A velha árvore

Estava eu em mais uma de minhas longas caminhadas noturnas quando avistei na estrada coberta pela neve um emaranhado de galhos que saltavam aos olhos, destacando-se pela sua cor. Não havia qualquer outra bagunça que tirasse a beleza do branco que se estendia pela paisagem, a não ser o incômodo causado por aqueles galhos de cor marrom, que assim que vi me causaram tanta repugnância que quis gritar de exasperação.

O que será que se esconde ali?

Sinto a curiosidade crescer dentro de mim, tomando o lugar do nojo inicial que tive ao ver a discrepância de cores, cada vez mais fascinado, sinto-me obrigado a me aproximar dos ramos nodosos e descobrir o que ali se acoberta. Mesmo tão perto não consigo enxergar quando está tão escuro. Desolado, me prostro ao lado do desconhecido e por alguns momentos penso em uma solução para o impasse: descubro o que é ou saio fugitivo?

Pode ser uma armadilha, concluo, talvez encontre o meu fim em busca da verdade. Covarde. Sou um covarde. O medo, escuro e com garras afiadas me sufoca subindo desde o estômago até o meu pobre pescoço exposto, e então vence.

Corro.

Quando, finalmente, já estou há alguns metros, volto a analisar o que fazer. Posso dar meia volta e cuidar daquilo ou adiar o momento da descoberta. Decido voltar para casa, retornarei pela manhã. Já no dia seguinte, quando a claridade finalmente desaponta iluminando toda a natureza ao meu redor, prontamente refaço o caminho até o ponto que estava ao anoitecer. Estranhamente não há nada no lugar a não ser a extensão serena e pálida da neve, nem mesmo existem marcas na estrada pouco movimentada.

O alívio límpido e sincero preenche todos os buracos antes preenchidos pelo terror.

Mais uma vez a noite cai.

Alegremente, visto minhas botas, casacos e luvas. É a hora da tão esperada caminhada noturna, o momento que anseio todos os dias. Percorro a trilha distraidamente apenas focado nas sensações ao meu redor. Quando chego na posição da estrada mais uma vez encontro os galhos, exatamente na mesma marca.

Percebo então, que estão muito maiores e ocupam quase toda a estrada. Se algum carro passasse por ali não poderia continuar viagem. Estão tão grandes que as sombras que provocam na neve tomam formas pavorosas que parecem se mover. O zumbido do vento forte quando toca em sua madeira apodrecida provoca barulhos sinistros que invadem meus ouvidos e não me permitem pensar. Ontem, não havia reparado que produziam som tão ensurdecedor.

A temperatura diminui tanto que começo a sentir meus dedos dos pés e mãos formigarem. Estou petrificado. Não consigo aproximar-me da coisa ou fugir dali. Me sinto tão cansado que resolvo sentar ao chão e fechar os olhos por alguns instantes.

Quando enfim abro os olhos, vejo que já é dia e que o sol já desponta. Levanto assustado e novamente os galhos se foram. Sentindo dores por toda parte, volto para minha cabana com muita dificuldade.

Decidido a descobrir do que se trata o aparecimento noturnos dos galhos que me impedem de fazer meu caminho, quando novamente escurece, me apronto mais uma vez para fazer meu percurso de todos os dias, dessa vez munido de todos os meus casacos e uma lanterna. Irei resolver o que tem me causado tanto incomodo.

Não presto atenção no percurso e quando me dou conta já estou no exato ponto em que estive nas duas últimas noites. Os galhos quase já se tornaram mais altos do que eu. Imponentes e assustadores parecem me encarar diretamente nos olhos, enxergando partes de mim que eu mesmo desconheço.

Caminho decidido. Paro há alguns centímetros de distância dos galhos. O cheiro podre alcança minhas narinas e quase perco os sentidos. O odor é tão forte que parece se materializar fisicamente em uma massa condensada de enxofre.

Reprimindo o vômito que se forma em minha bile, dou o último passo ao encontro da assombração que polui toda a paz da natureza em seu curso normal. Ligo minha lanterna e aponto para o local.

Grito quando vejo o que se esconde sobre o que tenho evitado todos os dias. Sangue seco está preso nas extremidades dos galhos que se movem fervorosamente, causando um ruído estrondoso. Como não percebi que eram tão grandes?

Tento correr dali, mas, um dos gravetos afiados enrola-se em meu calcanhar prendendo-me.

- Solte-me!

O ranger dos galhos aumenta e não consigo ouvir nada além da rouquidão assustadora produzida pelo farfalhar do que um dia foram folhas verdes, sinto o sangue quente escorrer do local onde o galho está enroscado, e desespero-me.

- Por favor, solte-me!

Agito-me ao máximo tentando fugir. Com a perna que ainda está livre, piso no galho que se encolhe com o golpe inesperado, finalmente me permitindo fugir. É a primeira reação que tenho contra a coisa.

Corro tão rápido o quanto é possível, não olho para trás até que estou na porta de minha cabana. Com o peito queimando encosto-me no degrau e olho para a escuridão que deixei para trás, não fui seguido.

O choro preso escapa de minha garganta em um som que não parece humano, as lágrimas banham meu rosto copiosamente. Meus músculos protestam devido a corrida. Deito-me ali mesmo e embalo em um sono agitado.

O raiar do dia me desperta. Não irei caminhar hoje. Não irei enfrentar a fera. Irei permanecer quieto fingindo que não existe. Logo mais, sumirá. De certo, que tem que sumir. Retornará ao antes. Tenho certeza. E poderei seguir meu caminho.

O dia passa lentamente. O medo crescente sempre à espreita se torna insuportável. Tomo uma xícara de café todas as vezes que estou presentes a explodir e volto a olhar pelas janelas. A quietude de fora se destaca da minha grande bagunça interior.

A noite chega, e quando, chega o horário que tenho costume de caminhar, decido ler um livro para evitar a tentação de me arriscar no mundo exterior. Quanto mais o tempo passa, mais tranquilo vou ficando, e finalmente, chega a hora de dormir.

Duas semanas se passam sem que nada aconteça. Todos os dias, acordei, passei o dia tomado pelo medo e quando finalmente nenhum acontecimento me perturbou, dormi. Duas longas semanas afastando qualquer pensamento que me fizesse retornar para dura a realidade de que tinha algo assustador a espreita do lado de fora, impedindo-me de sair, impedindo-me de viver.

Hoje uma sensação nova se apossa de mim. Um sentimento de que algo está prestes a acontecer. A atmosfera carregada deixa avisado que o perigo está a espreita, apenas esperando qualquer passo em falso para atacar, permaneço em alerta em tempo integral, vigiando-me para não entrar em qualquer situação arriscada.

O dia passa vagarosamente, cada hora é uma tortura que arranca de mim a vontade de viver. Finalmente a noite surge no horizonte. O medo aumenta e atinge seu ápice. E, quando o relógio toca meia noite o vento aumenta e os barulhos da pobre cabana tornam-se insuportáveis, me encolho embrulhando em meu próprio torpor.

Ouço uma leve batida na porta. Não há nenhum ser humano há quilômetros e nessa época do ano ninguém vem a passeio. Não abro. Tapo os ouvidos e sento-me no velho sofá rasgado.

Outra batida. Noc Noc.

Ignoro mais uma vez.

As batidas tornam-se insistentes e contínuas.

- Quem está aí?

- Ora, seu tolo, eu sou você. Abra logo a porta.

Permaneço imóvel sem fazer qualquer barulho, rezando para que aquela coisa suma da minha vida. Minha vontade não é satisfeita, pois, em poucos minutos vejo os galhos sangrentos e secos aparecerem pelas frechas da porta e das janelas. A velha cabana parece cada vez menor porque aqueles robustos pedaços de madeira cobrem todas as superfícies das paredes e do chão de linóleo.

- Por que está fazendo isso comigo?

- Nada faço sem que você permita ser feito, fui ignorada por você mesmo, e agora retorno maior e invencível.

- O que quer dizer?

- Eu apareci do tamanho de um grão de areia e você não notou. Depois eu fui crescendo alimentada por você, cresci tanto que quando você resolveu me enfrentar eu já era muito mais forte e maior do que você.

Meu corpo enrijece, o frio é tão denso que sinto meu sangue diminuir a velocidade que percorre minhas veias, cansado eu apenas desisto, deito-me no sofá aguardando o final do que quer que seja. De algum modo cheguei a conclusão de que fui vencido pelo meu próprio eu.

Os galhos velhos e podres começam a se enroscar na minha pele, e em cada local que tocam provocam uma sensação quente e ardida, as feridas vão se alastrando que o sangue já escorre pelo chão. Fecho os olhos e finalmente digo minhas últimas palavras:

- Eu aceito você.

b bezerra
Enviado por b bezerra em 06/08/2018
Reeditado em 08/08/2018
Código do texto: T6411143
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