O Cemitério

Os portões foram trancados. Nenhuma presença de vida. Já passava da meia-noite. A lua brilhava forte no céu. Ameaçava chover. Uma neblina enegrecida emanava: o inferno na terra. Nas catacumbas, gemidos da dor da morte. Os morcegos que desenhavam o céu sucumbem por sangue humano. Aqueles que um dia deitaram para o descanso eterno, hoje acordam prontos para o horror. A sede de sangue começou.

Três amigos invadem o cemitério no momento em que o inferno envia seus recrutas para um banho de sangue. Até então não defrontaram nenhuma criatura horrenda.

- Que neblina é essa, gente? - perguntou Julia, assustada.

- Não é neblina. É fumaça. Deve ter algum baderneiro no cemitério.

- E se forem os guardas?

- Eles não trabalham nos finais de semana - disse Glauco, notando o pavor nos olhos de Julia e a insegurança na expressão de Guilherme. Cada vez mais o céu escurecia. A luz da lua cheia iluminava o cemitério ofuscando mais a visão do trio.

Antes de chegarem ao cemitério, fizeram uma aposta: passar uma noite naquela necrópole.

- Bom, cá estamos. Agora vamos nos separar. A aposta era dormirmos separadamente - disse Glauco.

- Nos encontramos aqui pela manhã? - perguntou Guilherme.

- Sim.

- Eu dormirei naquela capela - disse Julia, apontando.

- Dormirei sobre o túmulo do ex-prefeito - retrucou Glauco.

- Por mim dormiria na rua, mas não perderei a aposta.

Os três se separaram.

Julia entrou na capela. Muitas velas acesas. A imagem melancólica da Virgem apertou seu coração. Sentiu-se fortemente envolvida pela sua fé.

Guilherme caminhou o mais longe que pôde do local de encontro. Pensou em pernoitar ao lado do túmulo de sua avó. Glauco já repousava sobre o túmulo do ex-prefeito.

Enquanto isso, as criaturas das trevas cavavam sedentas por carne e sangue. Os ferozes morcegos penetravam a neblina sentindo o cheiro do sangue quente humano.

Guilherme foi o primeiro a ser atacado. Uma mordida na carótida o despertou. Dois colossais morcegos disputavam seu sangue. O pavor tomou conta. O grito impulsivo da dor atravessou o cemitério. Glauco e Julia ouviram. Glauco dormia, Julia não. Seu medo era mais forte que o sono.

Guilherme agarrou as criaturas com as duas mãos e as apertou com toda força que pôde. Quando sentiu que as havia matado, jogou-as ao chão e com a mão esquerda cobriu os ferimentos no pescoço; com a direita buscava sustentação enquanto atravessava a neblina em busca de ajuda. Não conseguia gritar.

Glauco tornou a deitar e uma mão ossuda e cheia de terra quebrou a tampa do túmulo e contornou seu pescoço pressionando-o para baixo. Era o ex-prefeito. No impulso do susto, Glauco conseguiu se soltar e caiu no chão. Viu a criatura saltar da tumba e ir em sua direção.

Julia não sabia que o inferno invadia a terra. Rezava aos prantos desejando que a noite acabasse.

A passos lentos, a carcaça apodrecida que um dia fora o prefeito desejava pressionar a garganta de Glauco e apoderar-se de sua carne. Glauco apavorava-se a cada instante enquanto defrontava a terrível aberração infernal.

Uma voz a pedir socorro. Era a voz de Guilherme. Julia apertava forte o terço em suas mãos. Hesitou sair da capela. Os pedidos de ajuda de Guilherme estavam próximos. Ela o chamou enquanto passava enfrente à ermida. Guilherme entrou. A injúria no cachaço jorrava insistentemente o sangue de Guilherme. Julia retirou sua blusa e tentou estancar. Mesmo desesperada, tentou acalmar Guilherme e lhe perguntar o que ocorrera. Ele estava gélido e não conseguia dizer uma palavra sequer. Guilherme desfaleceu.

Julia saiu aos prantos da capela em busca de ajuda em meio à neblina que cobria o cemitério. O nó na garganta e a aflição eram extirpadas de seu coração como as lanças eram hasteadas nas sangrentas batalhas humanas. O cheiro da morte aumentava com severidade e enquanto caminhava, na lentidão dos passos e no medo humano que lhe corroía, Julia avistou Glauco arrastando-se na tentativa de fugir da esquelética figura do ex-prefeito. Ela recuou quando, com nitidez, percebeu o perigo. Pisou numa pá de cemitério.

Glauco se esgueirava das mãos da besta que lhe perseguia, arrastando-se, pois se pensasse em se levantar, talvez seria uma fácil presa. Quando apressou-se em rastejar-se, machucou a mão em uma pedra pontuda que estava no caminho. O grito da dor misturado com o grito do medo ecoou para longe do cemitério. Não conseguia rastejar-se com uma mão. A criatura se aproximou e quando agarrou-lhe as pernas, Julia, com a pá, arrancou-lhe a cabeça da besta com apenas uma pancada. Criou forças advindas da raiva e do pavor.

A mão esquerda de Glauco sangrava. Levantou-se a abraçou Julia. Perguntou por Guilherme. Ela lhe respondeu onde jazia Guilherme e que estava com uma grandiosa ferida na garganta.

Na volta à ermida, uma surpresa: Guilherme não estava mais lá. Glauco e Julia o procuraram por dentro da capela. Glauco recolheu algumas pertences de Julia e pôs numa bolsa que carregava. Foi quando Guilherme chamou-os fora. Eles saíram.

- Procuram por mim, amigos?

- Guilherme, - disse Julia - você está vivo!

Julia tentou adiantar-se, porém Glauco segurou-lhe o braço.

- Você não está sentindo dores? - perguntou Glauco.

- Nenhuma - replicou Guilherme.

- É o Guilherme, Glauco. Deixe-me abraçá-lo! Finalmente estamos bem e juntos!

- Não, não vou te soltar, Julia. Ele está muito estranho. Note sua palidez. Os olhos brilham na escuridão. O que está havendo, Guilherme?

- Fui recrutado. Agora eu sou um servo.

- Como? - perguntou Julia. - Do que você está falando?

- Nós viemos para apoderarmo-nos deste lugar. Começaremos aqui a nossa monarquia. Nosso Senhor nos recrutou e temos que eliminá-los.

- E o que é você? - replicou Glauco.

- Um servo!

Guilherme, que já não era mais a figura tímida que entrara na necrópole, atacou-os. Seus dentes cresceram ainda mais e os gemidos e a babugem expeliam de sua boca e sua face ganhou uma feição diabólica. O corpo humano deu lugar ao corpo de um morcego feroz e sedento por sangue.

Arremessou Glauco a alguns metros dali. Quando aproximou-se de Julia, ela mostrou-lhe seu terço. A cruz espantou-lhe. A fera recuou. Julia sentiu-se confortável por um instante, mas sabia que não era por muito tempo. Enquanto isso, Glauco recuperava-se da queda. Julia apontou-lhe onde deixara a pá. Sem que a criatura percebesse, Glauco atacou-a por trás. Conseguiu fazer com que o bicho caísse e com muitos golpes, a criatura acabou cedendo e expulsando muito sangue.

Glauco e Julia precisavam sair do cemitério. Outros seres do inferno poderiam estar vagando naquele exato momento. O céu expunha sua ira com fortes trovejadas e relâmpagos. Dançavam as nuvens carregadas de chuva. A garoa fina que iniciou a noite apertava. Fez com que a neblina sumisse, porém ofuscou a visão da dupla.

Enquanto caminhavam buscando os portões do cemitério, Glauco e Julia estavam atentos a qualquer movimento. A chuva atrapalhava, mas a atenção de Glauco e a astúcia de Julia estavam afiadas.

Enquanto passavam por jazigos, uma mão segurou o calcanhar de Glauco. Tentou soltar-se em vão. Julia gritava desesperadamente. Glauco, com o outro pé, tentava pisar. A besta abria um buraco na terra e segurava o pé de Glauco. Quando pôs a cabeça e parte do corpo para fora da terra, mordeu-lhe a panturrilha. Glauco pediu para que Julia corresse. A criatura conseguiu derrubar Glauco e puxou-o terra adentro. Julia seguiu em frente. Não sabia se chorava ou se fugia. Seus dois melhores amigos estavam mortos. Apenas tinha uma lanterna e sua fé como escudos.

Foi quando avistou o portão de acesso à rua. Notou que estava fechado. Pensou em pular, porém era muito alto e não havia meio de escalar. Os muros também eram altos. Num suspiro, virou-se. Haviam dez, vinte, cinquenta. Mais de duzentos deles. Todos estáticos a observavam. Julia ajoelhou-se, pois o medo já lhe dominava. Puxou o terço e começou a rezar. As criaturas começaram a avançar. Julia fechou os olhos, pensou na Virgem e pediu-Lhe proteção.

Julia acordou em seu quarto e notou que tivera um pesadelo. Sua mãe levou-lhe o café da manhã.

- Por quanto tempo eu dormi, mãe?

- Não sei, Julia. Você saiu com aqueles seus amigos e deve ter voltado de madrugada. Eu não te vi entrar.

- Como? Saí com quem?

- Com Guilherme e Glauco, ora. Você me disse que iam sair.

- Ah sim, claro. E eles? Mandaram notícias?

- Ninguém os vê desde ontem. Era isso o que eu ia perguntar. Você os viu?

- Ai, meu Deus, não. Não pode ser. Será que aconteceu?

A mãe não lhe respondeu.

- Mãe? Mãe?

Endurecida, a mãe de Julia fixava os olhos nos olhos de Julia.

- Por que não me responde, mãe?

- Você é a próxima!

A mãe transformou-se em uma daquelas aberrações e mordeu-lhe o rosto. Julia fora engolida viva. O quarto já não tinha cruzes.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 06/08/2018
Código do texto: T6410714
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