A DANÇA DO SONO

 
 
A arma pendia em sua mão calejada, doendo cada vez mais, enquanto tremelicava a ponta dos dedos sobre o gatilho. João esperou, olhando para o corpo de Carla, as nuvens cinzas cor chumbo enfileiravam-se no céu por quase todo o horizonte, deveria chover pensou, deveria realmente chover, mas não aconteceu, as ruas continuariam manchadas de morte por mais um dia.
Ele desceu da beirada do telhado, não conseguia apertar o gatilho, mesmo com a imagem de sua mulher morta nítida em sua mente.
— Por que eu não consigo. — Respirou lacrimejando, sentindo uma ardência no peito.
Desesperado saiu do hospital, deixando o corpo de sua mulher, por um momento sentiu-se culpado por deixa-la, deveria ter se matado, pensou eufórico. Dúzias de carros abandonados a sua frente bloqueavam a passagem, a plataforma próxima do desvio, estava livre, mas lotada de corpos que apodreciam no asfalto. João equilibrou-se no meio fio, subindo sobre uma charrete ao lado de um cavalo morto.
— Por quê? — Ouviu uma voz de criança vinda alguns metros dali.
— Por que não está dormindo como os outros... — Falou uma segunda voz de criança, também não tão longe dali.
De repente a sirene de uma ambulância soou, o carro estava capotado ao lado de um poste, com três cadáveres pendurados pelas janelas.
— Diga, por que não dorme?
— Eu não sei! — Respondeu baixo.
Uma lança ergue-se de detrás de um carro, assustando-o.
— Quer mesmo que acreditemos nisso. — Berrou a primeira voz.
— Minha mulher está morta, eu provavelmente estarei... então deixem-me em paz.
João reparou pelo retrovisor de um fusca amarelo que haviam duas crianças atrás de Honda Civic prateado, uma delas, um garoto vestindo um gorro preto segurava uma lança e a outra, uma menina loira e esquelética debruçava-se sobre o garoto, assustada.
— Sua mulher morreu?
Ele não respondeu, apenas apertou a mão e se aproximou do Honda devagar.
— Não ouviu. Sua mulher morreu mesmo?
— É... ela morreu... junto com nosso filho.
Enquanto cochichavam, perderam João de vista, a lança na mão do garoto tombou para esquerda. João saltou sobre eles, tomando-lhe a lança.
— Que droga... que porra estão fazendo.
William afastou-se, segurando sua irmã, ambos estavam com as roupas encharcadas de sangue e pequenos nacos de carne podre.
— Respondam, o que querem...
O estômago de Isabele roncou alto, Wiliam encarou-o com uma expressão forte, fechada e austera, seus olhos se contraiam, piscando fora do normal.
— Porque não está dormindo como os outros? — Perguntou William.
— Se soubesse não estaria aqui, não acha? — Empunhou a lança fitando-os com veemência.
Ao se aproximar, William correu, deixando Isabele que escorregara. João, segurou o ombro da menina que o mordeu arrancando-lhe um pedaço do dedo indicador. Isabele correu a direção oposta de William, cambaleando. João notou que ela tinha uma ferida grave na cocha, que já estava infeccionada.
— Espere garota. — Gritou João, tentando alcança-la.
Após tê-la perdido de vista, resolveu voltar a estrada, um pouco tonto e desidratado, bambeou colocando a mão na cabeça, uma luz forte brilhava próximo da grama alta, um ponto branco a cinco metros dele. Haviam dois cadáveres na calçada, um jovem de boné e moletom, seu rosto estava sendo devorado por formigas negras que furavam sua pele fazendo um ninho dentro de seu crânio, o outro corpo de uma senhora estava de bruxos no chão, ao lado de uma poça de sangue coagulado.
Ele correu por cerca de um quilometro, seus pés cansados tentavam se esforçar cada vez mais para não desistirem. Antes de chegar na estação do Carrão, cruzando a Radial, avistou um caminhão pegando fogo, as chamas esporádicas reluziam iluminam a área ao seu redor. Aproximando-se com cuidado, sentiu algo chocar-se contra sua nuca e caiu desacordado.
— Vamos fazer o que com ele?
— Ele não caiu no sono ainda, ele não caiu no sono ainda mano. — Disse Isabele, amarrando seus braços.
— Talvez seja como nós. — Falou William.
— Como nós? — Indagou Isabele receosa.
— Não somos os únicos, deve ter sobrado mais gente. Nossos pais podem estar vivos.
— Eles estão mortos...
— Como sabe? Não temos como ter certeza...
— Eles morreram maninha, eles morreram.
— Não sabe disso. — Respondeu chorando.
— Antes de fugirmos, voltei para casa e os encontrei... caídos na sala.
João sentiu uma pancada no pescoço, como um chute e em seguida algo quente caiu sobre sua testa.
— Não chore mana.
Enquanto abria os olhos, João percebei uma serie de cordas envolvendo seu corpo, as cordas passavam por seus braços, em volta da coluna e pela cintura, não conseguia mover nenhuma parte do corpo acima da cintura.
— Como está vivo? — Gritou William, batendo em seu rosto com força.
— Malditos, por que me amarraram.
— Eu fiz uma pergunta. Por que está vivo?
— Por que não deveria estar?
— Filho da puta, não vou perguntar de novo. — Ameaçou William dando-lhe um soco no rosto.
— Preferia estar morto. Estão me ouvindo, queria estar morto.
Isabele segurou o punho de William antes que lhe batesse de novo.
— Não queremos fazer mal a você. Estamos com medo. É o primeiro que vemos desde que começou... — Aproximou-se Isabele, desamarrando-o.
— Não faça isso.
— Não podemos deixa-lo assim.
João abaixou a cabeça e começou a chorar.
— Eu ia ser pai. Mas ela morreu naquela mesa, morreu com nosso bebe. Eu subi no telhado com a medica. Ela conseguiu fazer, já eu não tive coragem suficiente.
William entreolhou João desconfiado e deixou-a desamarra-lo.
— A Dança do sono... é assim que chamamos, a dança do sono... — Falou William.
— Já andamos pela maior parte da Radial. Mal conseguimos encontrar comida, só encontramos morte... morte... e mais morte... tínhamos encontrado um garoto mais novo, pouco depois que tudo começou, mas ele morreu como os outros, foi dormir e não acordou mais. Tem aqueles que voltam, é difícil, não acontece com todos, mas pode acabar voltando, mas voltam totalmente diferentes, mais agressivos e brutais...
— Eu peguei a sua arma... eu não... — Avisou Isabele, caindo no chão.
— Isa... Isa... Ai meu Deus Isa acorda.
­— O que aconteceu com a perna dela? — Perguntou João.
William ignorou-o, pressionando o peito dela seguidas vezes.
— Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda.
Isabele abriu os olhos abruptamente sem que William percebe, suas orbitas estavam tão avermelhadas que começou a lacrimejar sangue. Ele se levantou alguns centímetros assustado, Isabele puxou seu braço aproximando seu rosto e mordeu seu pescoço, arrancando-lhe um naco de carne grosso. William se debateu, forçando-a a lhe soltar. João afastou-se, vendo-o o gritar. Isabele engoliu o tinha na boca e em seguida deu mais uma mordida, desta vez na orelha, William começou a perder a força, até que desmaiou e ela pode continuar comendo.
João correu na direção do escuro, deixando-os para trás, enquanto uma nevoa densa tomava conta da estrada.

 
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SAÍDA PERIGOSA
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 30/08/2018
Reeditado em 30/08/2018
Código do texto: T6435020
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