Terra de Ninguém - CLTS 04

Acabei de acordar, estou com o corpo ainda molhado da chuva que caiu no dia anterior. Não quero abrir os olhos e ver o que está ao meu redor. Às vezes dá vontade de ficar dormindo para sempre. Não quero levantar, mas não tem jeito. O fedor de fezes e urina dos muitos dias ali terminam fazendo eu despertar de vez. Será que algum dia sentirei outro cheiro que não a podridão dos cadáveres insepultos ou dessa lama imunda em que dormimos todas as noites? Acordo para mais um dia nessa trincheira maldita, mais um dia na vala dos esquecidos.

Tem muitos dias que não sonho com Eileen. O que ela estará fazendo agora? Dando comida às galinhas ou tirando leite de alguma vaca? Será que ela ainda dedica orações para mim? Será que ainda lembra de mim? Acho que ela não iria querer casar comigo agora se visse a lástima em que me encontro. Tem mais de dois anos que não vejo aquele rosto bonito. Tenho medo que essa guerra nunca acabe e eu termine enterrado nesse buraco junto com as pulgas e os piolhos que infestam o meu corpo.

Acordamos muito cedo e ficamos de vigilância usando periscópios. A qualquer hora podemos sofrer um ataque. O momento que mais tememos são as primeiras horas da manhã quando estamos perto de acordar. Acredito que estamos mais desprotegidos nessa hora. Há muito tempo não sei o que é dormir sem sustos e sobressaltos.

Boa parte do tempo ficamos limpando a trincheira, tentando drenar a água que se acumula e cuidando de nossas espingardas e metralhadoras. Sinto saudade da comida de minha mãe, aqui tudo é frio e parece ter gosto de prego enferrujado. Eu queria pelo menos poder andar ereto mas nem isso consigo! Nesse buraco andamos meio agachados porque volta e meia um de nós tem a cabeça destroçada pelas balas de um atirador furtivo.

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Existe um boato de que pelos próximos dias vamos fazer uma ofensiva. Foi Heiko quem chegou com essa história dizendo que escutou um oficial comentar com outro. Muitos de nós estão apavorados com essa possibilidade, mas também tem aqueles que acham melhor sair para o combate direto do que ficar aqui e morrer de disenteria ou gangrena.

Sou escalado para a vigilância noturna. Odeio isso. Fico olhando para a terra de ninguém à minha frente. Tudo o que nos separa do inimigo é um emaranhado de arame farpado, buracos de bombas e centenas de corpos que estão apodrecendo. O fedor é horrível, sinto que ficarei com esse cheiro desgraçado até a hora em que eu morrer. Existem corpos que estão inchados e parecem que vão explodir a qualquer momento. Os ratos estão gordos de tanto comerem os mortos e eles não tem preferência: comem tanto cadáveres alemães quanto franceses ou ingleses. No começo era a coisa mais nojenta que eu já tinha visto. Imagine ver um rato sair das entranhas de um corpo destroçado ... hoje isso não me choca mais tanto.

Mais uma noite dormindo no meio da lama. Schulz passou o dia gemendo e praguejando por causa do pé gangrenado. Agora ele não geme mais, deve estar com o pé dormente e está exalando um cheiro horrível. Da vontade de ir lá e meter uma bala nele só por piedade ou desespero. Pensava isso quando meus olhos se deparam com um rato imenso comendo o pé podre de Schulz. Levanto-me para espantar o bicho. Ele percebe meu movimento, mas não esboça nenhuma reação de fuga, os ratos estão acostumados a circularem entre nós e não se assustam com facilidade. Aproximo-me dele, pego a baioneta e o cutuco com a intenção de fazê-lo fugir. Ele para e dirige seus olhos pequeninos para mim, mas não foge. É um rato cinzento, sujo de lama, observo que ele tem uma mancha branca em um dos lados. Dever ser tinta ou alguma doença. Basta eu dar uma estocada com a baioneta que mato o desgraçado. Ele, no entanto, continua me olhando. Também me pego olhando para o rato, vejo que ele é apenas um pouco menor que um gato doméstico. Perco a vontade de matá-lo. Porque eu faria isso? Schulz vai perder o pé de qualquer maneira. Nem é mais um pé, é só um pedaço de carne morta. Sem que eu esboçasse nenhum movimento o rato simplesmente vai embora e some por entre os sacos de areia.

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Os dias vão passando e nada do boato de que iríamos atacar se confirmar. Muitas vezes pego-me com o pensamento em Eileen. Algumas vezes no silencio da noite eu me masturbo lembrando da vontade que tinha de saber o que havia por baixo do vestido dela. Termino espalhando meu prazer por entre lama e fezes. Parei de escrever cartas para ela, acho que é porque meti na cabeça que não a verei mais.

Chega o dia em que finalmente recebemos ordens para atacar. Sinto o corpo vibrando em uma sensação estranha, sei que o nome disso é medo. Vamos realizar uma grande investida. A estratégia é simples: nossa artilharia vai martelar as posições inimigas e em seguida vamos avançar. Pouco mais de trezentos metros nos separam da primeira trincheira inimiga. Trezentos metros de um inferno de balas, explosões e corpos despedaçados.

Tenho medo ... não sei por quanto tempo ficarei vivo depois que puser os pés fora da trincheira. Tudo o que eu queria agora era ir para casa tomar um banho e esperar um almoço quentinho, depois sentaria na varanda só para ficar sentindo o vento no rosto. Tenho certeza que minha mãe não me reconheceria, virei uma coisa em que os sentimentos estão encobertos por muita sujeira. Às vezes me vejo como um morto insensível.

Com calma limpamos nossas espingardas e colocamos as baionetas. Preparamos as metralhadoras e ficamos no aguardo. Os minutos passam e minhas mãos suam. Estranhamente penso em Eileen e no volume dos seus seios por baixo do vestido. Por que estou pensando isso justamente agora quando à minha frente está um inimigo que não hesitará em matar-me?

Nossos canhões começam a martelar as linhas inimigas. O barulho é ensurdecedor. A qualquer momento vamos pular para fora da trincheira e penetrar na terra de ninguém. Olho para meus companheiros mais próximos de mim. Franz aperta firmemente o crucifixo que seu pai lhe deu, Joachim bebe um último gole de rum e tem os olhos fixos em sua arma, Heiko está roendo as unhas sujas. Para minha surpresa eis que, em um cantinho perto de uma lona velha caída no chão, enxergo o mesmo rato de duas noites atrás. Ele é indiferente a essa guerra, na verdade ele se beneficia dela, rouba nossa comida e ainda come os nossos corpos. O bicho nojento fica passeando pelo meio de nossas botas. Ele vai viver e voltar para sua toca e nós vamos ao encontro da morte. Decido que vou dar um tiro no infeliz só de raiva. Estranhamente ele some. Deve ter adivinhado que eu ia matá-lo.

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Os primeiros cinquenta metros de terreno íngreme e esburacado são vencidos facilmente. Corremos em ziguezague para escapar dos tiros, das explosões e dos arames farpados. Somos milhares correndo e atirando. Somente alguns de nós são baleados. Nosso bombardeio inicial parece ter desmantelado boa parte das defesas inimigas.

Tudo é muito rápido. O inimigo que parecia não ser capaz de deter o nosso avanço surpreendentemente despeja sobre nós um diluvio de balas, bombas e granadas.

Estou correndo por entre buracos enlameados. Ao meu lado está Hans, um soldado baixinho e sardento. Ele leva uma saraivada de tiros no peito. Com o canto dos olhos vejo que seu corpo ficou estendido em uma posição engraçada, parecendo uma marionete desconjuntada. Não paro de correr, caio em um pequeno buraco, levanto rapidamente, se eu ficar parado morro crivado de balas. O barulho da fuzilaria e das explosões cobre nossos gritos, ninguém escuta ninguém. Heiko ao meu lado é partido ao meio. Continuo correndo. Em um segundo sinto que o chão fugiu debaixo dos meus pés. Meu corpo voando ...

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Abro os olhos, minha visão está turva e estou com dores pelo corpo todo. Sinto-me atordoado e tenho dificuldades para organizar o pensamento. Eu estou vivo! Levo um tempão para entender que fui atingido por alguma explosão. Quantas horas eu apaguei? O Sol vai se pondo no horizonte e decido ficar sem me mexer. Tenho medo de levar um tiro. Escuto gemidos de todo tipo. Na posição em que estou vejo muitos corpos e fumaça. A morte se espalha pelo campo que um dia já foi muito bonito.

A noite avança e com desespero dou-me conta que estou sozinho entre mortos. Estou sozinho na terra de ninguém. Meu cotovelo direito está destroçado e sinto que minha perna esquerda está presa por alguma coisa. As dores são muito grandes. Tenho vontade de gritar mas não sei se teria forças para tanto. As lágrimas inundam meu rosto. Tento formular uma oração, tento pensar em minha mãe e em Eileen, mas é tudo muito vago e meus pensamentos parecem querer fugir como o sangue foge do meu corpo.

Os minutos se transformando em horas e minha vida esvaindo-se rapidamente. Perdi muito sangue e mais de uma vez me senti desfalecendo. Eu vou morrer aqui. Decido arrastar-me lentamente em direção a nossa trincheira. Devo ter corrido uns duzentos metros antes de ser atingido. Para que lado é a trincheira? Viro lentamente no sentido contrário e descubro com horror que meu pé está preso no arame farpado. O pior é que ele não está apenas preso mas também foi atravessado por algum estilhaço.

Acho que apaguei novamente. A noite é iluminada por uma grande lua no céu e uma luminosidade fraca permite eu ficar olhando o que está ao meu redor. Percebo um leve movimento há uns dez metros de mim. Será que alguém está vivo? Estreito mais a visão para tentar perceber melhor. Algo está se movendo mas não consigo ver direito. O que será? Com horror descubro o que está se mexendo. É um rato. Meu Deus, eles já vão nos devorar? Já é chegado a hora do grande banquete?

Ele se aproxima lentamente de mim. Fico tenso. Experimento fazer um leve movimento com o braço bom na tentativa de espantá-lo. Não deu certo. Ele continua avançando. Em segundos ele está perto de mim e vejo que tem uma mancha branca em um dos lados do corpo. É o mesmo rato que estava devorando o pé de Schulz! Movimento o corpo, mas estou muito fraco. Ele sobe rapidamente em meu peito, sinto o peso do seu pequeno corpo por cima do meu uniforme. Procuro a baioneta para espetar o desgraçado, mas ela não está próxima. Ele aproxima-se do meu rosto e sinto seu rabo passar em cima de minha boca, meu nariz é imediatamente impregnado pelo mau cheiro que exala dele. Meus olhos estão fechados de horror, fraqueza e nojo. Suas pequenas patas pisam em meu rosto. Quase chego a sentir ele enfiando seus dentes em meus olhos. Com alívio dou-me conta que ele desceu do meu rosto. Para onde ele foi? Porque eu não peguei ele com a mão boa e arremessei para bem longe de mim? Por que eu não matei o desgraçado nojento quando tive chance? Que estupidez a minha!

Cadê o rato? Será que desistiu de mim e foi atrás de alguém mais morto do que eu? Como que para responder a minha pergunta ele volta. Começa a andar ao lado do meu corpo. Deus, dai-me forças! É só o que consigo pensar. Ele se dirige para meu pé que está preso pelo arame farpado e atravessado pelo estilhaço da bomba. O que ele vai fazer? Minha visão fica turva novamente e desmaio. Volto à consciência novamente e com grande esforço levanto o pescoço e vejo o maldito em cima de meu pé ferido. Ele está me devorando! Sinto uma dor lancinante atravessar meu corpo ...

Meus olhos se abrem lentamente ... quanto tempo passou? Mexo-me com extrema dificuldade e começo a arrastar-me lentamente de volta para a segurança da trincheira. Metro a metro sinto que vou morrendo. Meu corpo todo dói, não sinto meu braço e nem minha perna esquerda. Vou progredindo lentamente pelo terreno acidentado. Passo ao lado de corpos e do que restou deles. Não tenho mais certeza se estou indo para o lado certo ou errado. Sou uma coisa se arrastando em um campo de morte sem fim.

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A claridade é intensa quando abro os olhos. Estou na retaguarda da trincheira deitado em uma pequena maca. Vários dias haviam transcorrido. A enfermeira informou-me que arrastei-me sem um pé e com um antebraço pendurado apenas pela pele por uma extensão muito grande da terra de ninguém. Não sei como consegui tal feito mas acho que o rato foi o responsável por isso quando roeu meu pé até os ossos. Quando ele fez isso libertou-me.

Aquele rato imundo e fedorento salvou minha vida.

Tema: animais

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 12/08/2018
Reeditado em 09/09/2018
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