Morte cerebral

Esperei pacientemente que a Sra. A. terminasse de falar e apresentei minhas objeções.

- Eu não faço atendimentos a domicílio. O tipo de situações que tenho que enfrentar demandam certo nível de controle do ambiente, e isso nem sempre é possível de realizar em campo, digamos assim.

Não disse a ela que até alguns anos atrás eu teria aceito a proposta sem pensar duas vezes; mas, algumas experiências desagradáveis me haviam feito rever conceitos. A Sra. A., uma bela mulher de cerca de 60 anos, cabelos longos e castanhos caindo sobre os ombros, encarou-me decepcionada.

- Então, terei que assumir o risco sozinha?

- Se eu, que sou um profissional, estou lhe dizendo que é melhor manter distância dessa situação, o que a faz pensar que poderá ser bem-sucedida sozinha? - Questionei, erguendo ligeiramente as sobrancelhas.

- Eu não creio que terei melhor sorte indo só... ocorre, que não tenho alternativas - explanou ela, abrindo as mãos longas e bem cuidadas. - Eu não havia lhe dito antes para não pressionar seu julgamento, mas minha filha mais velha está lá, como uma das enfermeiras plantonistas.

Fiquei em silêncio. Se eu consentisse que a Sra. A. levasse seu intento adiante, havia uma grande possibilidade de que ela não retornasse. Bem, ao menos, não exatamente como era antes. Por outro lado, e embora não fosse exatamente da minha conta, ir até lá e investigar poderia me dar subsídios para o meu próprio trabalho no consultório. Afinal, convites para entrar nesse tipo de ambiente não eram exatamente comuns.

- Se eu concordar em acompanhá-la, acredita que me deixarão entrar?

Ela balançou afirmativamente a cabeça.

- Falei que iria com um velho amigo da família. Responderam que não haveria problema.

"Muito esperta", pensei.

Puxei a segunda gaveta da minha escrivaninha e dela retirei um estojo de cedro. Coloquei-o sobre o tampo de vidro e abri-o, dele retirando um colar de contas grandes e translúcidas de cristal de rocha, com um grande pingente circular de obsidiana. Estendi-o para a Sra. A..

- Queira colocar, por favor; para sua proteção.

- É lindo! - Exclamou ela, manuseando-o cuidadosamente a peça.

- É um empréstimo, não um presente - adverti, reclinando-me na cadeira. - Vou querer de volta quando sairmos de lá.

Ela abriu um sorriso encantador, enquanto ajustava o colar em torno do pescoço bem torneado.

- Naturalmente, doutor.

* * *

Parei o carro em frente à mansão vitoriana, pintada num tom de salmão pálido em meio a um gramado bem cuidado. A tarde ia pelo meio e o dia estava bonito. A casa não parecia ameaçadora, de forma alguma. Ao meu lado, no banco do carona, a Sra. A. encarou-me com ansiedade:

- Vamos entrar?

- Foi para isso que viemos - respondi, confiante.

Eu havia decidido não levar minha velha maleta preta que costumava utilizar para trabalhos de campo, pois isso poderia levantar suspeitas. Em lugar dela, vestira um sobretudo com vários bolsos sobre o terno; o acerto da escolha, contudo, foi posto em questão logo após tocarmos a campainha e a porta ser aberta por uma criada de vestido preto, encimado por um avental branco engomado, cabelo negro preso num coque severo.

- Eu sou a Sra. A., e este é o senhor R. - apresentou-nos a Sra. A. - Viemos ver C., a enfermeira, minha filha.

Em silêncio, a criada nos lançou um olhar perscrutador, como se estivesse radiografando as nossas almas. Finalmente, fez-nos um gesto franqueando a entrada.

- Queiram entrar, por obséquio.

E, para mim:

- Dê-me seu sobretudo, por favor.

Não era um pedido; era uma intimação, analisei. Entreguei o sobretudo, pensando que se precisasse de algum dos itens que havia deixado nos bolsos, estaria em maus lençóis. Ela pendurou-o num cabideiro estilo árvore no vestíbulo de entrada, e depois fechou a porta atrás de nós.

- Vou levá-los até ela - disse então.

O interior da casa era austero e escuro, e a decoração, pesada, condizia com o estilo arquitetônico. Muitas cortinas, tapetes de lã e móveis de mogno. Fomos conduzidos por uma ampla escadaria até o segundo piso, e a criada parou em frente a uma porta de mogno, magnificamente entalhada. Sem bater, pôs-se de lado e girou a maçaneta., abrindo apenas uma fresta

- Entrem, por favor.

Ficou imóvel, e a Sra. A. tomou a iniciativa, empurrando a porta e entrando. Sem outra escolha, fui no seu encalço. Quando entrei no quarto e ouvi a porta fechando-se atrás de mim, compreendi o erro que cometera.

Um tanto tarde demais, contudo.

* * *

A suntuosa cama vitoriana a um canto do quarto estava coberta por um dossel, que quase a fazia parecer uma peça de conto de fadas. Quebrando a ambientação romântica, o leito estava cercado por uma complexa aparelhagem médica, que servia para manter vivo o corpo deitado sobre ele. E, sentada ao lado do leito, havia uma mulher de vestido branco que, pela semelhança física e cabelos castanhos presos num coque, só podia ser C., a filha de A..

- Fico feliz que tenha cumprido sua parte - disse ela para A., erguendo-se da cadeira, mãos entrelaçadas à frente do corpo.

A. encarou-me com o rosto contraído. Vergonha, medo; muitas emoções passando pelo seu rosto bonito.

- Desculpe, doutor... a sua presença aqui foi colocada como condição para liberarem minha filha.

- Você me traiu... e me atraiu para uma armadilha - respondi calmamente, aproximando-me dela.

- Vamos resolver isso logo - retrucou C., caminhando a passos lentos em minha direção. - Prometo que o seu corpo será muito bem tratado, enquanto estiver em estado de morte cerebral. E se nos revelar como podemos nos defender de outros como você, há uma possibilidade de que lhe restauremos a consciência... em outro corpo, claro.

- Imagino que, mesmo nesta condição, não me deixarão sair da casa - retruquei, posicionando-me atrás de A., que mantinha a cabeça baixa, olhos no chão.

- Infelizmente terá que fazer parte da nossa equipe permanente - informou C., continuando a avançar, braços caídos ao longo do corpo.

Num gesto rápido, abri o fecho do colar de A. e, segurando-o com uma das mãos, dei um salto para o lado e afastei o dossel com um safanão. Sobre o leito, ligada por fios e tubos às máquinas de manutenção de vida, estava o corpo de uma mulher idosa e encarquilhada, numa camisola longa de seda branca. Antes que C. pudesse fazer alguma coisa, coloquei a peça sobre o pescoço enrugado.

A criatura, que parecia em coma, estremeceu e, em seguida, abriu os olhos, totalmente negros, sem esclerótica. A boca, desdentada, abriu-se num grito sem som. Em seguida, os olhos fecharam-se pela última vez. C. dobrou os joelhos e teria caído ao chão se a mãe não a sustentasse. Metodicamente, comecei a tirar da tomada todos os equipamentos de suporte de vida. Apenas quando o último estava desligado, peguei de volta o colar de cristal de rocha. Dei um último olhar para a criatura de pele de pergaminho sobre o leito, e voltando-me para A., conclamei-a:

- Vamos! Não sei qual será a reação dos outros empregados quando descobrirem que perderam sua fonte de renda!

Saímos carregando C., desfalecida, pelo corredor e descemos as escadas sem qualquer oposição. Peguei meu sobretudo no vestíbulo, joguei um punhado de sal na soleira da porta e depois emergimos para a tarde luminosa lá fora.

- Você é uma boa atriz. - declarei, enquanto abria o carro, e ajeitava C. no banco de trás, cabeça apoiada no colo da mãe. - Nossa anfitriã acreditou piamente que eu não tinha mais nenhum coelho para tirar da cartola.

- Eu estava com medo, mas imaginei que o seu plano daria certo - declarou A., muito séria. - Fico-lhe grata por ter salvo a vida da minha filha.

C. começou a mexer-se, como se estivesse despertando de um longo sono. Finalmente, abriu os olhos castanhos, piscou, e encarou A..

- Mamãe? - Sussurrou.

- [05-08-2018]