A deusa no espelho

O grande espelho ovalado, de moldura belíssima e um tanto mística, com detalhes feitos a mão esculpidos no bronze polido, ainda estava recostado ao lado do roupeiro desde o dia que Fausto o trouxera. Um fino lençol cobria a face do espelho voltada para a cama. Tinha sido coberto as pressas devido aos calafrios que Fausto sentia toda vez que enxergava seu reflexo, com um mórbido semblante cadavérico à meia luz das velas e castiçais.

Sabia que não conseguiria passar uma noite sequer em paz quando adquirisse este espelho, mas precisava tê-lo. Desde que o viu no velório de seu tio embelezando um dos corredores, sentiu o desejo de levá-lo. Algo atraía sua atenção, como se seu espírito congelasse ao observar seu próprio reflexo e a “voz” no espelho lhe chamasse.

A noite estava gelada, calma e enluarada. Perfeita para seus rituais noturnos costumeiros. Geralmente levantaria as três da madrugada e, nu, entoaria alguns mantras antigos nos fundos de casa, onde estabelecera um pequeno altar. Sua conexão com a lua e a noite era antiga, e desde pequeno sentia sua atração materna. A deusa esculpida em pedra-sabão ao lado de seu pequeno altar lhe trazia boas memórias e acalmava a alma em tempos difíceis. A perda de seus pais e a solidão que o acompanhava eram amenizados pelo carinho da deusa, mas para Fausto, ainda não era o suficiente. A deusa acalentava a alma de muitos, que em segredo lhe clamavam, e trazia a paz para seus filhos aflitos. Mas nunca ninguém havia aproximado-se tanto da deusa como Fausta estivera. Sentia uma conexão muito grande e forte, um laço inquebrável. Talvez seja o destino – pensava.

Levantou-se e caminhou determinado até o espelho, retirou o lençol e contemplou por alguns instantes sua face refletida morbidamente. Segurou o pesado espelho pela moldura e o carregou com dificuldade até o altar enquanto seu reflexo o observava por todo o trajeto. O apoiou em frente a estatua da deusa e novamente contemplou seu reflexo. Seu olhar parecia vazio, sua pele cinza, suas roupas velhas. Sentiu que lhe faltavam pedaços, não físicos, mas íntimos, profundos, pedaços de sua alma. Lágrimas começavam a brotas em seus olhos, ergueu-os para contemplar a face de pedra da deusa. A lua derramava seu pálido brilho como braços acolhedores, abraçando a alma triste e iluminando a face da deusa. Fausto esboçou um singelo sorriso.

Despiu-se, buscou entre a parafernália do altar sua adaga cerimonial. Vestiu-se com seu robe púrpura correspondendo a cor da deusa. Em seus pés calçou sandálias feitas de raízes trançadas. Cingiu o peito com o amuleto da deusa, uma pedra de esmeralda translúcida e ornamentada por fios de cobre e ouro entrelaçando a pedra. Encheu o cálice cerimonial com seiva pura retirada de inúmeras árvores das entranhas da mata. Aproximou-se do espelho pondo-se à sua frete, ergueu o cálice na mão esquerda e a adaga na mão direita aos céus, entoou um canto antigo reverenciando a deusa.

“ Mãe do Mundo, Mãe dos homens

Rainha de Mokem-Tosh

Face da ternura

Deusa do amor e maternidade

Glorio-te, teu humilde filho

Olhai! Olhai meus caminhos

E agracie-me com seu amor

Ó Rainha de Mokem-Tosh”

Bebeu goles fartos da amarga seiva. E com a adaga fez um corte na mão esquerda, de onde brotou o sangue vívido e tocado pela luz da lua. Repousou a palma da mão ensanguentada sobre a face do espelho e fitando o reflexo de seus olhos recitou o poema de evocação da deusa.

“Alegre meu coração estará, quando os braços de Liadrad me envolverem. Alegre estarei, quando ao seu reino conduzir-me. Seu olhar inspira carinho, seus lábios apenas proferem amor, suas mão afastam o mal. Ouça minha súplica, rainha de Mokem-Tosh, e venha até mim. Ouça a amargura em minha voz, e venha retirá-la de mim. Seu humilde servo lhe convoca, e oferece sua alma como troca, para que venhas o quanto antes, e de mim faça sua morada. Venha e mostre ao mundo os mistérios que tem me mostrado.”

A face do espelho ondulou como a superfície da água, e por um instante revelou milhares de formas e cores confundindo-se com a luz da lua. Fausto retirou a mão e afastou-se, ofegante e assustado observada algo formar-se no reflexo do espelho.

Uma forma feminina, esguia e nua formava-se, adquiria forma cada vez mas rápido e claramente, e Fausto podia ouvir sua voz, doce e serena, lhe pedir para aproximar-se. Receoso avançou, e com cautela perguntou à forma no espelho quem era. “Sou Liadrad, sua mãe, sou mãe do Mundo, mãe dos Pilares da Criação. Sou aquela que te conhece desde o ventre.”

Fausto chorava e ria, balbuciava coisas ininteligíveis como uma criança que clama pela sua mãe. A forma no espelho estendeu a mão e pediu para que lhe ajudasse a passar para o seu plano, para que pudesse lhe abraçar, lhe dar o carinho que merecia como recompensa por ter lhe dado energia novamente. “Meus filhos e filhas abandonaram-me há tempos. Estava fraca e a tristeza e solidão tomavam conta da minha existência. Sofria por não poder ajudar meus filhos, ajudar o Mundo. Agradeço-te, Fausto meu filho, por ter dado a vida pela sua mãe e permitir que caminhasse pelo Mundo.”

Fausto segurou a mão da deusa através do reflexo do espelho e sentiu que suas energias conectavam-se, entrelaçavam-se e aquela tristeza e solidão afastavam-se cada vez mais. A deusa tomava forma mais humana e feminina à medida que atravessava o espelho. Porém, Fausto, notara que ao invés de forma-se pernas humanas quando o corpo da deusa estivesse totalmente fora do espelho, formou-se uma massa amorfa e de cores que variavam em diversos espectros. Olhou assustado para ela, e tentou soltar-lhe a mão. Mas a deusa o segurou firme. “Não tenha medo meu filho. Estou fraca e não consigo tomar a forma a qual suas mentes me conceberam. Ajudai-me.”

Fausto não sabia o que fazer, nunca ninguém havia feito tal ritual com sucesso, e nunca na história tal ato logrou êxito como nesta noite. Perguntou a deusa o que seria preciso para lhe dar a força necessária e atravessar a barreira da criação estabelecida no espelho. “Apenas sua alma, seu corpo, meu filho. Preciso de sua energia, sua essência. Assim poderei atravessar para o Mundo, e ajudar meus filhos. Devorarei a cada um, para que seus sofrimentos acabem, para que nenhum sequer venha a sentir dor novamente. Eu sou Liadrad, a deusa do amor, misericórdia e carinho. Sou a mãe do Mundo e de tudo que há de bom. O mal não se deterá em minha frente. Não se preocupe, minha criança. Todos os meus filhos terão um lugar especial, em meio a minha essência.”

Fausto não conseguia soltar-se, e foi puxado para perto da deusa. Debatia-se intensamente, mas teve seus braços imobilizados e quebrados pelas mãos fortes da deusa. Jogou-o ao chão e começou a devorar seu rosto. Enquanto Fausto gritava e debatia-se e seus vizinhos acordavam e corriam para lhe acudir, a deusa falava com voz doce e acalentadora em meio ao sangue e carne sendo devorados: “Não se preocupe meu filho, hoje mesmo estará em um lugar especial, onde não sentirá mais dor, nenhum mal poderá se aproximar dos meus filhos. Hoje sua mãe caminhará pelo Mundo, trazendo paz à seus filhos.”

Tiros estilhaçavam o espelho que espalhava seus pedaços sobre a deusa e o corpo devorado de Fausto. Ela pôs-se de pé e entoou um cântico tão lindo enquanto era perfurada pelas balas, que nenhum ouvido humano havia escutado alguma vez na história. Cada homem e mulher, cada criança e velho ouviam e ordeiramente obedeciam seu chamado, caminhando para o abraço de sua mãe. A lua ocultou-se por detrás de nuvens negras e pesadas, e apenas os raios iluminaram aquela noite chuvosa e as ruas alagadas e ensanguentadas da cidade. A mãe do Mundo caminhava para acolher seus filhos.

Daniel Gross
Enviado por Daniel Gross em 27/08/2018
Código do texto: T6431792
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.