Armadilha-CLTS 05

A estrada era de barro, longa, esburacada, serpenteava pelo verde. Passava por um pequeno povoado de boias-frias e depois seguia alguns quilômetros até encontrar outra vez o asfalto e continuar até a próxima cidade. Era uma estrada deserta e laranja. Misteriosa.

Por ela passavam algumas motos, raramente pessoas a pé, vez ou outra, caminhões de cana em alta velocidade que levantavam poeira e assustavam os pássaros que repousavam nas árvores que margeavam a estrada. Isso quebrava o silêncio. Carros não eram comuns por ali porque a estrada era um atalho, usada geralmente por caminhoneiros, não era segura pra quem não a conhecia e diziam que havia corpos enterrados pelo mato ao redor. Corpos que jamais seriam encontrados. Do povoado próximo sempre se ouviam disparos na madrugada, mas ninguém ouvia nada. Essa era a lei.

Assim como a tal estrada sem importância que levava ao povoado sem importância onde as pessoas não tinham importância e ninguém se importava, havia por ali um cachorro sem importância, tão magro que quando andava ficava ganindo como se sentisse dor, embora não estivesse machucado. Seu pelo estava precisando de tosa e disfarçava a perda de peso. Já havia sido gordo um dia. Um poodle com família. A dor vinha das lembranças de sua antiga família, família que dias antes o jogou do carro quando passaram por essa estrada de barro. Pela janela. Ele correu, correu e correu pensando que aquela nova brincadeira era engraçada, mas cansava, balançou o pedaço de rabo e esperou que o carro parasse pra ele encher seus donos de lambidas esganiçadas, como sempre fez desde que se lembrava. Cachorros nunca esqueciam as coisas.

Mas o carro vermelho e barulhento foi embora. Deixou só poeira. Ele ficou sentado, a língua pendurada no canto da boca, os olhos brilhando e o coração acelerado. Viu quando o carro sumiu no horizonte e ficou parado até seus ouvidos deixarem de ouvir os ultrassons vindos do motor distante do carro. Ao seu redor havia árvores e uma cerca viva onde além um campo se estendia até se perder de vista. Mais à frente era a mata. Estava em pânico. Ele nunca havia saído do apartamento onde um dia recebeu abraços e carinhos dos mais estranhos, onde ele aprendeu a esperar até a hora certa quando seus mestres colocavam em seu pescoço aquela coisa que significava que ele ia sair e não ia melar o chão. Nem apanhar. Uma vez ele sujou o chão e um de seus mestres apertou seu pescoço... Ele não conseguiu respirar... mas assim que o Mestre o soltou, ele com o rabo abanando se esfregou em suas pernas até que veio um chute. Doeu muito. Então ele se escondeu. Depois esqueceu. Não esqueceu, deixou pra lá, porque seus mestres eram amados por ele. Ainda tentava entender o que havia acontecido. Era um cachorro meio lento pra aprender, mas muito rápido pra amar. Por amar ele esperou por muito tempo com determinada confiança. Ainda acreditava... não podia ter sido abandonado...

Agora não havia mais a sua vasilha de água nem sua vasilha de ração, havia sede e fome. Dez dias. De noite o frio era desconhecido pra ele, se assustava com os sons da mata, sons esquisitos, havia sido um cachorro de apartamento, ficava ouvindo o som dos carros que cortavam as madrugadas e de vez em quando ao ouvir passos no corredor do prédio arriscava uns latidos baixos em direção à fresta por baixo da porta, acreditava estar intimidando a origem dos passos. Não era um cão de guarda, porém a verdade em defender seus Mestres era uma verdade que jamais poderia ser desfeita, porque ele era o cão. Não houve tanta escolha pra ele assim como não houve para nós. Homens, cães, deuses... Em qual ordem?

E o cão chorou. Chorou todo o dia. Os dias todos.

Ele tentou caminhar pela estrada e mais uma vez viu muitos que nunca havia visto, os outros. Ele via dos “Dois Lados”, esse era seu talento. Um deles passou perto dele bem rápido e disse que se chamava tatu, perguntou o que um como ele fazia por ali, e disse que a raposa podia querer arrancar um pedaço dele. O cão disse que havia sido deixado ali e tatu sumiu pelo mato rindo. Dois imensos olhos então brilharam na escuridão acima de um galho e então a coruja perguntou de novo se o cão poderia deixar de amar. “Deixar de amar? Como assim?”, o cão respondeu e pareceu confiar um pouco na voz daquela coruja. Era a terceira vez que ela lhe falava desde o acontecido. Já havia visto uma coruja branca da janela do apartamento, a coruja olhara no fundo dos seus olhos e o cão viu que havia um rato entre suas garras. Então percebeu que talvez essa coruja não fosse tão confiável... “Seus Mestres... pode deixar de amá-los? Vendo a você mesmo agora, conseguiria? Será que já ouviu falar em justiça, cachorro falso?”. O cão não entendeu por que havia sido chamado de cachorro falso. Ele que sempre foi tão verdadeiro. Mas naquele escuro não havia tantas outras opções, era a coruja, a fome, o medo, a dor, as lembranças, ou o nada. Qual ele deveria escolher? Ele não era um rato. Ratos sempre souberam a verdade sobre a ratoeira, mas o desejo é mais forte. Eles sabem que é fim certo mas existe um vazio. Ele era um cão com princípios, embora nada conhecesse do mundo selvagem. O mundo era naturalmente selvagem...

E mais um dia amanheceu. O último. O décimo primeiro.

O cão andou cambaleante o quanto pôde mas parecia que a estrada não tinha fim. A mata era cada vez mais fechada e assustadora, às vezes canaviais surgiam, e o cão não comia nada há duas semanas, tudo começou ainda no apartamento, o deixaram sem comida, seus mestres haviam saído por alguns dias depois que um deles acertou o outro no rosto e ele a viu chorar, bebeu um pouco de água da chuva, mas estava lama pura, e agora não passava de um saco de ossos esquecido num lugar que jamais imaginara, havia sido um cão de apartamento desde sempre. Os rostos de seus Mestres já começavam a se desintegrar no crescer da fome que enfraquece. Então, uma sombra se formou e foi crescendo sobre o chão vermelho e o cão olhou assustado pra cima, o sol escaldante encandeando a vista que já enxergava mais as coisas do “Outro Lado”. Estava morrendo... Fome ou tristeza?

Uma grande ave negra pousou a alguns metros do cão e abriu as asas que tinham as penas da ponta brancas. O bico era longo e encurvado. O cão era tolo mas havia um instinto e este era intrínseco; sobrevivência. Do “Outro Lado” das coisas ele viu que havia ainda mais negro ao redor do pássaro, havia muitos perdidos nesse negro... ele viu rostos de outros que agora eram apenas sombras... Do Lado de cá, ele viu um enorme urubu que lhe sorriu e disse-lhe que se fosse um pouco mais rápido encontraria uma enorme poça de água limpa da chuva, que o sol estava realmente muito quente, que se ele andasse um pouco mais rápido talvez ainda houvesse uma chance de encontrá-la. Chance de sobreviver.

Orelhas baixas, rabo entre as pernas (imaginário; só um pedaço; seu rabo fora seccionado) o cão olhou a ave e ela lhe sorriu como a um amigo. “Que estranho”, pensou o cão, “não pareço mais ter medo dessa ave... ela me parece tão... tão verdadeira... sem disfarces... eu sinto”, o cão já não via um sorriso há vários dias e isso lhe encheu de verdadeira confiança. “Vamos garoto, corra e chegue a tempo pra beber de uma boa água antes que ela fique barrenta!”, o urubu falou e fechou suas asas, fazendo com que o cão visse ainda melhor aquele sorriso amigável. O cão disparou com as últimas energias que possuía e fez a curva cinquenta metros à frente e lá estava uma enorme poça de água cristalina, vinda de qualquer lugar desconhecido, água limpa e fresca.

Enquanto matava sua sede o cão apenas pensava que tudo que estava vivendo poderia ser apenas um teste, um teste de fidelidade e lealdade para com seus donos, que a qualquer instante eles voltariam e o abraçariam e tudo isso seria esquecido porque tudo que ele mais amava, mesmo que não soubesse o motivo de tanto amor, era seus donos. Seus Mestres, como se habituou a chama-los. Como cão desejava mais que tudo que sua linguagem pudesse ser entendida por eles, tanta coisa seria evitada porque ele, o cão, podia ver dos “Dois Lados”, poderia avisá-los das ciladas... das armadilhas... mas ele delataria a todos os outros como ele. O segredo seria descoberto, e certamente os homens não amariam em verdade os animais. Não aceitariam se verem tão reduzidos.

Mais uma vez houve um outro pouso. O urubu parou do outro lado da poça e permaneceu parado observando o cão sedento lamber a água de maneira alvoroçada.

- Você me parece que tinha dono... não é? O que faz aqui? Ah! Não responda! Sei quem você é, lembro de ter visto o que te aconteceu lá do alto, já faz alguns dias heim?- o cão parou de beber água e seus olhos brilharam porque havia relembrado dos últimos dias. Vinha esquecendo a cada novo dia o dia anterior, acreditava que assim poderia encontrar uma solução.

- Sim, foi você mesmo. Vi quando o carro passou e você foi jogado pra fora. Foi triste... Por que você correu tanto? Não percebeu que não parariam? - enquanto falava ainda havia o sorriso no rosto do urubu, e o cão confundia medo, confiança, amor e tristeza. E havia ainda a fome. Parecia que o cão havia se conformado. Nunca pensou que poderia acontecer com ele tal desgraça.

- Por que fizeram isso comigo? - o cão viu seu reflexo no espelho da água empoçada e só então sentiu confirmada a impressão de que não se tratava de uma prova o que estava vivendo. Ele estava acabado, como os cachorros que um dia viu durante os passeios. Era uma condenação. Uma sentença por não poder ter escolhido não ser cão. Seu destino estaria pra sempre acorrentado a quem fosse seu mestre, e na ausência de um, seria a eterna procura. Até que houvesse um fim.

- Só posso te dizer filho que os Mestres às vezes fazem coisas e se arrependem depois... ainda acredita que eles podem voltar não é?- o urubu falava e aos poucos o cão se rendeu àquelas palavras que se encaixavam com sua desilusão, ele pensava em seus Mestres porém não admitia o abandono, mas sabia. Sabia que fora entregue à morte... Mas... por quê?

E eles então desataram em uma longa conversa. Pela primeira vez em quase duas semanas o cão encontrou alguém que pudesse ouvi-lo, alguém a quem poderia se abrir e deixar transbordar toda a mágoa que há dias aprisionava. Relembrou momentos de felicidade que aconteceram nos cinco anos de sua existência, lembrou do vidro do shopping separando ele daqueles olhos alegres que o apontavam e fizeram com que o retirassem da gaiola diretamente para uma outra vida... Lembrou dos primeiros banhos e de sua coleira vermelha, tinha uma azul mas adorava a vermelha... ela se destacava em seu pelo branco, pelo macio e cheio. Tentou esconder as lembranças das surras que levara apenas por tentar demostrar seu carinho esperando seus Mestres na cama, quando derrubava algumas panelas pra que eles o olhassem e quisessem acariciar suas orelhas, mas de repente eram só chutes e gritos. Impaciência, brigas entre eles, seus Mestres. Lembrou que havia visto aquela mulher estranha do andar de baixo conversando com um de seus mestres e de como ela o olhou enquanto ele tentava avisar aos Mestres que ela não era uma boa pessoa, que ela queria o que eles tinham, mas não conseguiu. “Au au a uau au!!”, “Passe pra lá seu cachorro idiota!”. O urubu ofereceu seu ombro pra que ele chorasse, o aconselhou, ensinou caminhos pra que ele superasse a dor e a raiva e os amasse... que acreditasse neles, que se pusesse no lugar deles, e o cão o agradeceu como teria agradecido se tivesse um de seus irmãos ao seu lado. Conversaram até que o sol começou a se distanciar. A noite vinha rápida. O urubu trouxe-lhe um osso de boi, o que aumentou ainda mais a confiança entre eles. Mas não matou sua fome. Jamais comera um osso. Somente ração.

Em dado momento o urubu disse que havia uma coisa que poucos sabiam sobre os urubus. Assim como cães possuíam seus talentos naturais, os urubus também possuíam os seus... Disse que era difícil explicar mas isso não vinha ao caso... e fez uma pergunta ao cão e pediu total sinceridade, ele havia sentido algo... “Você os perdoaria? Se eles voltassem hoje, seria capaz de esquecer o que passou aqui?”, enquanto perguntava o sorriso não desapareceu um instante de seu rosto, que ao cão lembrou o de um irmão, estava tão abatido e fragilizado que veria família em qualquer um que se prontificasse a escutá-lo. Agora percebia que era um cão, nenhum dos sonhos que teve em que era humano e beijava uma mulher fazia o menor sentido... ele era um cão. Não havia nada que pudesse alterar esse fato, essa verdade. Mas o que ele fez dele mesmo? Teve alguma escolha? Por que precisava de um Mestre? Por que os humanos eram os Mestres? Como seria não ter um?

Enquanto conversavam, vários animais, os outros, como o cão os chamavam, passavam e ficavam a observar os dois. Lagartos, aves, cobras, um cavalo, fora os menores, os que os mestres chamavam de insetos. Todos pareciam fugir do olhar do urubu. Sussurravam. O cão não conseguia ouvi-los. O urubu os ignorava. E o sol caminhou para a hora final.

- O que você diria se eu te dissesse que consigo senti-los voltando? Acreditaria? Posso te garantir, eu sinto, eu sei, o Criador sabe que sei - o urubu fez cara de quem está atento, esticou o pescoço para um lado e deixou-se demorar um pouco. Sons inaudíveis surgiam.

- Você tá falando sério? Como pode saber disso? Consigo sentir algo se aproximando...Você acha que são eles? Será? - uma tremelicante sensação de felicidade tomou conta do cão que se arrepiava todo ao pensar na possibilidade de seus Mestres estarem de volta depois de todos esses dias, o que eles diriam a ele? Como ele reagiria? De uma coisa o cão estava certo; ele os perdoaria. Já estavam perdoados. O que havia sentido era tão parte de um passado quanto as coisas que ele não lembrava sobre antes da gaiola no shopping.

- Vou voar o mais alto que puder pra ver se vejo se são eles, você tem que ser feliz garoto! Simpatizei com você! - o urubu abriu as asas e correu um pouco, saltou e subiu com graça sob o avermelhado do dia que partia, o cão já esgotado pela desastrosa verdade que era o que ele não aceitava, viu o urubu subir e clamou para que o urubu lhe dissesse qualquer coisa que pudesse desfazer aquilo que, por ser tão devastador, consertou tudo o que ele tencionava mudar com relação aos seus Mestres. Ele decidiu que amá-los sem limites seria sua única verdade... bastava que eles apontassem no horizonte daquela estrada e o tomassem nos braços... e seria o recomeço... e o mesmo amor... O perdão era pra ele como o amor era para o seu existir de cão...

O som crescia na audição apurada do cão abandonado. Algo se aproximava, quilômetros dali mas ele pressentia, conseguia sentir a vibração da terra. Tudo que ele mais queria era que eles voltassem. Desejava profundamente. Uma fina certeza de que de alguma forma deixaria o sofrimento por algo novo, algo que somente largado naquela estrada ele teria compreendido... O som que crescia lembrava algo familiar, ele sempre reconheceu o som do carro de seus Mestres de longe, o som do motor, do apartamento sabia que eles se aproximavam ainda há quatro ou cinco quarteirões, a ansiedade que o assaltava nesses momentos geravam os latidos de alegria que depois vieram a ser parte de sua condenação, ele gritava alto demais, mas os humanos não entendiam. Só entendiam que ele lhes atrapalhava o sono e a concentração, não servia para amá-los. Amar era dispensável...

Enquanto estava imerso em seus devaneios de retorno e esquecimento, o cão não viu quando o urubu aterrissou, apenas ouviu seus passos rápidos e quando o olhou a expressão no olhar do urubu pareceu fazer parte do que aguardara.

- São eles! Eu pude ver! É um carro vermelho! Um homem e uma mulher nos bancos da frente. Estão te procurando! - o urubu parecia mais feliz com a notícia do que o cão, o que fez com que ele sentisse brotar um amor por aquele outro diferente de tudo que havia conhecido até então, era um respeito que sempre lembraria enquanto fosse cão, uma energia que fazia com que eles, tão diferentes quanto eram, um com os céus ao alcance, o outro com a capacidade de amar... irmãos. Irmão em vida, irmãos de vida. Haveria uma dívida ali, o cão pensava em como pagá-la... Não sabia, mas por reconhecer que precisava para que se sentisse digno de tudo o que estava lhe acontecendo, pagaria. Disse com olhos marejados pela dor que já era parte de um passado, pois ele sentia que o teste chegava ao fim. “Obrigado meu amigo... Nunca esquecerei disso...”, as lágrimas escorreram, mas o urubu não viu, olhava pra o fim da estrada sob a tarde que já se convertia em noite e apontava sua asa negra, luzes de faróis despontavam no horizonte e ambos ouviam o som do motor que parecia trazer vida ao resto de cão que ali sacolejante partia em direção ao carro que se aproximava. Ele havia reconhecido o som. Eram eles.

O cão correu como se não houvesse mais nada em sua vida a fazer, correu e em seus olhos o brilho da luz vinda dos faróis refletiam a descompassada certeza de que teria uma nova chance independente do que tivesse feito, se ele errou para com seus amados Mestres, agora já havia aprendido. Ama-los sem limites. Obediência. A vida dele pela deles... A sina do cão que ama às vezes é como uma tragédia... Os olhos do cão conseguiram fitar por alguns instantes os olhos inconfundíveis de seus amados donos e ele sentiu que seu coração pararia caso não parasse. Mas esperou que eles parassem, eles que já o estavam vendo sob a luz esperançosa dos faróis abençoados de sua carruagem. Mestres amados... Continuou correndo e só pôde perceber milésimos antes do fim que o gigantesco caminhão abarrotado de caixas com galinhas brancas o estraçalharia. Era uma ilusão... uma miragem... mas não doeu...

Num reflexo centesimal puxou um pouco o corpo esquelético pra o lado mas a cabeça se esfarelou sob o pneu careca do caminhão... na estrada de barro laranja, que com uma pequena mão de vermelho somado ao crepúsculo agonizante, coloriram a escuridão que firmava os dois pés pra assumir seu turno. Sangue e terra. Pela manhã, todos veriam a tela pronta. O corpo se debateu alguns segundos, uma urina que o cão não sabia que ainda estocava escorria lentamente num filete que escorreu até tocar as plantas na beira da estrada. O homem por trás do volante não viu nada. Mas pensou ter passado por cima de algum pedregulho.

O urubu circulou o que um dia foi um cão com sonhos, mas que agora era uma cena tão desconcertante pra qualquer outro como para humanos, a morte ofende a visão, nem quando é justa pra alguns ameniza a aversão que seu cheiro traz. Sangue púrpura escorria e a cabeça do cão virara um moído de ossos com um tom amarelado. No rosto do urubu um sorriso triunfante não se continha, dentro dele explosões de uma alegria incontrolável emergiam em saltos contínuos com as asas abertas. Nunca havia comido um cão branco em toda sua longa vida de urubu! Os que já haviam comido eram unânimes; não há melhor carniça. E ele havia desejado com tanta força que seu desejo o fez evoluir para uma categoria que jamais pensara poder ser capaz; predador. Precisou romper com as convenções de sua existência que haviam decretado desde tempos imemoriais a todos como ele o cargo de lixeiros. Comiam o que já não prestava, não caçavam, viviam esmolando. Virou um caçador usando sua melhor arma... a astúcia... a lábia... só ele sabia o quanto o desejo lhe tomava a vida. Queria provar do cão, de sua carne... suas vísceras estouradas pelo tempo que eles, os urubus, carinhosamente chamam entre si de “tempoero”, porque pra eles é como um tempero. O cheiro da podridão inevitável... da decomposição do sem valor... do corpo morto... os fascinava. E ali estava seu cão... só pra ele... Não havia nenhum outro urubu por ali, ele era um desgarrado em busca da saciedade do seu desejo. Voou milhas enquanto desejava, estava no lugar certo na hora certa. Foi paciente, observou. Lembrou que o tempo era um tempero e esperou que o bendito cão sonhado estivesse no ponto pra cair na armadilha. Sabia do desejo do cão, ele foi abandonado, os mestres dele queriam mais que ele morresse mesmo, mas ele queria voltar, sabia que o desejo o dominava, falava. Caminharia sem nenhum questionamento rumo à armadilha se lhe oferecessem o desejo certo... um desejo que saciaria outro desejo... o desejo de um bom e obediente urubu. Um humilde lixeiro que agora carregava uma altivez de gavião. Caça por caça, estavam igualados, usa-se as armas que se tem... O urubu sabia... o desejo é uma armadilha...

Só precisaria esperar o tempo certo, dias, semanas, dependeria de tudo, do tempo, mas assim que o cheiro inigualável que permeava seu desejo profundo por sentir tal sabor fosse percebido, enterraria seu bico sortudo nas vísceras imaculadas de um cão que sonhava. Ele estava magro mas a pureza da carne compensaria qualquer coisa. Da cabeça só ficaram estilhaços, dentes e um pedaço de orelha que as formigas carregaram.

E os dias passaram. E o cheiro surgiu. Lentamente. Malicioso. As narinas do urubu que não saiu de perto de sua caça que parecia ter engordado, mas que era apenas inchaço do “tempero”, sentiam. Maravilha! Era melhor que voar! O cheiro o fez salivar e sem contar mais um segundo ele bicou primeiro o buraco onde antes havia uma cabeça de cão; Êxtase; Glória; O sabor era muito mais poderoso do que imaginou. Ao sentir o sabor do desejo escorrendo daquele banquete divino ele partiu em desesperadas bicadas rumo às vísceras sonhadas, e quando as alcançou o que sentiu foi indescritível... Quanto tempo de sua vida ele desejou aquele momento, aquela carniça especial... aquela carne que tantos falavam e que agora falava com ele... Tudo sumiu pra o urubu. Não havia nem a lembrança do céu. Apenas ele e seu tesouro encontrado, caçado... Era hora de se fartar. Devorar. Era tudo dele...

Durante a eternidade que há quando se está degustando do prazer de um desejo realizado, o urubu sentiu todas as variações daquela carne inchada e fétida, daquele corpo sem cabeça que quase não tinha carne, sua cabeça enterrada a revirar as tripas de um cão abandonado, ele não ouvia nem via nem sentia nada além do prazer de ter o que se deseja e se busca se valendo do que for necessário. Ele era um urubu, viveria o resto de sua vida em busca de outro cão, seria sua sina, o desejo o havia aprisionado para sempre...

E sem ouvir nada a não ser o som de suas bicadas, de olhos fechados não viu quando, como que surgido do nada, um caminhão baú, esse agora com três ocupantes (além do motorista, uma prostituta e um travesti dormiam embriagados na cama improvisada da boleia) propositalmente foi direcionado rumo àquela cena bizarra de um urubu com a cabeça enfiada num cão no meio da estrada. “Nossa Senhora! Quem já viu isso!”, o motorista estimulado artificialmente pensou que tinha que acabar com aquela desgraça porque o urubu já havia comido demais. Odiava urubus. Gritou quando acelerou...

Morre!

Pela segunda vez, o cão foi atropelado, depois de morto, de apodrecido, era tão branco e inocente, achou que sairiam pra passear... Dessa vez, sem cabeça, lhe restava o corpo repleto de bicadas pra ser desintegrado pelas toneladas das rodas. Só que dessa vez, misturado ao tapete irreconhecível de órgãos putrefatos e pelos... do que antes fora dotado de vida e da capacidade do mais puro amor... havia penas e vísceras quentes misturadas aos restos de um cão enganado... o enganado e quem enganou... mortos... Mas quem se enganou primeiro? O cão ouviu a coruja... e não conseguiu responde-la... não saberia. Cachorro falso... a coruja havia dito. Queria ele ser humano? Caindo na armadilha ele havia se tornado uma... O urubu também caiu... Ambos desejavam. O desejo é uma armadilha... É o ciclo. São tantos que nela caem... cães e urubus... corujas e tatus... outros... eles.... vós... todos... nós...

E a Vida os devorou sobre a estrada que era uma serpente laranja na ravina... A armadilha, só à Ela serve...

Obrigado por ter vindo até aqui...

TEMA: ESTRADAS

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 07/11/2018
Reeditado em 08/11/2018
Código do texto: T6496881
Classificação de conteúdo: seguro
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