SOTURNO

 
 
Ainda cedo, Debora caminhou até a varanda de sua casa, um pouco sonolenta e com um desconforto na nuca. O céu lhe pareceu estranho, um pouco mais rígido do que o normal, mais... claustrofóbico. Sentia que poderia desabar uma chuva que não tinha visto a anos, mas talvez fosse apenas uma sensação passageira. O cigarro continuava preso ao braço da cadeira, como tinha deixado na noite passada após meio drink de Vodca. Seu vício momentâneo não lhe deixava desperdiçar um trago quando via a oportunidade, então sentou-se com seu pijama rosa claro na cadeira de veraneio, apanhou o isqueiro escondido no fundo do bolso e ascendeu o cigarro.
— Precisa parar com essa merda Debora... — Avisou a si mesma, olhando para a bituca de cigarro.
As sete horas da manhã o céu tinha passado de um violeta vermelho esmaecido para azul fosco. As vezes ficar sentada naquela cadeira lhe deixava mais senil do que imaginava ser. — Nicolas, Nicolas... — Chamou Debora, num tom engasgado.
— Já vou vó.
Debora apertou os lábios comprimindo a fumaça e soltou-a pelo nariz de uma vez, não quis tossir, mas o fez, colocando a mão sobre o batom borrado que mal tinha tirado quando acordara da noite de ontem.
— O que foi vó?
— Limpou as manchas sob a cabeceira.
— Eu tentei, mas aquelas manchas são mais difíceis que as do último.
— Pois continue. Não queremos que desconfiem. E peça para Arlete separar uma garrafa de vinho da adega, pois o próximo é bem rico pelo que soube.
— Está bem vó.
Az vezes não tinha como desviar seu olhar de desprezo, e naquela manhã quando sentia seu estomago fervilhando e seu humor concentrar-se na virilha, precisava de mais que uma tragada para se manter sóbria o suficiente para a noite.
Uma casa de veraneio perdida num bosque a quilômetros de qualquer cidade não era destino para qualquer desavisado. Ainda mais se o que estivesse procurando fosse um pouco fora do convencional. Casa das Cerejas, era assim que Madame Debora chamava o lugar. Nicolas tinha um apelido um pouco diferente, Casa dos Coniventes.
— Não está se esquecendo de algo Arlete. — Falou Debora, passando a mão pelo lençol da cama.
Arlete fez que não franzindo a cabeça.
— Minha criança... — Respondeu segurando-a pelo queixo. — Passe o perfume.
As covinhas de Arlete tremelicaram sob o toque das unhas ásperas dela, era quase como se estivesse com facas nos dedos. — Não quer que vão embora antes que eu consiga o que eu quero, não é mesmo. — Falou Debora, num tom suave e falso. Fazia cinco anos desde que Arlete perdeu a língua, e desde então, nunca se esqueceu da primeira regra da casa; nunca fale com ninguém.
A partir do meio dia as coisas tomavam um curso mais rápido e desajeitado. Arlete limpava a casa de cima a baixo, até que não restasse pó algum, enquanto Nicolas cuidava da comida, mais precisamente da carne. Muitos hospedes tinham um gosto peculiar, mas Debora conhecia por instinto como agrada-los. Antes de terminar os cômodos superior, Arlete costumava fazer uma oração em seu quarto, pouco antes que Debora subisse para conferir se tudo estava perfeito, mas Deus nenhum a ouviria dentro daquela casa.
Durante a tarde Debora trancava-se em seu quarto, e só saia de lá as oito horas, com a chegada do próximo hospede.
— Sabe que não devemos. — Avisou Nicolas mordendo dos dentes.
Arlete fitou-o com uma expressão diferente, mais corajosa, e aproximou-se da porta entreaberta.
— Vai te matar Arlete. Não. ­— Berrou num tom quase inaudível.
A luz esverdeada escapava do quarto, refletindo no acoalho e em seus olhos. Ao passo que se aproximava da porta, um cheiro podre invadiu seu nariz, tão forte como o cheiro da carne no frízer. — Meu querido Manuel... — Ouviu a voz de Debora, e então, cruzando os olhos pelo canto da porta, viu-a beijando um crânio, ainda com pedaços de carne grudadas ao osso e cabelos. — Deixe-me ser sua por mais esta noite. — Falou Debora, e então suas maçãs do rosto cresceram ganhando forma e aspecto jovial, em seguida deu-lhe mais um beijo no crânio apodrecido e todo seu corpo rejuvenesceu, até que seus olhos somaram uma cor mel profunda e hipnotizante.
Debora colocou o crânio sob a mesa, e se levantou arquejante. — Pode sair daí criança, sei que está me vendo.
— Desculpe, não queria, só que...
— Só o que criança? — Perguntou Debora, intimidando-a.
— Ele já chegou...
Debora levantou os olhos sob a cabeça de Arlete e viu que havia realmente alguém na porta. Então sorriu, deixando a garota paralisada de medo.
— Nicolas, preparou a cozinha? — Perguntou, enquanto caminhava na direção da porta.
— Sim senhora.
— Está bem? — Sussurrou Nicolas a Arlete.
Arlete virou-se e sorriu, derramando uma lagrima de alivio.
Antes de abrir a porta Debora tirou do bolso direito, ao lado do isqueiro velho, um batom vermelho radiante.
— Prazer Barão! — Falou Debora, cumprimentando-o.
— Pelas nove ave marias. Ainda melhor do que Pai Gû disse. Como se chama bela dama?
— Pode me chamar de Debora.
— Mi Lady. O prazer é todo meu.
O homem parado a sua frente vestira no mínimo duas vezes mais em ouro do que poderia valer toda aquela casa. Barão Santiago era um negro alto e vistoso, vestindo um terno escuro e uma cartola preta, como aquelas que os mágicos usam, porém mais elegante.
— Venha Barão.
— Vá na frente doçura. — Respondeu tocando-lhe o ombro desnudo.
A casa estava sutilmente escura, e decorada com flor de lírios nas estantes e nas paredes. Um tapete vinho de quase um século cortava o corredor principal até a cozinha que estava iluminada por velas.
— Quase como consegui imaginar. — Disse o barão encostando a boca na sua orelha.
Debora afastou-se, trocando um olhar erótico.
— Espere homem. Tudo deve começar pelo começo, não acha.
Santiago respirou fundo e seguiu-a até a cozinha sem desconfiar de nada. As oito horas, Nicolas serviu o vinho, e como um servente dedicado permitiu-se ser invisível ao barão.
— O que acha do vinho?
— Não tenho certeza se já provei este aqui.
— Acho que nunca provara um igual. — Falou Debora, brindando.
As mãos de Debora tremiam de ansiedade.
— Não teve trabalho em chegar aqui não é mesmo Barão.
— Devo minha chegada a Marcos Gutierrez, não teria encontrado o caminho sem que tivesse me enviado um mapa. Aliás, não o vi desde então. Lembra-se dele ainda? — Perguntou Santiago, abocanhando um pedaço do file.
Debora abriu um sorriso neutro e respondeu vendo-o comer o file.
— Não sabe como...
Arlete observava-os comer lá de fora, escondida atrás da janela. — Está se arriscando demais Arlete. Já não bastou ela arrancar sua língua. — Falou Nicolas, tirando-a da janela a força.
Nicolas conduziu-a para longe da janela, o suficiente para não serem ouvidos.
— O que acha que...
Antes que pudesse terminar a frase Arlete acertou-lhe com um tapa no rosto. Nicolas ficou mudo e logo seu rosto inchara como um tomate. — Não sei porque fez isso... e novamente, Arlete lhe deu mais um tapa, desta vez no braço. ­— Droga Arlete, o que foi? E em seguida mais um tapa, e mais um e mais um, e mais um, até que começar a chorar. Nicolas segurou seus braços forçando-a a parar e ambos caíram no chão abraçados.
— Se você se for, ficarei sozinho com ela. — Falou Nicolas abraçando-a com ainda mais força.
Arlete sentia-se culpada pelo que estava fazendo, e ainda mais culpada pelo sentimento de Nicolas. Ela queria poder continuar ali, parada, abraçando-o, mas no momento que se virou na direção da janela, percebeu que Debora já havia subido ao quarto. Ela correu até a porta da frente e depois subiu as escadas, mas já era tarde, uma poça de sangue escorria por debaixo do vão da porta do quarto. Um gemido fraco soou pela fechadura — Demônio... — Ouviu uma voz desaparecer.
Vagamente uma ideia passou pela mente de Arlete, fazendo-a descer ao piso inferior, direto ao pequeno quartinho aonde Debora escondia a cabeça apodrecida que vira mais cedo. Sabendo que não teria volta, ela segurou o terço que tinha pendurado no pescoço e entrou no quarto proibido. Debora colecionara muitos itens peculiares naquele cômodo, dos quais um único se destaca, um crânio apodrecido. Arlete segurou aquela bizarrice pelos cabeços e em seguida colocou fogo.
— Não faça isso Arlete! — Berrou Debora.
No momento que o fogo se alastrou pelo crânio, Debora começou a murchar como uma uva passa, e toda sua beleza que havia adquirido desbotou-se como um quadro velho, até que ela começasse a pegar fogo de verdade.
Enquanto acompanhava Debora queimar, Nicolas a observava por detrás da porta, assustado.
— O que você fez? — Sussurrou Nicolas.
Arlete sentia algo diferente agora que Debora estava morta, mas não tinha certeza. Olhando para as chamas ininterruptas que dominavam Debora, Arlete respondeu.
— O que foi preciso...
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 17/08/2018
Código do texto: T6422259
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