A CASA DO OUTRO LADO DA RUA
— PARTE 1 ­—
 
 
 
“A verdade continua sendo a mesma, maculada pelas transições incompletas...”
A Verdade
de Vinicius N. Neto
 
 
1
 
14 de maio de 1999
 
— Espera que eu acredite. — Insistiu Arthur coçando a garganta.
­Sofia virou-se devagar, encarando sinuosamente a casa do outro lado da rua pela janela.
— Confie em mim. Se não estivesse tão assustada talvez até desconfiasse, mas sou uma médium... — Explicou ela, apertando suavemente o copo que tinha na mão direita, fazendo sua pele vermelhecer.
— Mana, isso não é legal. Ser gótica não te transforma numa médium. — Respondeu numa expressão fechada.
Ela continuou observando a casa, encostada na pia, Arthur vira que estava pálida, de forma que nunca havia visto antes, deixando-o cada vez mais assustado, contudo não queria deixar que notasse, ou poderia acabar dar razão. Não era a primeira vez que Sofia insinuava algo sobre aquela casa, a casa dos Bentos, abandonada desde o verão passado quando um novo inquilino a alugou por deus-sabe-lá-quanto.
— O que estão fazendo crianças? — Perguntou a mãe, dona Salete, abrindo entrando abruptamente pela porta da cozinha.
Arthur fungou estressado, queria que Salete parasse de ser estranha, talvez ao menos parasse com esse seu jeito mordaz, agindo como se realmente fosse uma médium. Antes que Sofia terminasse de desembrulhar as compras, algo se chocou contra a janela da cozinha, estilhaçando o vidro, e indo parar em baixo da mesa.
— Que horror! — Gritou Salete, pondo as mãos no rosto.
De relance, enquanto estava distraída com a coisa que se debatia violentamente em baixo da mesa, Sofia podia jurar que havia visto alguém com uma máscara de javali no quintal, com as orelhas costuradas e a boca enfeitada com dois caninos longos.
— Pega o cabo de vassoura garota, vamos, logo.
— Calma mãe, é só um pombo.
— Vamos menina, traz logo! — Agitou-se, cercando a coisa para que não entrasse na sala.
Salete posicionou a vassoura na direção do bicho que se contorcia abaixo da mesa, esguichos de sangue manchavam o azulejo branco, e um corvejar rouco e medonho silvava, deixando as duas ainda mais agoniadas. O primeiro golpe, ridiculamente fraco e desajeitado encostou na asa, o que acabou fazendo-o vir em sua direção, trombando numa das pernas da mesa, assustada Salete levantou o pê e acertou-o com toda a força, esmagando sua cabeça, o estalo lacerante a fez gritar. Recuando aos poucos, sentiu nojo, não queria ter esmagado aquilo.
— É um corvo... — Falou Sofia, paralisada ao lado da pia.
Ambas podiam ouvir a respiração uma da outra, agitada e carregada. Sofia, ouviu o corvejar de mais três corvos no alto do poste a frente de sua casa, eles a observavam fixamente com os picos chacoalhando.
— O que está olhando? — Suspirou Salete, enrolando a coisa num pano de chão.
— Nada. — Fez que não.
— Olha só... tinha acabado de comprar esse frango. — Levantou a sacola do frango que havia estourado no chão.
 Naquela manhã, mil coisas pareciam estar acontecendo ao mesmo tempo, como num efeito domino. Jaqueline tinha passado a noite fora de casa, mesmo sabendo que deveria estar em casa antes da meia noite. Fazia dois anos que tinha descoberto uma DST, — AIDS. — Falou o médico, como se fosse uma notícia normal que dava a qualquer paciente que entrasse na sua sala. Mas, o pior não era isso, seis meses antes de descobrir a doença, engravidou de um traficante que acabou sendo duas semanas após o teste de gravides ter dado positivo. As coisas nunca mais foram as mesmas, desde então Jaqueline só chegava em casa de madrugada, costumava sair para longe, cruzava a cidade, e na maioria das vezes chegava em casa drogada. Salete não tinha forças para segura-la, mal conseguia lutar contra o câncer no esôfago.
A televisão da sala estava sintonizada no canal cinco, porém, era difícil assistir alguma coisa com o chiado alto e os chuviscos distorcendo as cores. — Mãe, a TV está ruim de novo.
— Deixe eu arrumar as coisas aqui que vou dar uma olhada.
Impaciente, desligou-a, deitando-se no sofá. Um carro passou na rua, buzinando repetidas vezes, seria jogo do Corinthians mais tarde, então era comum que isso acontecesse. — Médium, eu-sou-uma-médium... — Pensou devagar, tentando convencer-se que era verdade, até ouvir o guincho de um porco ecoar na sua mente.
— Pare! — Berrou repentinamente.
— O que foi filha? — Perguntou Salete da cozinha, junto a um barulho de água corrente.
— Nada não mãe. — Respondeu num tom elevado e desnatural.
Suas férias de verão tinham tomado um rumo grotescamente chato, e tinha medo que não melhorasse até o final do mês.
Arthur trancou a porta, após não ouvir mais a voz delas. — Na escuta... — Disse ao rádio.
— Na escuta Delta otário. — Respondeu.
— Lucas, minha mãe quer me vá morar com meu pai na zona norte... zona norte cara, lá na onde judas perdeu as botas...
— Que chato cara.
— Pois é... depois da Jak ter pego aquela doença, tudo piorou.
Um som estático interferiu no rádio, e todas as luzes do aparelho começaram a piscar sucessivamente, fazendo-o largar o rádio com medo.
­— Cara, o que aconteceu... ficou mudo. — Falou Lucas.
Arthur abaixou-se apanhando-o.
— Cara, ainda está ai...
— Estou seu trouxa. — Falou assustado.
Sentando na cama, começou a arremessar uma bola de tênis na parede, sempre segurando e atirando-a de volta. Parado, com o rádio próximo do ouvido, enquanto arremessava a bola, pode ouvir a estática de novo, porém desta vez, o som parecia sintonizar numa frequência onde era possível ouvir uma voz bem baixa.
— ririri... ririri... ririri... assusta... ririri... ririri... ririri... assusta... — Dizia a voz repetidas vezes, num timbre grave apavorante, como a voz de um palhaço de circo.
Distraído não conseguiu agarrou a bola de tênis, deixando-a acertar seu ombro com força. O golpe lhe fez derrubar o rádio no chão, quebrando-o parte da antena.
— Está me ouvindo. Lucas... — Tentou liga-lo, mas desta vez, nenhuma das luzes acendia.
Arthur piscou o olho meia dúzia de vezes, não se lembrava de como tinha pegado no sono, mas o fez, e acordou como se na mesma hora, porém estava parado dentro de uma sala vazia, iluminada pelo crepúsculo em tons alaranjado-vermelho. Era a casa do outro lado da rua, afinal conhecia aquele cômodo muito bem. Valério parecia não estar em casa. Seu gosto por mobília tinha evoluído desde a última vez que esteve na casa, agora, havia retirado todos os moveis da sala. Suado e com uma respiração acelerada, ele sentiu as mãos grudentas, olhando para abaixo, notou que estavam cheias de sangue.
 
 
 
 
 
CONTINUA...
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 29/08/2018
Reeditado em 29/08/2018
Código do texto: T6434082
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