O QUARTO DOS SONHOS FEBRIS


 
Já era de se esperar que não conseguisse entrar no quarto, haviam dezenas de pequenas patas desenhadas no chão, rabiscos sem forma que pareciam ter sido desenhados por uma criança pequena com giz de cera. Os desenhos encaravam Daniela com uma certa indiferença, todos posicionados numa direção perfeita, num ângulo que podiam enxerga-la do lado de fora do quarto.
— Mãe, não quero ficar neste quarto. — Resmungou Daniela, num tom baixo e choroso.
— Não seja boba menina, vai dormir nesse e pronto, não vê que é o único de criança.
Daniela não respondeu, apenas levantou o braço e apontou para os desenhos. Gisele abriu a porta que já estava entreaberta e olhou na direção que a menina apontava, mas pelos seus olhos não enxergava desenho algum, somente uma parede rosa desbotada, com alguns focos de mofo no teto e uma luminária antiga.
— Está querendo me assustar... — Falou respirando aliviada.
— Mas os desenhos estão lá mamãe. Porque não está vendo? — Disse dilatando as covinhas da bochecha.
O açoalho também tinha marcas, não desenhos, marcas de... tiros. Gisele ignorou-as, pois já havia visto desde a visita antes da compra da casa, soube pela corretora que a família anterior desapareceu de um dia para noite, eram uma família muito conturbada, muitas brigas e discussões. Sangue foi achado no quarto da filha, mas nenhum corpo e com o tempo o estado anexou a casa, pondo a leilão.
— Filha, mamãe tem que resolver alguns assuntos na cidade. Fique em casa e não abra a porta para ninguém.
— Mãe... vai me deixar sozinha.
— Não acha que já é grandinha para isso. Fique aqui e se comporte.
— Mas mãe...
— Nem mais uma palavra.
Assustada, olhou de relance para dentro do quarto, os desenhos continuavam a fita-la, em sua maioria, rostos distorcidos, rabiscos que formavam rostos tristes, chorando. Era difícil cuidar de uma filha, ainda mais sozinha, tendo que trabalhar em período integral para conseguir manter a família. Gisele tirara aquele final de semana de folga para terminar de organizar a mudança, mas naquela tarde de sábado, teve de ir ao banco para assinar meia dúzia de papeis da compra da casa.
A arvore no quintal tinha pouco mais que cinco metros, arqueada alguns centímetros para o lado direito, tocando alguns galhos nas janelas da casa e na telha. Os cômodos do andar superior rangiam, como se respirassem, Daniela conseguia ouvir a telha se movendo, e uma farfalhar entranho dentro das paredes. Sozinha na casa, com as caixas ainda fechadas, sentia uma sensação claustrofóbica, como se as paredes da casa fossem se fechar a qualquer momento.
— Porque não vai embora, vai logo seu vagabundo, desgraçado, não importa mais... fica com aquela prostituta que deve valer mais do que ganha naquele seu serviço de merda... — Ouviu uma voz no ar, num tom baixo, até que desapareceu.
Meia hora após Gisele ir, ela continuava na sala, enrolada em um edredom verde, sentia sono, tentava bebericar alguns goles de um chá quente que sua mãe deixara na mesa, mas não estava familiarizada com o gosto, seus braços tremelicavam, era agosto e por mais frio que estivesse lá fora, lá dentro parecia estar pior, e não era só isso, um ar tristonho ribombava pela casa, como uma mancha de dor. — Toddynho. — Chamou Daniela.
Ela ouvia seu ronronar, em seguida, o pequeno gato listrado apareceu, arquejando-se e bocejando de detrás das almofadas ao lado de uma pilha de caixas.
Seus olhos se moveram na direção do corredor. Então um barulho alto de chuva chacoalhou em seus ouvidos, mesmo não estando chovendo lá fora. — Está casa é minha, não vou deixar destruir essa família e levar o único teto dos meus filhos. ­— Tracejou novamente a mesma voz, zumbindo em seus ouvidos quase de forma inaudível.
O telefone tocou abruptamente, fazendo-a perder o foco da voz.
— Querida, querida...
— Oi mãe.
— Está tudo bem aí com você.
— Esta, sim. Toddynho está dormindo nas almofadas de novo. — Respondeu sorrindo.
— Que bem. Estou na fila do banco ainda, daqui umas duas horas eu chego em caso, vou aproveitar e passar no mercado que tem ai perto, talvez eu até compre um pudim pra você.
— Serio mãe, oba...
— Mas não se empolgue muito, ou eles vão ficar mais saborosos ainda. — Brincou Gizele, fazendo-a rir.
— Tchau querida, ligo mais tarde antes de chegar está.
— Está bem, mãe. Tchau.
No momento que colocou o telefone no gancho, percebeu que Toddynho desaparecera das almofadas.
— Toddynho... — Pensou.
Uma cortina de seda cor chumbo invadiu seus olhos, fazendo com que sua visão ficasse embasada. Enquanto estava sentada no sofá, viu uma sombra cruzar a sala com pressa — Não acredito, como pode ficar aí sentado com seu filho desaparecido, está feliz, feliz... porque não vai embora de uma vez, ou morre se achar melhor. — Falou a sombra num tom feminino.
Daniele girou o rosto na direção da TV, havia uma segunda sombra, um pouco diferente, com uma silhueta masculina, sentada numa espécie de poltrona a frente da TV. Houve um barulho de vidro estilhaçando. — Mãe. Mãe... mãe acorda... acorda... — Ouviu desta vez uma voz de criança.
— Mãe... mãe... o que você fez com a mamãe...
Daniele correu, saindo da sala, deixando a xícara de chá cair no carpete limpo. As paredes seguiam-na, prendendo sua respiração, fazendo-a sufocar. Quando chegou no corredor principal do segundo andar, viu a porta de seu quarto aberta. Seu antebraço esquerdo coçava debilmente, como se sua pele tivesse se tornado uma maçã apodrecida, cheia de buracos gelatinosos, escuros, d´onde tinha medo que fossem sair vermes, então não parava de coçar, coçar, coçar... coçar, até que começasse a sair sangue.
A porta do quarto moveu-se, e uma luz amarelo-fosca surgiu, piscando simultaneamente. Seu coração acelerado pulsava de tal forma que conseguia senti-lo na garganta. — O que esta fazendo filho... abaixe essa arma, abaixe essa arma... não quer fazer isso... olha a mamãe esta b...
Um som estridente explodiu de dentro do quarto, como o som de um tiro. Em seguida, uma segunda explosão e um barulho, como se algo tivesse caído no chão com força.
Estava tão assustada que não conseguiu mais caminhar, então uma fita de sangue escorreu para fora do quarto, mas só conseguiu vê-la de relance, por alguns momentos, até desaparecer na frente de seus olhos. Olhando para trás, haviam três sombras enfileiradas na parede de mãos dadas, tinha a forma de três pessoas, mas não tinha cabeça.
Antes de se virar, uma sensação de terror a dominou, ela sabia que alguém estava atrás dela, pode escutar os dentes rangendo e o hálito escorregando por seu pescoço. Uma mão arrastou-se no ar em sua direção, tocando sua cocha, só conseguiu ver uma unha toda preta, e começou a gritar, correndo na direção do quarto.
— Eles não vão encontra-la aqui. — Sussurrou uma voz na sua cabeça.
— Será nosso esconderijo secreto.
— Se um dia precisar de mim, é só fazer um desenho na parede e virei na mesma hora. — Não conseguia tirar aquela voz da sua cabeça, como um tocador de fitas velho.
A cama tinha sido forrada, e havia um pijama dobrado sobre a cama. Daniele aproximou-se relutante, até que a porta do quarto bateu com força. A maçaneta vibrava, alguém tentava arrombar a porta, deixando-a apavorada.
— Sabe se a família lacrou esse quarto. É melhor arrombar, podem estar aí dentro. ­— Falou uma voz masculina dentro de seus pensamentos, diferente das demais que tinha ouvido.
Não tinha notado ainda, mas os desenhos no quarto, os rabiscos medonhos haviam desaparecido. Próximo do criado mudo, ao lado da janela notou uma sombra, pequena e mais esguia que as outras, estava de quatro no canto da parede, como se estivesse desenhando.
— Papai fez mamãe dormir... depois fiz papai dormir também... agora não consigo dormir... porque? — Disse uma voz, desta vez mais alta e clara, como se fosse real.
Um desenho formou-se sob a sombra, era um homem feito de palitos, com a cabeça cortada ao meio.
Não podia continuar vendo aquilo, então se cobriu com lençol azul da cama e fechou os olhos. Antes que percebesse tinha caído no sono. Daniele acordou horas depois, a luz do quarto estava apagada, e só conseguia enxergar pela luz que vinha do vão da porta. As pressas, ela correu até a porta, abrindo-a com calma.
A luz da cozinha estava acesa, iluminando gradualmente o corredor do segundo andar, até o quarto de Daniele. Um vulto cruzou seu caminho indo na direção das escadas. Devagar, ela saiu do quarto, seguindo até o final do corredor. Não tinha percebido, mas havia um rastro no chão, parecia ser sangue, mas estava escuro para confirmar.
— Desça Daniele... — Chamou uma voz desconhecida.
Daniele parou, mas voltou a andar segundos depois, tinha que ver o que estava acontecendo, e quanto mais se aproximava da cozinha podia sentir um cheiro maravilho de ensopado.
— Mãe? — Perguntou atônita.
O cheiro a hipnotizava, fazendo-a seguir para a cozinha.
— Não tenha medo. Venha experimentar um pouco.
Ela viu sua mãe, parada a frente do fogão, naquele momento, o peso dentro de coração derreteu-se num sentimento de alivio e ela correu na direção dela, correu até perceber que sua mãe não tinha sombra alguma. Haviam dois pratos na mesa, Daniele olhou de relance para eles, e notou que na sopa, haviam olhos, olhos humanos e uma dúzia de dedos picados. Gisele virou-se na sua direção, seu avental estava manchado de sangue, aquilo não era sua mãe. — Está tão saborosa filha. Não vai querer desperdiçar. — Ouviu uma voz grossa e distorcida latejar na sua cabeça.
Daniele tentou correr, então sua visão turvou-se inundando-se de cores esmaecidas, e de repente voltou ao quarto...
— Mãe, não quero ficar neste quarto. — Resmungou Daniela, num tom baixo e choroso.
— Não seja boba menina, vai dormir nesse e pronto, não vê que é o único de criança.
Havia algo estranho...
 
 
 
 
 
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 27/08/2018
Reeditado em 28/08/2018
Código do texto: T6431949
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