aqui nesse fim de mundo? – Perguntou Stephanós lançando um olhar de interrogação para os outros.

- É bem antigo. Será que era algum tipo de mosteiro? – Benitez perguntou talvez querendo fazer uma associação inconsciente com o formato da ilha.

- Uma ilha que tem a forma de uma cruz ... aposto que ela não está em nenhum mapa – Falou Andrade olhando mais uma vez para o desenho precário da ilha em sua mão.

- O que mais me chama atenção é que ele foi construído com pedras e materiais que não existem nessa ilha. – Continuou Andrade – Que estranho ...

O grupo entrou em meio as ruínas para dar uma olhada melhor nelas. Foi quando tiveram a segunda surpresa do dia. Em uma das paredes no interior da ruína havia uma frase escrita em vermelho: Tod und Fluch für immer.

- Isso está em alemão! “Morte e maldição eternamente. ” – Porque isso está escrito? Essa é uma frase muito feia para o meu gosto – Schmitz mal tinha falado isso quando o imediato gritou chamando os demais.

- Ei, venham dar uma olhada nisso aqui!

Encostado em uma parede meio escondida estava um esqueleto. Algo nele chamou a atenção do pequeno grupo: ele usava um daqueles antigos capacetes alemães da Primeira Guerra Mundial e ao seu lado estava um velho fuzil equipado com baioneta.

- Esse esqueleto é muito antigo. Será que foi ele quem escreveu a mensagem na parede? – Uma sensação estranha tomava conta de Hector Benitez quando pensava nos motivos que poderiam ter feito alguém escrever aquilo na parede.

IV – O que chega com a noite

Os náufragos haviam decidido sempre dormirem na praia, era mais seguro e também sempre havia a possibilidade, mesmo que tênue, de verem as luzes distantes de um navio.

O segundo dia na pequena ilha chegou com a desagradável surpresa de que os barcos salva-vidas haviam sumido misteriosamente. Sumiram como? Era o que todos se perguntavam. Dois barcos relativamente pesados haviam desaparecido e nenhum sinal foi encontrado na areia da praia mostrando que estes haviam sido arrastados. Buscas foram feitas e nada foi encontrado.

- O que está acontecendo aqui? Como é que somem dois barcos pesados e ninguém vê e nem ouve nada? O que mais vai acontecer? Estamos no meio do nada. – Dava para perceber a tensão no rosto e na voz de Benitez.

O pequeno grupo de náufragos passou a sentir-se mais isolado ainda. Uma sensação estranha de que mais coisas aconteceriam começou a se instalar nos corações e mentes de todos. E se eles não conseguissem ajuda para sair daquele fim de mundo?

A manhã do terceiro dia chegou trazendo a descoberta de que eles não eram mais dezoito e sim dezessete náufragos.

Descobriram o do operador de máquinas francês morto próximo a um arbusto. O aspecto dele era terrível, não havia olhos, seu rosto estava encavado e disforme. O que mais causava horror era o estado do corpo: completamente amarelado e ressequido.

Mais uma noite e mais uma manhã com a descoberta de um outro corpo em estado parecido com o do primeiro.

O medo se estabeleceu entre o grupo de náufragos. Havia algo naquela pequena ilha que estava matando-os aos poucos.

Com o medo atravessando suas almas decidiram que só metade deles dormiriam, o restante ficaria de sentinela.

Não adiantou. Algo como um apagão se abatia sobre o pequeno grupo de náufragos e quando todos despertavam do torpor mais um corpo jazia. Sempre do mesmo jeito, sem olhos, o corpo amarelado e muito ressequido.

- Meu Deus, tire a gente daqui ... tire a gente daqui – Schmitz falava baixinho como se estivesse orando. Seus olhos percorriam a pequena praia como se a salvação fosse surgir repentinamente vinda do nada.

O terror fincou raízes profundas em cada homem naquela ilha. Várias fogueiras eram acesas e espalhadas durante a noite por toda a praia. Ficavam todos acordados e atentos a qualquer sombra projetada pelas fogueiras. Tudo em vão. Um torpor tomava conta de todos e quando emergiam de volta a consciência lá estava mais um corpo.

- Existe uma maldição nesse lugar ... o que diabos está matando a gente? – Um cansado e abatido Hector Benitez Perguntava aos demais.

- Ninguém vê e nem ouve nada. Eu simplesmente apago e quando dou por mim tem mais alguém morto ... meu Deus, proteja a gente! – Schmitz, o mais religioso de todos falava isso e chorava. – Eu não quero mais ficar aqui! Meu Deus, me tire daqui ...

Quando a noite chega traz com ela o medo e a certeza que um deles não verá a luz do sol novamente.

Os dias foram transcorrendo e o número de náufragos diminuindo dramaticamente.

- Vamos espalhar cruzes por todo o acampamento, quem sabe isso não afasta seja lá o que for?

- Não acho que vá adiantar de nada, capitão! – Ponderou Andrade – Além do mais essa ilha já é uma grande cruz ...

- Tem que haver alguma coisa que a gente possa fazer ... tem que haver uma salvação. – Stephanós falava isso com um tom de voz triste e desesperançado.

V – Maldito

Tudo foi em vão, nenhuma medida ou cuidado impediu a morte horrenda de chegar.

Havia algo muito antigo e sem nome naquela ilha.

Ele vagava pela ilha carregando consigo uma tristeza profunda e uma sensação de conformidade com o seu destino. Há muito tempo ele é um perdido. Suas emoções, seu ser e sua vontade pertencem àquela ilha. Ele já havia sido um homem comum, mas essa condição lhe fora tirado ... agora sente que em algum momento se fundirá com a própria ilha.

Em pouco tempo a noite cairia ...

Ele acendeu uma fogueira, olhou ao redor, ergueu seus olhos em direção ao céu estrelado e clamou. Ele sabia que suas orações não seriam atendidas. Era uma bela noite e a Lua iluminava a ilha. Enrolou algumas camisas em um galho de árvore e fez uma tocha. Seguiu em direção das ruínas.

Ao chegar aonde estava o esqueleto parou e ficou a olhar para este. Novamente seus olhos dirigiram-se inutilmente em súplica aos céus. Sem mais nada a fazer lentamente seu corpo fundiu-se a este. Agora havia um esqueleto vestido com um macacão de serviço do Capadócia.

Ele era um maldito e jamais poderia deixar a ilha. Era seu destino vagar pela noite dos tempos carregando a sua sina, sempre à margem das coisas do mundo, sem nunca poder compartilhar nada, vivendo de se alimentar esporadicamente das vidas de uns poucos. Para ele não haveria a morte redentora.

Em algum momento impreciso um outro navio tornaria a passar perto da ilha ...

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 26/07/2018
Código do texto: T6400461
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.